quarta-feira, 2 de março de 2011

Sentido e Possibilidade de uma Filosofia Africana


Uma das fontes de maior criatividade do final do século foi a filosofia africana, que se expressou principalmente em três vertentes: a) sobre a possibilidade e sentido dessa filosofia; b) sobre os aportes das cosmovisões ancestrais africanas, ou etnofilosofia; e c) sobre a sistematização do pensamento africano letrado.7
As discussões filosóficas estão ligadas, na primeira vertente, àquelas sobre a possibilidade das ciências econômico-sociais para a região; na segunda, às discussões da teologia e das ciências da religião; e, na terceira, a múltiplos autores e escolas do pensamento africano que servem de base para desenvolvimentos seguintes.
Paulin Hountondji

Uma das pessoas que mais contribuiu para a discussão sobre o sentido do que se chamou “filosofia africana” foi Paul Hountondji. Em um texto originalmente escrito em 1973 e reelaborado posteriormente, discute o que denomina “conceito popular” da filosofia, entendida como a cosmovisão de um povo ou de uma cultura, uma visão “unânime” sobre a realidade, os valores ou as relações interpessoais, designada como filosofia, mas que não o é propriamente (Hountondji, 1991, p. 11-2). O fundador dessa idéia “popular” foi Placide Tempels, com A Filosofia Bantu, seguido por Aléxis Kagame, com A Filosofia Bantu-Ruandesa do Ser, e por John Mbiti, com Religiões Africanas e Filosofia, assim como por toda uma trajetória constituída por clérigos das diversas confissões cristãs, que olharam para seus povos como objetos de cristianização (idem, 1991, p. 115). Essa linha de trabalho tem a sua base no mito da “unanimidade primitiva” e na existência de “sistemas de crenças” (idem, 1991, p. 117). Hountondji acredita que esses trabalhos, inspirados no “dogma da unanimidade”, ao mesmo tempo que não constituem propriamente obra filosófica, não foram totalmente estéreis para a África, pois contribuíram para a geração de uma “literatura filosófica”. A partir disso, pretende elaborar uma distinção entre essas visões “implícitas, coletivas e espontâneas” e o que acredita caracterizar verdadeiramente a ocupação filosófica, que é uma “atividade analítica, deliberada, explícita e individual” (idem, 1991, p. 119).
A africanidade decorre, para a filosofia, de sua dimensão geográfica, ou seja, por ser realizada por africanos, e não por ser uma especificidade metafísica (idem, 1991, p. 123). Esse conjunto deve incluir pessoas que não crêem no mito da filosofia coletiva, assim como aqueles que não se referem especificamente à experiência africana. Por ser o geográfico aquilo que define, deve abranger igualmente africanos que trabalham sobre temas tradicionais e sobre autores da filosofia européia (idem, 1991, p. 121-3). A tarefa dos filósofos africanos, se desejam desenvolver uma autêntica filosofia africana, em conseqüência, argumenta Hountondji, não consiste em buscar especificidades, mas sim em promover e sustentar uma constante discussão sobre todos os problemas que concernem à disciplina (idem, 1991, p. 124).

Kwasi Wiredu

Kwasi Wiredu, por sua vez, se referiu à urgente necessidade de uma nova filosofia na África, que deve ser crítica e reconstrutiva e, portanto, capaz de uma cuidadosa discriminação, no corpo de idéias tradicionais, entre aquelas anacrônicas e as que podem contribuir para o florescimento humano na África contemporânea. Em relação a isso, levanta a necessidade de infundir na população africana os hábitos mentais característicos da ciência: exatidão, rigor no pensar, coerência, aproximação experimental. Isso porque a ciência é um fator crucial para a transformação social da África e para o desenvolvimento (Oladipo, 1995, p. 4). Articulado ao anterior, postula a necessária apropriação da filosofia útil em outras culturas para a África e, decerto, o estudo das heranças ancestrais africanas para extrair daí tudo de válido (idem, 1995, p. 6).
Wiredu tentou elaborar uma agenda para a filosofia africana dialogando com outros promotores dessa mesma percepção, como Kwame Gyekye e Odera Oruka. “Investigando nossas filosofias tradicionais, devemos responder às incitações da reflexão filosófica, que são inerentes à condição humana”, mas, esclarece simultaneamente, é necessário, além de expor esses pensamentos, “avançar na correção de interpretações errôneas do pensamento africano tradicional, pois se trata de avaliar e reconstruir nossa herança para construir a partir dela” (Wiredu, 1995, p. 17). Correlativamente, trata-se de uma tarefa de descolonização mental que tem duas faces: a “negativa”, que consiste em reverter, através de uma autociência conceitual crítica, as não-examinadas assimilações de nosso pensamento, emprestadas das tradições filosóficas estrangeiras; e a “positiva”, que consiste em explorar os recursos de nossos próprios esquemas conceituais indígenas (idem, 1995, p. 22). A colonização da África se fez através da política, da religião e do idioma. Esse último foi o mais importante meio de colonização mental e isso se observa particularmente na disciplina filosófica.
Odera Oruka, com sua proposta de uma filosofia sábia ou da sabedoria (sage philosophy), pretende instalar a sabedoria africana em pé de igualdade com a filosofia européia ou, pelo menos, com a dos pré-socráticos. Uma visão que associa a filosofia com a cultura dos brancos, inclusive com o branco masculino, e que considerou que Tales de Mileto, Anaximandro, Heráclito, Parmênides e Sócrates eram filósofos. Alguns dos sábios gregos são vistos como filósofos, argumenta Oruka, por terem proposto uma ou duas sentenças. Tales, por exemplo, é conhecido por ter dito que tudo é composto de água e Heráclito por ter afirmado que a luta é a verdade de toda vida. Decerto, na África, podiam ser encontradas entre os sábios muitas informações desse gênero (Oruka, 1998, p. 99-100). Além dessa argumentação básica, Oruka se interessa por considerar epistemologicamente o que poderia chamar-se das formas de fazer filosofia na África e destaca, então, seis tipos de ocupação: a etnofilosofia, a filosofia profissional, a filosofia nacionalista-ideológica, a filosofia africana hermenêutica, a filosofia africana artística ou literária e a sabedoria filosófica, da qual ele mesmo se ocupa (Oruka, 1998, p. 101). Seu projeto no Quênia consiste em detectar os “sábios”, muitas vezes pertencentes a culturas ágrafas, para escrever o seu pensamento. Esse tipo de sábio pode ser encontrado em qualquer sociedade, não sendo um privilégio das africanas ancestrais. Esses são os custos do desenvolvimento de suas respectivas sociedades. De fato, diz, uma sociedade sem sábios facilmente será tragada, transformando-se num apêndice de outra (Oruka, 1998, p. 101).
Um “sábio”, no sentido filosófico, o é somente na medida em que é consistente com os problemas e desafios étnicos e empíricos fundamentais de sua sociedade e é capaz de oferecer soluções para tais problemas (Oruka, 1998, p. 100). Oruka insiste que não se deve confundir a pessoa “sábia” com os informantes a que se referem os antropólogos, nem tampouco com o filósofo. A pessoa sábia é crítica e independente, “conhece sua própria mente” e mantém uma distância crítica diante da autoridade e do senso comum, resumiu Marlene van Niekerk (1998, p. 79).

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Outros autores e escritos filosóficos destacados:


Placide Tempels

Aléxis Kagame


John Mbiti


 










2 comentários:

  1. Gostei do texto, Reinaldo, oferece um panorama interessante, porque fornece uma direção pra quem quiser se aprofundar no assunto. Minha pesquisa é sobre filosofia africana. Se você tiver informações sobre as pessoas que estão trabalhando com pensamento africano na área de filosofia, especificamente, compartilhe aqui, por favor.
    Abraço.
    Rodrigo.

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  2. Sou angolano sinto orgulhoso de o ser (africano)sou estudante de Filosofia no ISCED-UÍJE.
    É de congratular os esforços intelectuais que os nossos homens em área de saber estam a reflectindo na possibilidade de existencia de Filosofia Africana como uma realidade concreta.
    É bem verdade que a História Universal, venho à nos ensinar que África é o berço da Humanidade, neste contexto eu como Makelense, tiro a hipótese de que é em Africa onde surgiu Filosofia,porque a própria existencia primária já colocava ao primeiro homem africano neste de berço da humanidade a questionar-se.

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Este espaço busca ser um lugar de interação com contribuições em temas relacionados às Culturas Afroameríndias, suas diversas manifestações e contextos. Nos campos de exposição, apresento em forma de reflexões alguns textos sociais, históricos, políticos, teológico-religiosos e educativos. Também o universo das artes e literaturas são outras referências, leituras e aprofundamentos, conforme este processo de interlocução dialógica em construção.
Agradeço-lhe pelo interesse em reconhecimento e atenção ao nosso trabalho!

Atenciosamente,
Reinaldo.

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