terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A Consolidação de uma Teologia Africana

Um dos focos mais importantes de criatividade no final do século XX foi a produção teológica: novas publicações, encontros, discussões e debates, redes e particularmente novas misturas que geraram espécies eidéticas antes completamente inexistentes. Os avanços teológicos se assemelham a várias disciplinas: as ciências da religião, a filosofia, em especial a etnofilosofia, a teoria política e o ensaio. Embora se aproxime muito do que fazer filosófico africano, o mundo dos teólogos é mais amplo, conectando-se com a produção da América Latina e saxã e um pouco com o Oriente, além da produção européia, evidentemente.
Um dos aspectos mais notáveis na abundante produção teológica africana (teologia africana da libertação, do Contexto, do Kairos, da Reconstrução) é a proliferação de combinações e ramificações na árvore genealógica. A teologia acadêmica africana, originalmente de procedência puramente européia, se abriu à recepção de elementos provenientes de espaços muito diversos: a teologia negra norte-americana, a teologia latino-americana da libertação e as expressões conceituais da religiosidade mestiça africana e das religiões autóctones, especialmente trazidas à discussão acadêmica através da etnologia e da filosofia. Essas recepções produziram uma grande proliferação de novas expressões na teologia africana, especialmente na região austral, na luta contra o apartheid. A existência da luta anti-apartheid, em face do ecossistema intelectual em que se dava essa luta, ocasionou a multiplicação de espécies teológicas novas.8

Allan Boesak

Em 1977, Allan Boesak publica seu livro Adeus à Inocência, tentando explicitamente utilizar as categorias da teologia negra norte-americana, associando-a ao movimento do Poder Negro (Black Power)9 e ao movimento da Consciência Negra (Black Conciousness) da África do Sul. Sua proposta aponta contra os mitos criados para subjugar os africanos. Assumir isso, para as igrejas cristãs, significava o adeus à inocência (Boesak, 1977, p. 1-3). Nesse âmbito, para Boesak, a luta entre opressores e oprimidos se daria entre a preservação dos mitos e da inocência e a aniquilação de ambos e a ascensão da condição real da exploração, opressão e discriminação (idem, 1977, p. 5). Essa mesma questão, argumenta, o leva a abandonar a ilusão universalista, que impregnava a teologia ocidental (idem, 1977, p. 6).

James H. Cone

Fazendo uso da Teologia Negra (James Cone) e do pensamento político norte-americano e sul-africano, assim como da Teologia da Libertação latinoamericana (particularmente da obra de Gustavo Gutiérrez), Boesak propõe a teologia negra da libertação na África do Sul como uma teologia com o “indígena”, como outros pretenderam conceituá-la. Sua preferência pelo contextual se afirma nesse tomar a sério o processo da luta pela humanidade e pela justiça, de secularidade e de tecnologia, não atando o africano ao tradicional inocente (idem, 1977, p. 13-4).

Mercy Amba Oduyoye
Já Mercy Amba Oduyoye vê seu projeto teológico como uma “irrupção dentro da irrupção”. Se as teologias do Terceiro Mundo são uma irrupção, as teologias femininas e a presença ativa das mulheres no mundo cristão constituem uma segunda irrupção. O que por sua vez vem pôr em questão a suposta univocidade da experiência terceiro-mundista (Oduyoye, 1994, p. 24). No marco das atividades da EATWOT (Associação Ecumênica de Teologia do Terceiro Mundo), Mercy Amba destaca a importância de desenvolver essa segunda irrupção, pelo fato de o espaço teológico terceiro-mundista ter sido dominado pelos homens. Os assuntos e as experiências da mulher, do ponto de vista da mulher, se constituem em outro lócus para a Teologia da Libertação. A perspectiva feminista contribui com outro olhar, a partir de outra experiência. Ou seja, não se deve supor que homens e mulheres digam as mesmas coisas sobre a realidade africana (idem, 1994, p. 29), muito menos que as prioridades sejam idênticas na hora de determinar os objetivos. Reitera essa diferença porque em numerosas conferências internacionais os líderes homens do Terceiro Mundo insistiram em minimizar as diferenças ou tensões entre os sexos (idem, 1994, p. 30-1). Entretanto, Oduyoye assinala que seus estudos dos provérbios do povo akan, ao qual ela pertence, lhe mostraram que a mulher é vitima ancestral do imaginário lingüístico, que a socializa para aceitar seu lugar na sociedade (idem, 1994, p. 33). Portanto, não se trata de uma opressão conjuntural cuja eliminação se possa adiar em razão de causas maiores. Trata-se de uma opressão histórica que deve ser combatida juntamente com outras formas de opressão.

Jesse N. K. Mugambi
J. N. K. Mugambi, herdando e assumindo as discussões da teologia africana, pretendeu superá-las durante os anos 1990, passando de uma perspectiva liberacionista para uma reconstrutivista. No marco da nova ordem mundial, o tema da reconstrução lhe pareceu mais apropriado. Era necessário realizar uma mudança de paradigma na situação de pós-êxodo e pós-exílio. Afirma que os anos 1990 são anos de reconstrução, de renascimento e de reforma no sentido institucional e econômico (Mugambi, 1995, p. 5).
Segundo ele, o conceito de “reconstrução” é útil, além de para a teologia, para diversas disciplinas, como a sociologia, a economia e a ciência política (idem, 1995, p. 2). Os termos “construção” e “reconstrução” pertencem às ciências sociais, envolvendo a reorganização de alguns aspectos de uma sociedade e tornando-a capaz de responder melhor às mudanças circunstanciais, diz Mugambi, inspirando-se em Peter Berger e Thomas Luckmann (idem, 1995, p. 12). Nos relatos bíblicos, adverte para uma série de casos nos quais são gerados processos de restauração, de reconstrução, de formulação de sólidos projetos. Nehemias se transforma, assim, no texto central do novo paradigma para a teologia cristã na África, como o lógico desenvolvimento posterior ao tema do Êxodo (idem, 1995, p. 13).
Depois de diversos paradigmas que foram atraentes para a teologia africana, como o da libertação, do resgate, da salvação, redenção, inculturação e encarnação (idem, 1995, 13-4), o da “reconstrução” põe em relevo a necessidade de criar uma nova sociedade dentro do mesmo espaço geográfico, mas através de diferentes momentos históricos (idem, 1995, p. 15). Em todo caso, a reconstrução deve ser realizada em diferentes níveis: reconstrução pessoal, cultural e eclesiástica (idem, 1995, p. 16ss).


III – Para o Final do Século
Foram já destacadas algumas das mutações no pensamento africano, particularmente durante as décadas finais do século XX. Uma das últimas mutações produzidas foi o aparecimento de um discurso para o qual convergem as idéias feministas e as pós-estruturalistas e pós-modernas. Esse discurso se desenvolve em especial numa intelectualidade jovem, de alta formação acadêmica, que se instalou ou passou longos períodos nos meios acadêmicos do Primeiro Mundo. Aí foram constituídos redutos, não propriamente guetos, onde coexistiam pessoas provenientes da África, Índia, China, América Latina e do Caribe. Esses espaços se encontravam prioritariamente nas grandes cidades dos Estados Unidos, da Inglaterra, da França e do Canadá. Nos Estados Unidos e no Canadá, essa intelectualidade imigrante estava articulada à residente afro-americana e “hispânica” de várias gerações.


Não é a primeira vez que ocorrem grupos de intelectuais das antigas regiões coloniais nas grandes cidades do centro. Isso já acontecia desde os anos 192010, mas agora se trata de pessoas claramente inseridas na academia, da geração dos longos anos 1960, fugindo da onda de ditaduras da América Latina e da África ou buscando melhores condições de trabalho que na China ou Índia. Nesses novos espaços acadêmicos, especialmente nas ciências sociais e humanas, as mulheres adquiriram uma presença significativa, inimaginável duas décadas antes.
A intelectualidade de origem periférica inserida nesses espaços, conectada com ONGs, partidos e agrupamentos, está mais internacionalizada que aquela que permaneceu nos países de origem. Possui condições de trabalho e de vida notadamente superiores, em especial pela sua mobilidade e pelas ajudas acadêmico-laborais, que permitem certas vantagens de conhecimento a respeito de seus antigos co-nacionais, para quem ela exporta novas descobertas intelectuais, aproveitando assim para se tornar inovadora e formar sua clientela. Isso, de certa forma, e somente de certa forma, compara-se às burguesias consumidoras.


Algumas das mais importantes figuras do pensamento sul-saariano (como do latino-americano e do indiano) se encontram ou se encontravam nessa situação. É o caso de Amina Mama, Kwame A. Appiah, Valentin Mudimbe e Ali Mazrui, entre muitas outras.

Amina Mama

Ali Mazrui
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Algumas obras representativas (dos autores/as supracitados):









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Este espaço busca ser um lugar de interação com contribuições em temas relacionados às Culturas Afroameríndias, suas diversas manifestações e contextos. Nos campos de exposição, apresento em forma de reflexões alguns textos sociais, históricos, políticos, teológico-religiosos e educativos. Também o universo das artes e literaturas são outras referências, leituras e aprofundamentos, conforme este processo de interlocução dialógica em construção.
Agradeço-lhe pelo interesse em reconhecimento e atenção ao nosso trabalho!

Atenciosamente,
Reinaldo.

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