segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Uma Democracia para a África


Os escritos políticos são aqueles em que estão marcadas com maior nitidez as mudanças nas idéias nas últimas décadas do século XX, na região sul-saariana: o trânsito entre o socialismo africano e o afro-marxismo, depois as teorias sobre a democracia e os direitos humanos e, nesse âmbito, as ênfases nos movimentos sociais, na sociedade civil e na necessidade de uma democracia enraizada nas formações políticas ancestrais ou em formas autóctones de participação.

Peter Anyang’ Nyong’o

A luta contra o apartheid ou, indo mais longe, contra a discriminação foi, por outro lado, algo permanente até o final do período. Segundo Peter Anyang’ Nyong’o, os debates sobre democracia no final do século XX foram a respeito de qual foi a experiência africana em matéria de democracia; se existe uma versão puramente africana de democracia; que argumento pode ser usado em favor da democracia na África na atualidade; se a democracia é necessária para o desenvolvimento; e se as sociedades africanas podem, tal como se apresentam atualmente, sustentar a democracia (Anyang’, 1995, p. 37-8).

Archie Mafeje

Nessas discussões, e em outras, volta a ser colocada em pauta a questão da dependência do pensamento africano ou, até mesmo, a inexistência de um pensamento africano propriamente dito. Archie Mafeje afirma que não existe um “discurso africano” sobre a democracia, pois o discurso é irrealizável sem um conjunto de benefícios conceituais derivados de um marco teórico coerente (Mafeje, 1995, p. 24). Boele van Hensbroek diz o oposto. Referindo-se à “virada democrática” que foi produzida nos anos 1980, argumenta que se ocupou da crítica dos sistemas de partido único e que as mudanças no pensamento político da região correspondem aos desenvolvimentos intelectuais globais (Boele van Hensbroek, 1999, p. 168-9). Numa primeira aproximação, considerou-se a adoção da linguagem política liberal como parte do afã mimético dos africanos, mas uma observação mais atenta faz com que se dê conta da presença de vários elementos que não se limitam à questão do multipartidarismo, típica do discurso ocidental (idem, 1999, p. 171), e que diversos autores apontam para a reelaboração da trajetória democrática ancestral dos povos africanos, com a convicção de que a democracia não é um assunto da elite, mas que compromete toda a população, e por isso deve se ocupar dos modos como esses povos a têm exercido (idem, 1999, p. 172).
Uma vez situado no terreno da discussão africana, Boele distingue três tipos de discursos sobre democracia: o discurso da corrente democrática liberal, que reproduz o modelo de pensamento da modernização, na qual a democracia é concebida como regra do jogo, uma norma de exigências políticas da modernização universal; o segundo, que reproduz os critérios básicos do modelo identitário: a democratização é a prova cabal do consenso africano na situação contemporânea; e o terceiro, que corresponde ao critério liberacionista, em que a democracia é concebida como uma fase na história das lutas sociais que deve conduzir, em última instância, ao radical poder dos oprimidos (idem, 1999, p. 177-8). Em todo caso, a discussão mais importante no pensamento politológico sul-saariano do final do século XX é a que se produziu em torno da relação entre democracia e instituições ancestrais, em que se afirma que a democracia poderia ser fortalecida na medida em que fosse aproveitada a existência de instituições democráticas dos antepassados.

Daniel Ayana

Considerando o trabalho de Daniel Ayana, pode-se mapear esse campo conectando-se a discussão politológica com algumas existentes no meio filosófico e outras no seio das ciências da religião. No discurso sobre democracia no “esquema das instituições indígenas africanas”, haveria três tipos de argumentos: sobre a validade da tradição, sobre a ausência de uma tradição democrática nos povos africanos e sobre a relação entre tradição, religião e autoritarismo (Ayana, 2002, p. 26ss). Nesse âmbito de discussão, podem se situar, por exemplo, reflexões como as de K. Wiredu sobre a relação entre democracia e governo por consenso, na esteira de sua afirmação sobre a existência de sociedades que funcionam sem Estado e de formas de decisão de políticas que não implicam partidos, assinalando a necessidade de inspirar-se na sociedade civil, que oferece modelos importantes nesse sentido (Wiredu, s/d, p. 183); as de Edward Wamala, que se interroga sobre a possibilidade de falar de democracia em sociedades tradicionais africanas que são tipicamente monárquicas (Wamala, 2004, p. 435); e as de Joe Teffo, entre diversos outros, que se pergunta sobre a vitalidade do sistema político tradicional e a presença dos líderes tradicionais na sociedade contemporânea (Teffo, 2004, p. 448).

Fatou Sow

Fatou Sow formula, de sua parte, a questão dos direitos humanos em relação às mutilações genitais femininas, que é algo não-presente nos analistas (homens) sobre a democracia. Fatou Sow estabelece relações entre mutilações genitais e problemas sanitários, costumes e religiões, mas insistindo particularmente no direito das mulheres ao controle de seu corpo e de sua sexualidade (Sow, 1998, p. 12ss).
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Obras relacionadas com o tema e com os autores citados:










terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A Consolidação de uma Teologia Africana

Um dos focos mais importantes de criatividade no final do século XX foi a produção teológica: novas publicações, encontros, discussões e debates, redes e particularmente novas misturas que geraram espécies eidéticas antes completamente inexistentes. Os avanços teológicos se assemelham a várias disciplinas: as ciências da religião, a filosofia, em especial a etnofilosofia, a teoria política e o ensaio. Embora se aproxime muito do que fazer filosófico africano, o mundo dos teólogos é mais amplo, conectando-se com a produção da América Latina e saxã e um pouco com o Oriente, além da produção européia, evidentemente.
Um dos aspectos mais notáveis na abundante produção teológica africana (teologia africana da libertação, do Contexto, do Kairos, da Reconstrução) é a proliferação de combinações e ramificações na árvore genealógica. A teologia acadêmica africana, originalmente de procedência puramente européia, se abriu à recepção de elementos provenientes de espaços muito diversos: a teologia negra norte-americana, a teologia latino-americana da libertação e as expressões conceituais da religiosidade mestiça africana e das religiões autóctones, especialmente trazidas à discussão acadêmica através da etnologia e da filosofia. Essas recepções produziram uma grande proliferação de novas expressões na teologia africana, especialmente na região austral, na luta contra o apartheid. A existência da luta anti-apartheid, em face do ecossistema intelectual em que se dava essa luta, ocasionou a multiplicação de espécies teológicas novas.8

Allan Boesak

Em 1977, Allan Boesak publica seu livro Adeus à Inocência, tentando explicitamente utilizar as categorias da teologia negra norte-americana, associando-a ao movimento do Poder Negro (Black Power)9 e ao movimento da Consciência Negra (Black Conciousness) da África do Sul. Sua proposta aponta contra os mitos criados para subjugar os africanos. Assumir isso, para as igrejas cristãs, significava o adeus à inocência (Boesak, 1977, p. 1-3). Nesse âmbito, para Boesak, a luta entre opressores e oprimidos se daria entre a preservação dos mitos e da inocência e a aniquilação de ambos e a ascensão da condição real da exploração, opressão e discriminação (idem, 1977, p. 5). Essa mesma questão, argumenta, o leva a abandonar a ilusão universalista, que impregnava a teologia ocidental (idem, 1977, p. 6).

James H. Cone

Fazendo uso da Teologia Negra (James Cone) e do pensamento político norte-americano e sul-africano, assim como da Teologia da Libertação latinoamericana (particularmente da obra de Gustavo Gutiérrez), Boesak propõe a teologia negra da libertação na África do Sul como uma teologia com o “indígena”, como outros pretenderam conceituá-la. Sua preferência pelo contextual se afirma nesse tomar a sério o processo da luta pela humanidade e pela justiça, de secularidade e de tecnologia, não atando o africano ao tradicional inocente (idem, 1977, p. 13-4).

Mercy Amba Oduyoye
Já Mercy Amba Oduyoye vê seu projeto teológico como uma “irrupção dentro da irrupção”. Se as teologias do Terceiro Mundo são uma irrupção, as teologias femininas e a presença ativa das mulheres no mundo cristão constituem uma segunda irrupção. O que por sua vez vem pôr em questão a suposta univocidade da experiência terceiro-mundista (Oduyoye, 1994, p. 24). No marco das atividades da EATWOT (Associação Ecumênica de Teologia do Terceiro Mundo), Mercy Amba destaca a importância de desenvolver essa segunda irrupção, pelo fato de o espaço teológico terceiro-mundista ter sido dominado pelos homens. Os assuntos e as experiências da mulher, do ponto de vista da mulher, se constituem em outro lócus para a Teologia da Libertação. A perspectiva feminista contribui com outro olhar, a partir de outra experiência. Ou seja, não se deve supor que homens e mulheres digam as mesmas coisas sobre a realidade africana (idem, 1994, p. 29), muito menos que as prioridades sejam idênticas na hora de determinar os objetivos. Reitera essa diferença porque em numerosas conferências internacionais os líderes homens do Terceiro Mundo insistiram em minimizar as diferenças ou tensões entre os sexos (idem, 1994, p. 30-1). Entretanto, Oduyoye assinala que seus estudos dos provérbios do povo akan, ao qual ela pertence, lhe mostraram que a mulher é vitima ancestral do imaginário lingüístico, que a socializa para aceitar seu lugar na sociedade (idem, 1994, p. 33). Portanto, não se trata de uma opressão conjuntural cuja eliminação se possa adiar em razão de causas maiores. Trata-se de uma opressão histórica que deve ser combatida juntamente com outras formas de opressão.

Jesse N. K. Mugambi
J. N. K. Mugambi, herdando e assumindo as discussões da teologia africana, pretendeu superá-las durante os anos 1990, passando de uma perspectiva liberacionista para uma reconstrutivista. No marco da nova ordem mundial, o tema da reconstrução lhe pareceu mais apropriado. Era necessário realizar uma mudança de paradigma na situação de pós-êxodo e pós-exílio. Afirma que os anos 1990 são anos de reconstrução, de renascimento e de reforma no sentido institucional e econômico (Mugambi, 1995, p. 5).
Segundo ele, o conceito de “reconstrução” é útil, além de para a teologia, para diversas disciplinas, como a sociologia, a economia e a ciência política (idem, 1995, p. 2). Os termos “construção” e “reconstrução” pertencem às ciências sociais, envolvendo a reorganização de alguns aspectos de uma sociedade e tornando-a capaz de responder melhor às mudanças circunstanciais, diz Mugambi, inspirando-se em Peter Berger e Thomas Luckmann (idem, 1995, p. 12). Nos relatos bíblicos, adverte para uma série de casos nos quais são gerados processos de restauração, de reconstrução, de formulação de sólidos projetos. Nehemias se transforma, assim, no texto central do novo paradigma para a teologia cristã na África, como o lógico desenvolvimento posterior ao tema do Êxodo (idem, 1995, p. 13).
Depois de diversos paradigmas que foram atraentes para a teologia africana, como o da libertação, do resgate, da salvação, redenção, inculturação e encarnação (idem, 1995, 13-4), o da “reconstrução” põe em relevo a necessidade de criar uma nova sociedade dentro do mesmo espaço geográfico, mas através de diferentes momentos históricos (idem, 1995, p. 15). Em todo caso, a reconstrução deve ser realizada em diferentes níveis: reconstrução pessoal, cultural e eclesiástica (idem, 1995, p. 16ss).


III – Para o Final do Século
Foram já destacadas algumas das mutações no pensamento africano, particularmente durante as décadas finais do século XX. Uma das últimas mutações produzidas foi o aparecimento de um discurso para o qual convergem as idéias feministas e as pós-estruturalistas e pós-modernas. Esse discurso se desenvolve em especial numa intelectualidade jovem, de alta formação acadêmica, que se instalou ou passou longos períodos nos meios acadêmicos do Primeiro Mundo. Aí foram constituídos redutos, não propriamente guetos, onde coexistiam pessoas provenientes da África, Índia, China, América Latina e do Caribe. Esses espaços se encontravam prioritariamente nas grandes cidades dos Estados Unidos, da Inglaterra, da França e do Canadá. Nos Estados Unidos e no Canadá, essa intelectualidade imigrante estava articulada à residente afro-americana e “hispânica” de várias gerações.


Não é a primeira vez que ocorrem grupos de intelectuais das antigas regiões coloniais nas grandes cidades do centro. Isso já acontecia desde os anos 192010, mas agora se trata de pessoas claramente inseridas na academia, da geração dos longos anos 1960, fugindo da onda de ditaduras da América Latina e da África ou buscando melhores condições de trabalho que na China ou Índia. Nesses novos espaços acadêmicos, especialmente nas ciências sociais e humanas, as mulheres adquiriram uma presença significativa, inimaginável duas décadas antes.
A intelectualidade de origem periférica inserida nesses espaços, conectada com ONGs, partidos e agrupamentos, está mais internacionalizada que aquela que permaneceu nos países de origem. Possui condições de trabalho e de vida notadamente superiores, em especial pela sua mobilidade e pelas ajudas acadêmico-laborais, que permitem certas vantagens de conhecimento a respeito de seus antigos co-nacionais, para quem ela exporta novas descobertas intelectuais, aproveitando assim para se tornar inovadora e formar sua clientela. Isso, de certa forma, e somente de certa forma, compara-se às burguesias consumidoras.


Algumas das mais importantes figuras do pensamento sul-saariano (como do latino-americano e do indiano) se encontram ou se encontravam nessa situação. É o caso de Amina Mama, Kwame A. Appiah, Valentin Mudimbe e Ali Mazrui, entre muitas outras.

Amina Mama

Ali Mazrui
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Algumas obras representativas (dos autores/as supracitados):









Argumentações contra o Apartheid


Dentro do pensamento politológico, a questão do apartheid é a mais específica do pensamento africano, pois se trata de um caso único no mundo. É de especial interesse o modo como a reflexão politológica se liga a outras dimensões, sendo muito relevantes a filosófica e a teológica, assim como a reflexão sobre temas psicológicos. Steve Biko, criador do movimento Consciência Negra (Black Conciousness); Samora Machel, presidente de Moçambique; Nadine Gordimer, romancista e ensaísta; Desmond Tutu, teólogo próximo às posições libertadoras; e Nelson Mandela, o mais importante oponente do apartheid e teórico político contra o mesmo, são algumas das figuras que representam as facetas assinaladas.

Steve Biko

Steve Biko, em 1970, postulava a noção de “negro” (black) como forma de englobar todos os segregados pelo apartheid: africanos, pessoas de cor e asiáticos. Ser “negro” seria uma reflexão sobre a atitude mental; declarar-se “negro” seria iniciar o caminho em direção à libertação, pois a pessoa “negra” é a que se ergue contra a dominação do homem branco. Nesse sentido, o movimento Consciência Negra tomava conhecimento do plano de Deus, que criou negra as pessoas negras, sendo uma forma de recuperar a dignidade e o orgulho de si mesma. A libertação é a chave para a Consciência Negra (Biko, 1996, p. 360).
O racismo branco e a exploração dos negros na África do Sul e em todo o continente (e assim deve ser entendida a tarefa para evitar a real independência dos países africanos) têm apenas uma só antítese: a sólida unidade negra. Somente dessa dialética poderia aparecer uma síntese viável. Na medida em que os negros continuarem se concebendo como apêndices da sociedade branca, não poderá haver verdadeira integração na sociedade (Biko, 1998b, p. 362). Para superar essa condição de apêndice, os negros deveriam ser capazes de entender a si mesmos e não continuar aceitando uma educação e uma religião que os conduzam a uma falsa compreensão do que são (idem, 1998b, p. 363).
Na cultura africana, acredita Biko, seguindo K. Kaunda e uma linha de pensamento em que podem ser incluídos L. Senghor, K. Nkrumah e J. Nyerere, é atribuída grande importância ao homem. A sociedade africana, afirma, foi antropocentrada. Os africanos crêem na inerente bondade do homem e sua ação esteve orientada para o comunitário e não para o individualista, como ocorre com a cultura do homem branco e com o capitalismo (idem, 1998a, p. 27). Os missionários desejavam que a sua religião fosse uma religião científica, pois a africana era mera superstição (idem, 1998a, p. 29), daí porque a mistura de culturas tentada na África do Sul foi extremamente unilateral em favor da branca (idem, 1998a, p. 26). Mesmo assim, acredita, a herança africana permanece viva (idem, 1998a, p. 29) e seu reconhecimento é a base da dignidade, e a dignidade, a base da libertação.

Samora Machel

Uma forma bastante diferente de enfrentar a questão do apartheid é a do moçambicano Samora Machel. Seu pensamento, nos anos 1970, se apresenta contra o socialismo africano e como uma das expressões mais claras do afromarxismo. Ele não podia aceitar, afirma, a idéia de um socialismo para cada um dos continentes. Segundo Machel, “o socialismo é uma ciência, e resultado de um árduo trabalho e desenvolvimento de tal ciência pelos trabalhadores”. Rechaça igualmente a idéia de um marxismo africano, mas aceita a necessidade de um ajuste pelos moçambicanos às suas próprias condições (Machel, 1976, citado em Saul, 1990, p. 48). Nesse marco ideológico-conceitual, Machel interpreta o fenômeno da expansão da República da África do Sul, com sua segregação e exploração, como tentativas de se defender do exemplo socialista de Moçambique e evitar que se espalhe no território sul-africano o que teme o apartheid (Machel, 1983, p. 17-8). Mais ainda, o regime de Pretória pretendia evitar a Conferência de Coordenação para o Desenvolvimento da África Austral (SADCC) porque essa organização visaria libertar os países da região da dependência econômica em relação à África do Sul (idem, 1983, p. 16). Os não-alinhados deveriam intervir nesse assunto e se solidarizar com a liberdade e dignidade dos povos, com a alternativa de uma civilização anti-racista que se desenvolvia na região, apesar das tentativas do regime de Pretória (idem, 1983, p. 17), que representaria o nazismo de nossa época, aliado estratégico e natural do imperialismo (idem, 1983, p. 13-4).

Nadine Gordimer

Um modo diferente de formular o problema do apartheid é o elaborado por Nadine Gordimer, que se interroga sobre a responsabilidade do escritor, que teria a ver com um “gesto essencial” (essential gesture), com o ser social ou, dito de outra forma, com a questão da “integridade”. O problema interessa a Gordimer por duas razões: pela situação sul-africana à época e por sua condição de escritora, que deveria falar aos que não compartilham de sua condição específica, e nesse sentido se trata da questão da responsabilidade de escritores que têm pouco e nada em comum (Gordimer, 1988, p. 286). Sem dúvida, apesar de circunstâncias tão diferentes, parece-lhe que, no momento em que escrevia (1984), poucos podiam afirmar o valor absoluto de um escritor sem fazer referência ao contexto de responsabilidades, e isso, decerto, não seria uma questão unilateral a ser decidida apenas por quem escreve, mas sim de modo correlato pela sociedade, que espera, questiona, considera e cobra de quem escreve (idem, 1988, p. 288).
No caso sul-africano, colocava-se a questão do apartheid e é em torno desse problema que se realiza boa parte da reflexão de Nadine Gordimer sobre a integridade-responsabilidade (idem, 1988, p. 289). Assim ela se refere às diferentes formas de enfrentar esse desafio: uma é a utilizada por diversos escritores negros, como H. Dhlomo, S. Plaatje e T. Mofolo, que contribuíram para a memória, levantando dados esquecidos pelos historiadores brancos ou mostrados apenas sob o ponto de vista da conquista branca (idem, 1988, p. 292); outra forma de enfrentar essa responsabilidade era quando quem escrevia mostrava ou expunha o real significado do vocabulário eufemístico racista do governo da África do Sul em expressões como “desenvolvimento separado”, “reocupação” ou “Estados nacionais” e sua gramática racista de segregar as câmaras legislativas e deixar sem representação a maioria negra (idem, 1988, p. 295). No entanto, interessava a Gordimer ainda mais esse gesto essencial que consiste em ser capaz de descrever a situação de maneira tão real que o leitor não possa continuar evitando-a (idem, 1988, p. 298).

Desmond Tutu

Desmond Tutu, inspirando-se em textos bíblicos, em interpretações da desobediência civil, no pacifismo e na luta pelos direitos civis, formulou um discurso que tem como eixo o fato de o apartheid ser repugnante para a consciência cristã (Tutu, 1988, p. 36). Em um texto dirigido ao povo segregado, um texto particularmente aparentado com os da libertação, argumenta: Para Deus, importam a injustiça, a opressão e a exploração. Para Deus, importam os humilhados, e Ele se põe sempre ao seu lado. As autoridades finalmente fracassaram porque o que fazem é mau e contrário à lei de Deus. Fortaleçam-se para resistir ao mal. Quero recordar-lhes a dignidade e a resistência pacífica das mães e viúvas de Langa e Nyanga, no Cabo. (Tutu, 1988, p. 41. Ver cartografia n. 15.) Essa situação de segregação vem de muito tempo, pois, assim que desembarcaram na região, os brancos se apropriaram de muitas terras, transformando-se em donos e senhores. Com isso, afirma Tutu, realizaram uma série de traições aos nativos, pois quando os brancos chegaram aqueles deram as boas-vindas a estes, provendo-lhes de fruta fresca, verdura e terra para que cultivassem, mas logo abusaram da hospitalidade, estabeleceram o racismo e o legalizaram (Tutu, 1988, p. 42-3). Por isso, os brancos, que pretendiam que os negros celebrassem os aniversários da República da África do Sul e que se alegrassem com os êxitos históricos, se encontravam muito sem rumo. O que os negros celebrariam? O convite à celebração seria, segundo Tutu, “uma das mais insensíveis, das muitas coisas insensíveis a que os negros foram submetidos”. O que se estaria pedindo aos negros é que “celebrassem sua própria opressão, sua exploração” (Tutu, 1988, p. 44). Para Tutu, Deus não é neutro e tomou o partido dos escravos, dos oprimidos, das vítimas, mas tanto os israelitas como os negros sul-africanos muitas vezes não são capazes de ouvir essa mensagem, pois têm o espírito debilitado pela crueldade da escravidão. Existiria um sentimento de inferioridade que conduzia o negro, afirma Tutu, ao autodesprezo e a desdenhar os outros. E assim os negros não mereceriam a libertação porque ela custaria muito a eles (idem, 1988, p. 50-1). Apesar disso, Cristo teria vindo para que os negros pudessem ter uma vida plena, tendo libertado-os para que eles pudessem ter uma humanidade digna da humanidade (idem, 1988, p. 57).

Nelson Mandela
Nelson Mandela articula seu discurso sobre o apartheid, no final do século, com base na idéia de que se trata de um crime contra a humanidade e que por isso deve ser superado e substituído por um sistema democrático com igualdade de direitos. Para alcançar tal sistema, deveriam ser utilizadas todas as energias possíveis, evitando as contradições menores, sejam étnicas, econômicas, de classe ou de nacionalidades. Tanto os africanos como os africânderes, em uma época ou outra, afirma Mandela, se viram obrigados a pegar em armas em defesa de sua liberdade contra o imperialismo britânico, mas os africânderes, uma vez que obtiveram o poder, esqueceram a importância da liberdade, para exercer a opressão e o apartheid (Mandela, 2005, p. 109-10). Esse apartheid constituía um crime contra a humanidade (idem, 2005, p. 183), pois negar às pessoas os direitos é bloquear sua humanidade (idem, 2005, p. 192), transforma-se em um câncer mortal, carcomendo os vínculos entre os próprios excluídos. Tratar-se-ia, portanto, de afirmar a unidade entre os africanos e destes com os descendentes de asiáticos, que também eram segregados, com os sindicatos de trabalhadores, com os partidos políticos e com os brancos solidários, utilizando toda a energia desperdiçada em oposições secundárias para derrotar o apartheid (idem, 2005, p. 129-31). O Congresso Nacional Africano, declara Mandela, queria uma África do Sul livre, democrática, não-racial e unida (utilizando um objetivo defendido por Albert Luthuli, décadas antes) para mostrar ao mundo um novo modelo de democracia que viesse à tona e expressasse todas as diversidades de cor e raça dos sul-africanos (idem, 2005, p. 133-4).

A Elaboração e a Crítica do Discurso sobre a África

Um tema que abrange toda a história do pensamento africano, de meados do século XIX em diante, é a discussão, a crítica e a reelaboração do discurso sobre a África, em dois sentidos: o elaborado fora e o elaborado dentro da região. No final do século XX, deu-se novo impulso a essa tarefa e nela estão comprometidos dois dos mais importantes autores da época: Valentin Mudimbe e Kwame Anthony Appiah. Esse desafio teórico se articula a diversos temas que se encontram envolvidos no discurso sobre a África, como, por exemplo, o da história e da cultura da região, o do apartheid, o da globalização, entre outros.

Valentin Yves Mudimbe
Valentin Mudimbe se propõe estudar a “gnosis africana” (esse discurso científico e ideológico sobre a África) inspirando-se nos princípios teóricos de seus dois principais mentores: Michel Foucault e Claude Lévi-Strauss. Mudimbe realiza uma arqueologia de tais discursos sobre a África como um sistema de conhecimento no qual as questões filosóficas maiores aparecem, em primeiro lugar, relativas à forma, ao conteúdo e ao estilo da africanização do conhecimento. Dito de outra maneira, ele trata, em seu livro A Invenção da África, dos processos de transformação dos tipos de gnosis sobre a África (Mudimbe, 1988, p. x).
Passando em revista os discursos elaborados por antropólogos, missionários e teólogos, filósofos e ensaístas, entre outros agentes, sejam ou não africanos, Mudimbe discute as semelhanças que apresentam, assim como as conclusões a que chegam, tentando mostrar como tais materiais vão constituindo sedimentos que configuram o que chama de “a invenção da África”. Por isso, entre tantas possibilidades, o texto pode ser lido como uma história das idéias de e sobre a região.

Para o caso do discurso dos antropólogos, enquanto um discurso sobre a alteridade, e paradigmaticamente em relação a outros discursos, este originalmente se realiza como um discurso colonial cujo etnocentrismo visa produzir um conhecimento que permita explorar as dependências. Tal antropologia, que funciona com categorias binárias, em que as virtudes aparecem do lado europeu e suas ausências, do africano (idem, 1988, p. 64), vai cedendo espaço a outro discurso cuja data de ruptura são os anos 1920. Nesse novo discurso, convergem antropólogos profissionais, como V. Malinowski (idem, 1988, p. 72), e autores africanos que vão promover os movimentos de independência (idem, 1988, p. 78).
No caso de missionários e teólogos, o primeiro discurso é aquele que os revela como expressões de interesses religiosos e da política imperial (idem, 1988, p. 44). Tal discurso pode ser resumido pela idéia de que é necessário regenerar, no sentido de “salvar” a África, questão que dá por subentendida a idéia da superioridade do sistema da cristandade (idem, 1988, p. 50-1). A partir de 1950, Mudimbe chama a atenção para o aparecimento, nesse espaço, de um novo discurso que se articula com base na idéia de “indigenização” dos aspectos externos das práticas religiosas, como rezas e música, para, posteriormente, a partir de novas premissas, estabelecer uma perspectiva diferente como a teologia da “encarnação” (idem, 1988, p. 56 e 59).
No caso da filosofia, essas evoluções se expressam de maneira similar a partir da noção de “filosofia primitiva” (idem, 1988, p. 135), passando pela etnofilosofia (p. 145) até a filosofia africana. A historiografia colonial, por seu lado, sofreu um constante processo de desconstrução que foi modificando seus pressupostos (idem, 1988, p. 167). Se de algum modo se pode resumir, Mudimbe sustenta que até os anos 1920 os estudos sociais sobre a África consistiam na racionalidade de um campo epistemológico e na expressão sociopolítica da conquista. O estudo do outro era reprimido para sustentar as teorias do eu. Esses procedimentos eram ferramentas para reforçar o poder e seus objetivos políticos de redução, seja como “assimilação” ou “governo direto” (idem, 1988, p. 83).
Esse discurso é questionado, nos meios africanos, com as idéias da negritude, que vem a ser um modo oposto de falar da “diferença” (idem, 1988, p. 87). Assim, pode-se observar uma mudança gradual em alguns domínios representativos da antropologia, da história e do pensamento político (p. 89), mudança gradual que tem seu ápice nos movimentos independentistas. Contudo, esse ápice é uno, mas não único e irrepetível, pois adverte Mudimbe que, nos anos 1980, quando está escrevendo, as tendências desses anos vão revivendo as crises dos anos 1950, posto que, para criar mitos que dêem sentido às suas esperanças de melhora, a África parece ficar em dúvida entre duas principais fontes: o marxismo e o tradicionalismo (idem, 1988, p. 96).

Kwame Anthony Appiah
Continuando com uma empreitada similar à de Mudimbe, Kwame Appiah, em Na Casa de meu Pai. África na Filosofia da Cultura, ocupa-se de desmontar algumas das idéias arraigadas no discurso africano-africanista, tentando provar como tal discurso serviu à subordinação do continente, sem ter sido necessariamente proposto.
Se no século XIX não havia algo que pudesse ser chamado de “identidade africana”, pois tal identidade era, no final do século XX, ainda uma coisa nova e produto de uma história recente (Appiah, 1997, p. 243), isso não quer dizer que autores importantes como A. Crummell e E. Blyden não estivessem já, em 1860 ou 1870, buscando as especificidades ou “diferenças” da região e articulando um discurso sobre elas, principalmente com base na noção de raça (idem, 1997, p. 19ss). Appiah prossegue estudando a construção do discurso da diferença através do pensamento pan-africanista, da teoria literária ou da crítica cultural e da etnofilosofia, com o objetivo de assegurar as bases para superar os discursos do eu, em coerência com as idéias de Hountondji e Wiredu, mas crítico e tendente ao que chama de “identidade pan-africana repensada” (idem, 1997, p. 153-4).

Appiah acredita que essas concepções da identidade africana associada à noção de “raça”, à “metafísica africana” ou ao “egipcianismo” são formas de conceber a identidade que não só denotam inferioridades como contribuem para inferiorizar os africanos. A primeira idéia, diz, inibiria os africanos de lidar com os conflitos inter-raciais; a segunda, de utilizar tecnologias ocidentais, como remédios, que evitam mortes; e a terceira, ao associar o africano com valores antigos, inibiria a capacidade de enfrentar os problemas do presente (idem, 1997, p. 245). Ele acredita que é necessário mostrar não apenas que a raça e a história nacional são falsidades, mas também que, na melhor das hipóteses, são falsidades inúteis e, na pior, são perigosas. Na realidade, afirma, outro conjunto de relatos sobre a África permitirá a construção de identidades através das quais os africanos possam fazer alianças mais produtivas no futuro (idem, 1997, p. 244).
Uma discussão tão importante como a que é realizada em torno da globalização está intimamente ligada às maneiras como se construiu e se deseja construir o discurso sobre a região.

A Globalização a partir da Disjuntiva Periférica

Panfleto do MLG lançado em 1960 no Senegal, entre os refugiados guineenses (Fonte: Arquivos da PIDE/DGS)

Em quase todos os lugares, o tema da globalização se tornou chave nas discussões do fim do século: os conceitos variaram parcialmente, as ênfases também e decerto as valorizações, mas a idéia de um cenário mundial com progressivas interconexões (econômicas, midiáticas, meios ambientais etc.) e com ganhadores e perdedores foi muito freqüente. As intelectualidades periféricas também enfrentaram esse assunto na sua disjuntiva clássica: apostar na obtenção de êxito na globalização ou apostar em outros objetivos associados a identidades diversas. Samir Amin, Ali Mazrui e Carlos Lopes foram alguns dos africanos que apresentaram respostas mais elaboradas, ainda que obviamente tenha havido muitas outras pessoas.
Carlos Lopes publica, em 1997, Compasso de Espera. O Fundamental e o Acessório na Crise Africana, cujo objetivo é pensar a globalização e, nela, a situação da África, situando-a historicamente. Para isso, revisa os discursos historiográficos, que caracteriza como o de inspiração européia sobre a inferioridade africana, o de origem autóctone sobre a superioridade africana e o que surge, finalmente, mais maduro, de uma nova escola de pensadores sem as cargas emocionais de seus predecessores (Lopes, 1997, p. 25).
Situando-se nessa perspectiva intelectual, Lopes diz que, para pensar a crise africana adequadamente, superando as deficiências de paradigma inaptas, deve-se levar em conta quatro eixos: as percepções ou opiniões sobre a África, as realidades africanas tal como são no momento, os desafios da agenda continental e, por último, o eixo da interação dos desafios com a herança histórica dos africanos (idem, 1997, p. 27). Para Lopes, não se pode colocar de lado o assunto do afro-pessimismo, essa visão extremamente negativa da África, que alguns africanos e não-africanos cultivam, mas questiona tal crítica ou autocrítica, pois ela poderia ser uma arma poderosa de destruição se não utilizada adequadamente (idem, 1997, p. 29). Ele acredita que o afro-pessimismo e outras visões estreitas não recorrem à história pré-colonial como guia para interpretar a realidade da África (idem, 1997, p. 30). Situando-se na disjuntiva da intelectualidade periférica tomada de empréstimo a Boaventura de S. Santos – “mimetismo crítico” versus “nacionalismo radical” –, Lopes diz que o desenvolvimento é algo endógeno e que pode vir somente do interior de uma sociedade, que definiria soberanamente sua visão e sua estratégia (idem, 1997, p. 56); por isso, seriam os próprios africanos que teriam de decidir se querem recuperar ou construir seu próprio modelo de desenvolvimento (idem, 1997, p. 54). Em coerência com isso, afirma que é a cultura africana que se deve constituir na base para a preservação dos elementos sociais que permitam às sociedades da África construir modelos políticos e institucionais que crêem e retenham as capacidades existentes, em um contexto de crescente urbanização, o que deve estar relacionado à interpretação que se faça da utilidade ou não que possam ter tais modelos para a construção de um futuro (idem, 1997, p. 55).
Ali Mazrui, por sua vez, discute o dilema da modernização, formulando o problema da seguinte forma: pode uma sociedade não-ocidental assumir a herança de conhecimento e modernidade sem cometer suicídio cultural? Estariam ainda os africanos enfeitiçados pela pergunta sobre a maneira pela qual uma sociedade pode se modernizar sem se ocidentalizar? A tecnologia moderna seria uma arma de genocídio cultural na África e na Ásia? (Mazrui, 2001, p. 69.) Para avançar em direção a uma resposta, Mazrui inspira-se nos casos do Japão e da Turquia. Os japoneses estavam persuadidos de que era possível embarcar em uma modernização militar e econômica sem assumir a ocidentalização cultural. De seu lado, Kemal Ataturk estava mais inclinado a identificar modernização com ocidentalização do que os japoneses da reforma Meiji. A pergunta é, qual das opções pode ser válida para a África? (idem, 2001, p. 71.) De muitas maneiras pode-se observar que na África se produziu a ocidentalização sem a modernização, e nisso foi muito importante a presença dos idiomas europeus entre a elite, gerando processos de aculturação. O importante é ir ao cerne da modernização e, principalmente, não cair naqueles elementos que a acompanharam no caso ocidental, como a urbanização, a industrialização ou a secularização. Para realizar essa distinção mais nitidamente, Mazrui define modernização como “mudança de direção que é compatível com o estado presente do conhecimento e que faz jus às potencialidades do ser humano, tanto como um ser social quanto como um ser inovador” (idem, 2001, p. 74). Essa definição é articulada com três características da modernização: a compatível com a ciência e o know how; a expansão dos horizontes do clã à aldeia global; e a aceitação da inovação ou da busca pelo melhor que as coisas podem oferecer (idem, 2001, p. 74-5). Para gerar a modernização na África, um primeiro elemento não é a ocidentalização, mas, pelo contrário, a indigenização, no sentido de localizar recursos, pessoal e controle efetivo. Ou seja, em vez de pensar como europeus, pensar como africanos, buscando tudo que seja utilizável dos próprios. O segundo é o esforço domesticador, fazendo o estrangeiro mais adequado às necessidades locais. O terceiro é a diversificação cultural, não se focalizando unicamente no Ocidente, mas também nas outras grandes culturas. O quarto é a interpenetração horizontal entre as sociedades menos privilegiadas. Por fim, a quinta estratégia é a contrapenetração em direção ao centro em defesa dos próprios interesses (idem, 2001, p. 79-81). Definitivamente, segundo Mazrui, é preciso não confundir a força dos membros com a capacidade da alma ou da cultura. Os membros podem ser fortalecidos, mas a alma deve permanecer leal a si mesma (idem, 2001, p. 84).
Samir Amin, em Os Desafios da Mundialização, volta-se especificamente para o conceito de “mundialização”, apontando tanto para as origens do processo como para as mutações que conduziram às formas pelas quais se apresentam tal fenômeno no final do século XX. Em relação ao seu trabalho, dedica-se, em boa parte, a explicar o que chama de “a catástrofe econômica da África” (Amin, 1997, p. 225) e as estratégias de superação ou “estratégias de libertação” (p. 241), questão que vê ligada a uma “transição para o socialismo” (p. 267).
O capitalismo realmente existente não conseguiu, para Amin, dar forma a um modo de produção capitalista mundial, pois isso suporia um mercado integrado tridimensionalmente, de mercadorias, capital e trabalho. Sua expansão é nada mais que bidimensional, integrando pouco a pouco os intercâmbios de produtos com a circulação de capital, enquanto o mercado de trabalho fica compartimentado. Isso gera uma inevitável polarização (idem, 1997, p. 65). “A polarização imanente ao capitalismo mundial é ignorada deliberadamente pela ideologia liberal”, diz Amin, “o que tira qualquer sentido da dita ideologia.” Com efeito, argumenta, a integração ao sistema mundial “cria uma contradição insuperável, no marco da expansão do capital”, a ponto de tornar ilusória qualquer tentativa das periferias, pelo menos três quartos da humanidade, de chegar ao centro (idem, 1997, p. 90).
Na verdade, a “mundialização através do mercado” é uma “utopia reacionária”, contra a qual se deve desenvolver, na teoria e na prática, a alternativa de um projeto humanista de mundialização que se inscreva numa perspectiva socialista (idem, 1997, p. 100). Essa consideração é particularmente relevante quando ele se refere ao Quarto Mundo, que é aquele que ficou marginalizado e ao que corresponde a África em seu conjunto, distinguindo-o do Terceiro, que é de industrialização recente e competitivo (idem, 1997, p. 225). A África involuiu, corroendo inclusive o que adquiriu desde a independência, nos âmbitos da educação, saúde e administração, alimentando, em conseqüência, as explosões sociais (idem, 1997, p. 239).
O capitalismo deve ser superado, escreve Amin, pois, se não for assim, se corre o risco de se transformar no fim da história e do planeta, pela sua destruição (idem, 1997, p. 245). Para avançar na transição para o socialismo, deve-se definir uma estratégia de luta popular que parta da análise das contradições do capitalismo em cada fase particular, e tal estratégia consiste, antes de tudo, “em combater a alienação econômica, o desperdício de recursos e a polarização mundial” (idem, 1997, p. 261). Amin formula quatro desafios que devem permitir o avanço em direção ao socialismo para combatê-los
1) o desafio do mercado, definindo os objetivos e os meios que permitam enquadrá-lo, colocando-o a serviço de uma reprodução social que assegure o progresso social;
2) o desafio da economia-mundo, que consiste em obrigar o sistema mundial a se ajustar às exigências do desenvolvimento africano;
3) o desafio da democracia, que consiste em defender uma concepção progressista dos direitos que defina com precisão as regras do mercado; e
4) o desafio do pluralismo nacional e cultural, que consiste em reorganizar uma coexistência e uma interação comunitária que se defina da maneira mais diversa, no marco do maior espaço político possível (idem, 1997, p. 261ss).



CONSIDERAÇÕES E NOTAS - Como entender a África Sul-Saariana...

Conclusões

1. Como se viu, o último terço do século XX na África Sul-Saariana marca um salto na “academicização” da intelectualidade, o que repercute enormemente na produção do pensamento. Obviamente, antes existiram instituições acadêmicas, mas não havia nelas uma massa crítica suficiente de intelectualidade africana para produzir pensamento. Fundamentalmente, salvo algumas exceções, esse pensamento foi produzido fora da academia. No terceiro terço, ao contrário, as instituições de ensino superior e alguns centros de investigação vão ser os lugares onde se gera a maior parte da produção. Sem dúvida, é importante fazer uma ressalva: a produção de vários dos autores mais importantes está se realizando na universidade norte-americana e não na africana. Essa instalação da intelectualidade na academia traz algumas conseqüências, como a profissionalização e a diversificação disciplinar. A diversificação entre economia, politologia, filosofia, teologia, antropologia, historiografia, estudos de gênero e outros mais se estabelece sem menosprezo da existência de pessoas que ali transitem. Decerto, antes de 1970 houve intelectuais totalmente profissionalizados, como Cheikh A. Diop e J. Ki-Zerbo, entre outras figuras, mas foram exceções.
2. A profissionalização e a especialização repercutem sobre a produção de pensamento, facilitando o surgimento de escolas no interior de diversas disciplinas: na economia, o dependentismo africano; na teologia, a teologia africana da libertação ou a da reconstrução; na filosofia, a etnofilosofia, que nasceu antes, mas foi tematizada no último terço do século; na politologia, a democracia fincada nas instituições ancestrais, entre outras escolas.
3. Isso facilita a recepção, em cada disciplina, de contribuições diferenciadas e particularmente de idéias da América Latina e de alguns lugares da Ásia e, certamente, continuam recebendo, como em épocas anteriores, dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e da França. Da Índia, recebem-se, desde fins do século XIX, as idéias do INC e o gandhismo. No último terço do século, foram recebidas, particularmente, as idéias pós-coloniais da subalternidade. Da América Latina, começam a receber idéias, o que é algo quase completamente novo, ainda que tenha havido exceções anteriores (ver nota 7 do Cap. 3, “Ciências econômico-sociais latino-americanas na África no começo dos anos 60”). Durante o último terço, recebem-se da América Latina elementos do cepalismo, do dependentismo, do liberacionismo pedagógico e teológico, para mencionar os casos mais relevantes.11 A recepção de idéias vindas de lugares não-convencionais gera, portanto, mesclas novas no pensamento sul-saariano, aparecendo em seus ecossistemas intelectuais espécies eidéticas com heranças desconhecidas em épocas anteriores. Isso, sem dúvida, enriqueceu o acervo intelectual da região.
4. As diversificações disciplinar e de recepção não foram as únicas; também se manifestou a diversificação “social” da intelectualidade, se assim se pode chamar. Apareceram no cenário as mulheres intelectuais (ainda que, em épocas anteriores, tenha havido uma ou outra, como se viu); a intelectualidade acadêmica ásio-descendente (embora, também antes, tenha havido algum caso excepcional); a intelectualidade estrangeira residente com produção sobre a África, e já não somente ensinando saberes importados, como outrora; a intelectualidade islâmica com formação universitária; a imensa intelectualidade universitária na diáspora, como nunca houve antes. Isso faz do pensamento africano do último terço do século, e deve-se insistir, um conjunto tremendamente maior que em épocas anteriores. Deve-se notar que, além disso, se incorporaram à produção regiões antes quase ausentes, sendo exemplos relevantes os Congos e as Guinés.
5. A diversificação leva, sem dúvida, à seguinte pergunta: existe algo que possa ser chamado de pensamento africano em tal diversidade? Sem dúvida que sim. Em primeiro lugar, uma preocupação com a própria região, como não acontece em outros lugares. Na Ásia, não se tem essa preocupação continental; no espaço islâmico, pensa-se levando em conta uma identidade religiosa cultural e não geoistórica, para citar dois casos diferentes do afro-sul-saariano. Em segundo lugar, uma sensação de inquietude, como tampouco acontece em outro lugar no mundo. No final do século XX, havia várias regiões do mundo ou países que “sentiam” que as coisas acabariam mal. A América Latina é um caso, mas na África isso é mais forte e nítido. Em terceiro lugar, a modulação relativamente específica da disjuntiva periférica, que inquieta sua intelectualidade, particularmente a mais internacionalizada.
6. O pensamento sul-saariano termina o século completamente enquadrado na disjuntiva periférica. O problema de ser como o centro (e em qual sentido) ou ser como si mesmos (e também em qual sentido) encontra-se formulado de maneira transparente e explícita ou, em alguns casos, mais veladamente. Viu-se que Mazrui, Mudimbe, Appiah ou Lopes a retomam. Por certo, várias dessas reflexões conclusivas sobre o último terço unem-se às conclusões gerais para esse esquema do pensamento africano sul-saariano. Vamos a elas!



Notas

1 A crítica da negritude no Caribe – Na América Latina é produzida também uma crítica sobre a ideologia (e prática) da negritude. A obra mais importante a respeito foi a de René Depestre, Bom Dia e Adeus à Negritude (1985), voltada especificamente para o Caribe francófono. Curiosamente, a crítica de Depestre não faz alusão a Senghor nem a outros africanos ou afro-descendentes anglófonos que retomaram o conceito.

2 Pensamento “terceiro-mundista” – Com esse conceito pretendo aludir às versões de ditas tendências que já foram processadas antes em outras regiões do mundo periférico, o Terceiro Mundo. Exemplos disso são, para a economia do desenvolvimento, o cepalismo latino-americano e, para o marxismo, o maoísmo.

3 Origens da intelectualidade ásio-africana – Essa intelectualidade, que chega à academia em meados dos anos 1960, continua a obra intelectual, política e organizacional daqueles que migraram para a África Oriental no final do século XIX. Nessa região, foi-se constituindo um espaço de organizações laicas ou religiosas, jornais e outras instâncias de reivindicação de direitos e de presença da sociedade civil. Aparecem antes de 1900 figuras que vão ter longa trajetória, como Mohandas Gandhi e Abdullah Abdurahman. As relações entre essas comunidades instaladas nas cidades da África Oriental não são sempre freqüentes. Maiores são com a Índia, especialmente com o “ismailismo” e seu Aga Khan. Essas comunidades foram importantes para tornar conhecida a experiência política indiana e o nacionalismo indiano na África. Em meados do século XX, vão amadurecendo partidos políticos em que aparece o híbrido islâmico-marxista, como o Umma (comunidade islâmica), no qual milita o marxista M. Babu, ligado a redes pan-africanistas. Deve ser também destacada nessa época a figura, entre outras, do goense Pinto e Souza. Nessas comunidades, vão se constituindo igualmente uma intelectualidade islâmica.

4 Pensamento dependentista na Ásia – Particularmente na Índia, no Paquistão, em Bangladesh e no Sri Lanka, foram detectadas pessoas que podem ser incluídas no dependentismo asiático, algumas não residindo em seus países de origem, mas ensinando no Primeiro Mundo ou que trabalharam durante anos em órgãos internacionais. Como pode ser visto na nota 6, “O Fórum Terceiro Mundo”, houve reuniões que proporcionaram encontros de cientistas econômico-sociais das regiões periféricas em que essas idéias circularam. Nesse sentido, deve-se destacar Jagdish Bhagwati, Mahbub Ul-Haq, Nurul Islam ou Gamani Corea, entre outros (ver Devés-Valdés, 2005c).

5 Clima intelectual e tendências na Tanzânia em 1970 – O ugandense Dani Nabudere, residente na Tanzânia, descreveu a atmosfera política como “bastante dinâmica”. Dar es Salaam era o quartel de operações da maioria dos movimentos de libertação das colônias portuguesas, da Rodésia do Sul (Zimbábue) e da África do Sul. Ali se encontrava também a sede do Comitê de Libertação da Organização pela Unidade Africana (OUA), que era justamente presidido por Julius Nyerere, chefe de Estado na Tanzânia entre 1962 e 1985. Dar es Salaam era, então, um zunzunzum de atividades e debates sobre a libertação africana, o colonialismo, o neocolonialismo e o imperialismo (Nabudere, s/f). Afirma Nabudere que essa atmosfera foi mais significativa pelo dinamismo que prevalecia na Universidade de Dar es Salaam, que estava recebendo uma quantidade extra de acadêmicos, tais como Walter Rodney, da Guiana, alguns ingleses (sic) progressistas, como John Saul, John Iliffe e Sol Pichotto (sic), e vários africanos que lá se refugiaram, como Nathan Shamuyarira, Yash Tandon, Mahmood Mamdani, Claude Ake, Akudiba Nnoli e o próprio Nabudere. Interagiam com eles tanzanianos como Anthony e Justinian Rweyemamu e Issa Shivji. Em tal ambiente, criou-se, por exemplo, a Associação Africana da Ciência Política (Nabudere, s/f). Em outro texto, o ugandense mostra amplamente esse ambiente e essas pessoas, lembrando que “a maior parte dos acadêmicos da ‘esquerda’ que chegaram à Universidade de Dar es Salaam, em particular depois de 1964, sustentava uma orientação marxista, que é, na Europa Ocidental, Estados Unidos e América Latina, um derivado do trotskismo”. Segundo Nabudere, esse fenômeno foi ainda “reforçado por uma bibliografia que foi característica da livraria da universidade no período 1968-72”. Tal bibliografia estava composta “principalmente de livros trotskistas escritos por pessoas como Isaac Deutscher e o próprio Trotski; depois o grupo da Monthly Review, de Paul Baran e Paul Sweezy, e, por último, no período seguinte, os da escola do subdesenvolvimento latinoamericano, de G. Frank”. Especificando mais isso, assinala que “esse último grupo da bibliografia foi popularizado mais tarde no continente pelo prolífico neomarxista Samir Amin” (1977, p. 61-2, citado em Bloomstrom e Hettne, 1990, p. 187). Issa Shivji, de sua parte, referindo-se particularmente a Rodney e ao período em que este viveu na Tanzânia (1966-1974), assinala que o contexto e a atmosfera foram de “intensa agitação intelectual e de debates e discussões ideológicos” (Shivji, 1993, p. 33). Afirma que foi colocado em pauta o debate sobre o socialismo, levando alguns jovens acadêmicos (como Rodney) e alguns estudantes do campus (como ele) a participarem de “vigorosos debates intelectuais”. Ali se iniciou o Clube Socialista, que uniu estudantes de Uganda, Etiópia, Malaui, Quênia e Tanzânia e professores como Rodney. O Clube Socialista, em pouco tempo, se transformou na Frente Revolucionária de Estudantes Africanos (Usarf) (Shivji, 1993, p. 133). O Usarf organizou ciclos de conferências para os quais foram convidados Cheddi Jagan, que seria presidente da Guiana e compatriota de Rodney; Gora Ebrahim, do Congresso Pan-Africano da África do Sul; Abdulrehaman Mohamed Babu, membro do gabinete do governo socialista de Nyerere, nesse momento, veterano marxista de Zanzibar (agora parte da República Unida da Tanzânia e, de certa maneira, dissidente à esquerda do oficialismo); Stokely Carmichael, do Black Power norte-americano; e C. L. R. James, original de Trinidad, no Caribe, marxista, estudioso da independência haitiana e mestre de Rodney. Shivji lembra que o Usarf organizou as “Sunday Ideological Classes”, cujas discussões “foram guiadas pelos próprios estudantes e nas quais textos marxistas, fanonistas (de Frantz Fanon) e nkrumanhistas (de Kwame Nkrumah) foram lidos, estudados e devorados com grande entusiasmo e freqüentemente com fervor religioso” (Shivji, 1993, p. 133). Sobre as leituras e a sensibilidade estudantil radical muito fala Shivji, recordando que “os estudantes de esquerda nesses anos falavam em nome dos condenados da terra (nome do livro mais famoso de Fanon). Nesse tempo, Fanon estava na boca de todos os estudantes e o livro era lido, citado e recitado o tempo todo” (Shivji, 1993, 2004). Levando em consideração essas reuniões, ou indo além, visitaram também o campus o reverendo U. Simango; Eduardo Mondlane e Marcelino dos Santos, da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo); Agostinho Neto, do Movimento Popular de Libertação de Angola e que seria depois presidente; Yoweri Museveni, que seria posteriormente presidente de Uganda; e o cientista social e ensaísta queniano Ali Mazrui, entre muitos outros (ver Lewis, 1998, p. 129). Foi precisamente nesse contexto que o “Campus de Dar recebeu as teorias da dependência (em espanhol ou português no original) da América Latina via Gunder Frank e outros. Baran, Sweezy e os demais eram lidos intensamente. O imperialismo era visto como o inimigo número um” e estimulava-se a “desenganchar” do imperialismo e do sistema-mundo capitalista (Shivji, 1993, p. 135; ver Devés-Valdes, 2005c).

6 O Fórum Terceiro Mundo – A primeira reunião, ou “reunião preparatória”, do Fórum Terceiro Mundo foi realizada nas instalações da Cepal em Santiago do Chile, entre os dias 23 e 25 de abril de 1973. A professora indiana Padma Desai publicou uma série de informes ou crônicas do encontro, dizendo que “ao redor de 40 cientistas sociais da América Latina, do Oriente Médio, do subcontinente indiano e da Indonésia convergiram para Santiago do Chile no final de abril para discutir sobre problemas relativos ao Terceiro Mundo (Desai, 1973, p. 57). Trataram especialmente de três temas: estratégias de desenvolvimento para o Terceiro Mundo; comércio, ajuda e acordos monetários; e meio ambiente e controle da população”. Entre os chilenos encontravam-se Osvaldo Sunkel, da Cepal e do Ilpes; Gonzalo Martner, ministrodiretor da Odeplan (Oficina de Planejamento Nacional); Alejandro Foxley, professor do Centro de Estudos de Planejamento (Ceplan) da Universidade Católica do Chile; Juan Somavía, da Alalc (Associação Latino-Americana de Livre Comércio) e Pacto Andino; e Carlos Massad. Entre os estrangeiros residentes no Chile, o uruguaio Enrique Iglesias, diretor da Cepal, um dos gestores da reunião e o dono da casa, pois ela foi realizada nas instalações da Comissão, como foi visto. Outros grandes gestores ou “pais-fundadores”, como os chama Padma Desai (1973, p. 57), foram o economista egípcio residente no Senegal e o mais importante promotor das redes de cientistas econômico-sociais na África, Samir Amin; Mahbub Ul Haq, economista paquistanês e assessor do presidente do Banco Mundial; o economista nigeriano H. M. A. Onitiri, diretor do Instituto de Desenvolvimento Social e Econômico da Universidade de Ibadan; e o nepalense B. Thapa. Encontravam-se também o costa-riquenho Oscar Arias, que seria depois presidente da República; Antonio Casas González, chefe do Cordiplan, da Venezuela; o economista Carlos Díaz Alejandro; Rodrigo Botero, diretor-executivo da Fundação para a Educação Superior e o Desenvolvimento da Colômbia; Ismail Sabri Abdallah, ministro do Planejamento do Egito; Justinian Rweyemamu, tanzaniano, assessor do presidente; Nurul Islam, economista paquistanês; Gamani Corea, do Sri Lanka, e que seria depois secretário-geral da Unctad (United Nations Conference Trade and Development); Oneida, sem o primeiro nome, que se referiu ao controle da população; Jagdish Bhagwati, indiano, professor de economia de Cambridge e marido de Padma Desai, indiana também e professora do Russian Research Center de Harvard (ver Devés-Valdés, 2006b).

7 Possibilidade e sentido de uma filosofia latino-americana – A possibilidade e o sentido de uma filosofialatino-americana constituíram uma das questões que contribuíram para animar o ambiente filosófico na América Latina entre os anos 1940 e 1960, ainda que continuasse sendo debatida durante as décadas seguintes. Leopoldo Zea argumentava em 1969: “(…) recentemente o peruano Augusto Salazar Bondy escreveu, sob o título Existe uma Filosofia da nossa América?, sobre esse aspecto da filosofia ainda não contemplada, inclusive nas clássicas histórias da chamada filosofia (…). Quando nos perguntamos pela existência de uma filosofia latino-americana, partimos do sentimento de uma diversidade, do fato de que nos sabemos e nos sentimos diferentes (…). Por que levamos para a história da filosofia uma pergunta que nunca antes havia sido feita, e, de fato, fazemos uma estranha filosofia? Essa estranha filosofia que os supostos criadores da filosofia olham com asco e, senão, com olhos de misericórdia” (Zea, 1976, p. 11). A oposição entre os que afirmavam a possibilidade de um quefazer filosófico latino-americano e aqueles para os quais a filosofia não podia ser associada a circunstâncias continentais, ou seja, entre “latino-americanistas” e “ocidentalistas” (ou “universalistas”), para chamá-los de algum modo, tendeu a se diluir na medida em que apareceu a noção de “pensamento latino-americano”, muito mais ampla e na qual a filosofia, estando compreendida, era uma pequena parte. Porém, na América Latina, praticamente não se tentou fazer filosofia a partir dos povos indígenas, como fazem numerosos pensadores africanos, buscando idéias do ser, do conhecer, dos valores, do sobrenatural etc. Isso outorgou à noção de “filosofia africana” um significado diferente do que teve a “filosofia latino-americana” e, no final do século XX, um caráter notoriamente mais vital.

8 Teologia da Libertação na Ásia – É sabido que uma das escolas de pensamento de origem latino-americana mais difundidas mundialmente foi a Teologia da Libertação. A sua difusão na África, Europa e Ásia é importante para entender os processos de exportações eidéticas da América Latina, assim como a existência de diversas combinações que deram origem aos produtos eidéticos latino-americanos nos mais variados ecossistemas intelectuais. O problema da “inculturação” da teologia ou, mais amplamente, do cristianismo na Ásia é colocado para quem estuda idéias ligadas ao aparecimento de novas formas eidéticas: seja como produto do cruzamento entre diversas trajetórias do pensamento (entre o cristianismo e o budismo, por exemplo), seja como adaptações de organismos eidéticos que se viram obrigados a mudar para se adaptar e prosperar em ecossistemas diferentes daquele em que se originaram (Teologia da Libertação na África do Sul ou no Sri Lanka) (ver Pieris, 1988).

9 Panteras Negras da Austrália – Os movimentos reivindicatórios dos afro-descendentes gerados no Caribe e Estados Unidos não tiveram eco somente na África, como se diz, mas também na América Latina, Europa e Oceania. Vale a pena mencionar a aceitação do movimento Panteras Negras na Austrália, que se observa em 1968, influenciando a fundação da Australian Black Panter Party, no começo dos anos 1970. No ativismo político dos aborígines australianos da época, era conhecida a obra de autores como F. Fanon, Stokely Carmichael e Malcolm X, entre outros (ver Lothian, 2005).

10 Três momentos na inserção da intelectualidade periférica nas grandes cidades do centro – Podem ser distinguidos três momentos na inserção da intelectualidade periférica nas grandes cidades do centro. O primeiro vai aproximadamente até 1920 e se caracteriza pela existência de figuras importantes, mas isoladas. Exemplo disso é Andrés Bello, Alexander Herzen e J. Afghani. Em 1920, ou um pouco antes, ao contrário, pode-se observar a presença de núcleos relativamente numerosos de políticos intelectuais: o dos chineses em Tóquio, algo atípico, o dos espanhóis e latino-americanos, o da negritude em Paris nos anos 1930, o dos pan-africanistas em Londres nos anos 1930. Esses grupos não conseguem, porém, se inserir nos meios acadêmicos. A partir de 1970, aproximadamente, e como conseqüência de massivos exílios e da obtenção de pós-graduações, a intelectualidade de regiões periféricas (Índia, África, América Latina) adquire uma presença institucionalizada nos setores acadêmicos dos Estados Unidos, da Inglaterra, França, Alemanha, do Canadá e da Espanha, para citar alguns exemplos.

11 Figuras latino-americanas e caribenhas citadas no pensamento sul-saariano do final do século XX – O pensador latino-americano mais lido na África nas últimas décadas do século XX foi, sem dúvida, Frantz Fanon, sem mencionar, com certeza, romancistas ou poetas, que não são objetos desta investigação. Mas Fanon é um pensador bastante isolado da ocupação intelectual latino-americana, tanto por suas leituras como por seus contatos. Depois de Fanon, podem ser destacadas, no terreno das ciências econômico-sociais, duas figuras fronteiriças, como o são André G. Frank e Walter Rodney, germano-norte-americano e residente no Brasil e no Chile o primeiro e guianense, estudante na Jamaica e Inglaterra, professor na Tanzânia assassinado muito jovem, o segundo. Em seguida, vêm os latino-americanos propriamente ditos: Raul Prebisch, Osvaldo Sunkel e Fernando H. Cardoso, entre vários outros. Na teologia, claramente a figura mais citada é Gustavo Gutiérrez e, na pedagogia, Paulo Freire.

Fonte: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/coedicion/valdes/cap4.pdf
Formatação, organização e comentários: Reinaldo João de Oliveira.





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