sexta-feira, 16 de novembro de 2012

CONSCIÊNCIA DO "NÓS"


por Reinaldo João de Oliveira

Reflexão feita através das socializações e diálogos sobre o assunto em questão, em gratidão aos companheiros e colegas nesta articulação AfroAmeríndia.
 Intercalo entre o texto, imagens também socializadas por fotógrafos/artistas que compõe a causa e que intentam resgatar os valores que a ideologia quis também tirar do povo negro, em relação à sua identidade e sua estética... além de ressaltar, na reflexão, um dos intelectuais que mais revoluciona a questão da “Consciência Negra”, no meu entender = Guerreiro Ramos.

Voltando à reflexão, pergunto: o que dizer sobre uma cena em que uma pessoa resiste e prefere a morte do que uma rendição? Muitos pensariam num fugitivo de algum crime, mas dificilmente ligaria o fato à alguém que resistiu e enfrentou a escravidão nestas terras tropicais. E mais: que de acordo com a sua consciência, de pertencimento a um povo que foi trazido, como bichos, nos navios negreiros ingleses, para sustentar a economia deste país que viria a ser um império lusófono.

Pois foi com os braços de homens e mulheres negros que os lordes garantiram a revolução industrial e a consolidação do sistema capitalista. Só o braço escravo, já bem contou Eric Williams, daria conta da colonização baseada na monocultura extensiva. Mas essa gente valente, que foi sequestrada de suas terras, nunca se rendeu. A liberdade era seu horizonte e, em determinados contextos, tão logo escapavam das correntes e sistemas que lhes aprisionavam, criavam quilombos, comunidades livres, solidárias, auto-gestionadas. A maior delas: Palmares. E é em honra a esse povo, com Zumbi à frente, que no dia 20 de novembro, se celebra o Dia da Consciência Negra.

A data não é uma lembrança ritual de um tempo que já passou. Ela é a ferida aberta de uma sociedade que segue vivenciando os pressupostos do tempo da escravidão, mergulhada no racismo e na discriminação. Basta ver o que acontece sempre, com as manifestações raivosas contra nordestinos e população de periferia em comunidades empobrecidas (majoritariamente de pessoas com pele negra). Por isso que é preciso lembrar, e lembrar, e lembrar o que resultou de todo o processo escravista nestas terras brasilis.
Desde quando os portugueses decidiram apostar na mão-de-obra escrava aqui, nas novas terras, foi necessário consolidar uma ideologia que respaldasse o absurdo. Era mais do que óbvio que a elite colonial não haveria de espalhar aos quatro cantos que esta era uma medida “econômica” necessária para garantir seus lucros. Recebeu até o apoio da igreja, com seus missionários de plantão, como instrumento ideológico desde a origem deste processo: sem precisar citar tanto as pregações do “santo de pau oco”, que foi um dos grandes legitimadores da escravidão antes, o padre Antonio Vieira, que em seus Sermões catequizava a “legimitidade da escravidão” para a salvação das almas perdidas em África. Portanto, nada melhor que se liberto, salvo ao reino dos céus, sendo escravo cá no Brasil, pagando o preço dos pecados que nem eram dos africanos... verdadeiro “Pecado Original” esse cometido pela Santa Madre Igreja, nunca reparado para com a população negra. Valendo dizer que praticamente todas as congregações religiosas, que vinham aqui se estabelecer, utilizaram-se muito da mão de obra escrava até o final quando não podia mais, e até recentemente, na década de 1960, era proibido o acesso de negros aos cargos eclesiásticos de mais status... hoje a realidade ainda não é tão diferente assim.

Nesse contexto dos séculos XVII e XVIII, tendo todos os elementos a favor, o melhor, para as elites que dominavam a ideologia da criação de uma República, foi criar a idéia de que os negros eram de uma raça inferior, tal qual os índios, gente de segunda classe aos quais não faria diferença serem escravizados. Ou melhor, era natural que o fossem. E então foi só repetir, e repetir, e repetir. A coisa pegou. E tanto que, passados mais de 300 anos de escravidão, até mesmo os escravos – pessoas das gerações que se seguiram e que nunca haviam conhecido a liberdade – acreditaram nisso.

Depois, com o fim do regime escravista, uma vez que já estava garantida acumulação do capital das famílias coloniais, a ideologia seguiu fazendo seus estragos. Os negros libertos ficaram ao léu. Não havia política para inclusão de toda uma multidão de gente que, de repente, se via livre. Muitos, já velhos, não tinham como vender a sua força de trabalho e perambulavam pelas ruas, a mendigar. Ao que o sistema acrescentou novos adjetivos: preguiçosos, vagabundos, marginais. Nas grandes cidades eles foram se encravando nos morros, buscando um canto para morar, já que o Estado lhes abandonava.

E então, como não havia como eliminar a presença do negro na vida nacional, uma vez que aqui eram milhões, a elite decidiu que era preciso “embranquecer” o país, já que, conforme sustentavam os ideólogos de plantão, a raça negra haveria de constituir sempre um dos fatores da inferioridade do país. Ou seja, depois de terem usado do braço negro para forjar suas riquezas, a elite os considera causa da desgraça nacional. Cínismo pouco é bobagem.

Desde então, sociólogos, antropólogos e cientistas sociais se debruçam sobre aquilo que chamaram e ainda chamam de “problema do negro”, buscando refletir os elementos do racismo e do preconceito. Diante desta diferenciada forma de capitulação ideológica, o sociólogo Guerreiro Ramos vai apontar sua metralhadora verbal. “Por que o negro é um problema? O que o faz ser um problema? Uma condição humana só é elevada a condição de problema quando não se coaduna com um ideal, um valor, uma norma. Se se rotula ‘problema’ ao negro é porque ele é anormal. O que torna problemática a situação do negro é que ele tem a pele escura. Essa parece ser a anormalidade a sanar”. G. Ramos lembra que foi a superioridade européia no processo de colonização que criou estas manifestações - as quais chama de “patológicas” – de que o padrão estético dito normal e bonito só pode ser o branco. “É uma tremenda alienação que não leva em conta a realidade local e a verdade histórica: nosso país é um país de negros”.

Guerreiro Ramos argumenta que enquanto os estudiosos brasileiros não se libertarem da visão eurocêntrica da qual são cativos, muito pouco se poderá dizer sobre o racismo e a discriminação do negro no país. Os autores mais incensados, como Gilberto Freyre e Nina Rodrigues, por exemplo, viam o negro como o exótico, o problemático, o não-Brasil. Euclides da Cunha acreditava que a fusão das raças era prejudicial e que o mestiço era um decaído, embora pudesse transcender e ser salvo pela civilização. Era uma espécie de tese de “embranquecimento” pela inclusão na vida nacional. Oliveira Vianna chegou a dizer que a inferioridade seria passageira porque a tendência seria, pela mestiçagem, embranquecer.

Na tese defendida por Guerreiro Ramos a saída é a afirmação cotidiana da condição de negro, “niger sum”, pelo seu significado dialético numa sociedade em que todos parecem querer ser brancos por força da ideologia. “Sou negro, identifico como meu o corpo em que está o meu eu e considero minha condição ética [acrescento: e estética] como um dos suportes do meu orgulho pessoal”. Ele também defendeu, durante toda a vida, de que era necessário tirar do próprio negro a ideia de que havia um “problema do negro”. “O negro no Brasil é povo, o negro não é um componente estranho da nossa demografia”.

Hoje, o movimento negro, que é pouco atuante no Brasil, tem trabalhado essas teses, de afirmação cotidiana, mas não é fácil desfazer séculos de ideologia. Além do que é também possível encontrar entre algumas ONGs a ideia de que para o negro valem as políticas pobres como aquelas que, com dinheiro de fundações estrangeiras - como Ford, a Kellogs e outras que são inclusive responsáveis pela condição econômica de periferia de nossa gente - promovem cursos de cabeleireiras para mulheres negras e de garçons para homens negros, como se a eles só pudessem ser garantidas estas profissões. Outras instituições e pessoas, que atuam na área da Educação sofrem com o mal do personalismo com a vaidade de lideranças - procuram a todo custo estar ao lado do poder, se aliando à poderes institucionalizados que interessam à este ou aquele processo de favorecimento à sua capitalização. E, ainda, há menosprezo pela realidade que bate a porta, pelas ausências de uma gestão ética e transparente na administração, além da falta do empoderamento feminino, como forma de respeito e sensibilidade no trato com as mulheres negras, que são as maiores vítimas no processo de exclusão e opressão.
 

As cotas nas universidades avançaram em muito a dialetização da questão racial no Brasil, tanto que o racismo vivo e fulgurante se manifestou de várias maneiras, inclusive com estudantes brancos entrando na Justiça contra elas, como se as cotas já não fossem uma realidade nas universidades. Só que as cotas que existiam até então eram para os estudantes com cursinho particular, os nascidos em berços esplendidos, e estes não admitiam “repartir” a vida universitária com estes que muitos ainda consideram “inferiores”, justificando a cristalização da ideologia implantada nos tempos coloniais.
Estudantes de escolas particulares de Brasília protestando contra a destinação de vagas nas universidades federais para alunos de escolas públicas ( Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom / ABr, em 22/08/2012, FonteG1 DF)

Também o sistema capitalista é pródigo em cooptar as ideias e bandeiras do negro, transformando em produto a ideia de afirmação racial, como se pode notar nas revistas especializadas que acabam dando destaque ao negro, mas sempre dentro dos padrões capitalistas, de consumo e de estética.

Por isso a lembrança de Zumbi é tão desconfortável, e não foi sem razão que, em muitos municípios do Brasil, tenha sido recusada pelas Câmaras de Vereadores as propostas de um feriado no Dia da Consciência Negra. Porque quando se fala de Zumbi dos Palmares, se fala de outro modo de organizar a vida, auto-gestionada, cooperativa, solidária, comunitária, outros padrões de beleza e de relação com as coisas. Quando se fala em Zumbi se fala de luta aguerrida, armada, rebelde. Porque na sua história de líder de Palmares, Zumbi recusou a rendição, a composição de classe, a capitulação. Ele foi até o fim na proposição niger sum (sou negro), e para as elites brancas e racistas isso pode se configurar num “mau exemplo”. Melhor encobrir ou ainda, tornar um produto. 

De qualquer forma aí está o Dia da Consciência Negra nos interpelando, fazendo pensar que ainda há muito caminho a percorrer na destruição da ideologia racista inoculada desde os tempos coloniais.

Que viva Zumbi e que viva a idéia poderosa da afirmação de Guerreiro Ramos: Sou negro, sou povo brasileiro!

  
Para aprofundamentos, segue uma imagem/foto e referências bibliográficas de Guerreiro Ramos:
Foto de Guerreiro Ramos em primeiro plano: Conferência em Salvador/BA, 08 de Agosto de 1952 = extraída da tese de Ariston Azevedo (2006).

RAMOS, Alberto Guerreiro. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1989.
RAMOS, Alberto Guerreiro. Administração e Contexto Brasileiro - Esboço de uma Teoria Geral da Administração. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1983.
RAMOS, Alberto Guerreiro. Sociologia e a Teoria das Organizações - Um Estudo Supra Partidário. Santos: Editora Leopoldianum, 1983.
RAMOS, Alberto Guerreiro. Administração e Estratégia do Desenvolvimento - Elementos de uma Sociologia Especial da Administração. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1966.
RAMOS, Alberto Guerreiro. A Redução Sociológica - Introdução ao Estudo da Razão Sociológica. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro Ltda, 1965.
RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes Ltda, 1957.

Agradecimentos a todos/as que contribuem direta e indiretamente para nossas articulações!




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Este espaço busca ser um lugar de interação com contribuições em temas relacionados às Culturas Afroameríndias, suas diversas manifestações e contextos. Nos campos de exposição, apresento em forma de reflexões alguns textos sociais, históricos, políticos, teológico-religiosos e educativos. Também o universo das artes e literaturas são outras referências, leituras e aprofundamentos, conforme este processo de interlocução dialógica em construção.
Agradeço-lhe pelo interesse em reconhecimento e atenção ao nosso trabalho!

Atenciosamente,
Reinaldo.

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