A Escola da Dependência
No âmbito das ciências econômico-sociais da época, década de 70, o tema do desenvolvimento pôde ser formulado a partir de outro ponto de vista, como o da “dependência”. Em lugares como o Quênia, o Senegal e a Tanzânia (assim como em vários países da Ásia, particularmente do subcontinente indiano4), desenvolveu-se um pensamento dependentista africano que, inspirado em grande parte nas idéias geradas na América Latina, seguiu caminhos especificamente africanos. Houve maior originalidade na Tanzânia, país privilegiado nos anos 1970 pela afluência de uma intelectualidade procedente de diversos lugares, o que motivou uma efervescência intelectual excepcional.5 Ali se desenvolveu um pensamento para o qual confluíram trajetórias africanas e latinoamericanas, com alguns elementos europeus e USA-americanos. Uma instituição como o Fórum Terceiro Mundo cumpriu importante tarefa nos contatos e na circulação de idéias.6
Justinian Rweyemamu
Justinian Rweyemamu é o cientista econômico-social tanzaniano da época com maior reconhecimento internacional e ao mesmo tempo quem mais utilizou a produção intelectual latino-americana. Seu problema teórico foi entender o funcionamento da economia do país, em particular seu baixo nível de industrialização, e propor um modelo viável no âmbito da economia mundial. Propôs pensar a economia mundial e sugerir transformações em benefício dos pequenos países subdesenvolvidos como a Tanzânia. Em um trabalho de 1969, já aludia às “estruturas da periferia”, indicando com precisão que “o termo periferia” seria usado “para se referir aos países capitalistas ‘subdesenvolvidos’ ou ‘em desenvolvimento’” e que esse conceito “se origina em Prebisch” (Rweyemamu, 1991, p. 37 e 48). Avançando nas precisões conceituais, assinala que “a palavra ‘centros’” seria usada “para denotar países desenvolvidos com economia de mercado”, relacionando essa afirmação com o livro Capitalismo e Subdesenvolvimento na América Latina, de André Gunder Frank (idem, 1991, p. 48), e acrescentando, mais à frente, que “a relação metrópole-satélite é explorada cabalmente por A. G. Frank” (idem, 1991, p. 49). Em um texto de 1973, “Um Modelo Perverso de Desenvolvimento Industrial Capitalista”, Rweyemamu define o que do seu ponto de vista foi o tipo de industrialização na África. Comparando-o com aquele “processo de crescimento do produto per capita que se desenvolveu nas economias nacionalmente integradas, flexíveis e capazes de crescimento autogerado e auto-sustentado” (idem, 1991, p. 52), destaca, recorrendo a F. Fanon, que nas “economias periféricas” a industrialização foi levada a cabo por “empresários do centro”, gerando diferenças radicais entre o mundo dos colonizadores e o dos colonizados. Rweyemamu se interessa precisamente em focar essa realidade africana, que se volta a um período anterior à produção industrial, o do tráfico de escravos. O tráfico na África “destruiu suas instituições e retardou seu crescimento”, depois veio a partilha do continente entre os europeus, coisa que deturpou as sociedades e usurpou o poder dos africanos, sendo criadas relações de dependência com os poderes metropolitanos. Isso teve como conseqüência uma balcanização (citando K. Nkrumah) de países pequenos, em termos de população e renda, tornando-os pouco viáveis para a industrialização (idem, 1991, p. 58-9).
F. Fanon |
Kuame Nkrumah |
Em outro texto publicado no ano de 1972 (ainda que posterior ao anteriormente citado, pois, além disso, o consigna na bibliografia), define as características do subdesenvolvimento como ligadas às “relações de dependência” criadas pela divisão do trabalho colonial, que produz um crescimento perverso. Propõe, em decorrência, que o sistema a “ser adotado para superar o subdesenvolvimento” deveria ser “capaz de liquidar as relações de dependência”. Este seria um sistema socialista que implicasse “a quebra da dependência econômica dos investimentos privados externos”. Por outro lado, tal socialismo deveria gerar simetria, cuja falta produz a dependência do país, tanto dos mercados externos, como dos bens de capital importados, com a posterior conseqüência da dependência tecnológica (idem, 1991, p. 93). Nesse momento, Rweyemamu combina o diagnóstico realizado com as categorias provenientes da América Latina com a solução proposta pelo presidente Nyerere. Aparecem conceitos como “a iniciativa do povo” e “as experiências e os projetos do povo” e, com certeza, a “auto-suficiência”. Assim, postula que “o subdesenvolvimento pode ser erradicado se e somente se as relações de dependência forem eliminadas, na medida em que a economia da Tanzânia se integra internamente e se faz auto-suficiente” (idem, 1991, p. 94), questão que tem a ver com a eliminação da alienação e as relações de exploração (idem, 1991, p. 95).
ex-presidente Julius Nyerere
Em 1975, Rweyemamu produz um trabalho – “Interpretação Econômica da Auto-Suficiência” – em que continua na linha de combinar os instrumentos conceituais latino-americanos com a proposta da auto-suficiência (1991, p. 220). Depois, escreve vários outros sobre a industrialização na África em suas relações com a ordem mundial, a velha e a nova. Para abordar esses temas, assimila algumas idéias dos caribenhos, citando particularmente Clive Y. Thomas e Havelock Brewster, que se ocuparam das pequenas economias, inspirando-se na produção latino-americana, mas gerando também reflexões autônomas. A obra de Thomas (1974) fora muito citada na África, escrita enquanto residia na Tanzânia nesses anos.
Em 1980, Rweyemamu publica um trabalho intitulado “Industrialização e Distribuição de Renda na África. Uma Agenda de Investigação”. Nele faz referência a diversos temas, como a substituição de importações, a dependência africana das importações, as experiências fracassadas de industrialização, a continuação da dependência apesar da nacionalização das riquezas, a ausência de investimentos diretos, os problemas derivados da concentração da industrialização em poucas cidades, entre outros. Em relação a esses assuntos, sua interpretação é que a economia colonial, que a África herdou, conduz os países inevitavelmente à industrialização dependente, incapaz de criar uma economia que gere desenvolvimento auto-sustentado, assim como um sistema econômico com razoável equilíbrio entre a estrutura de produção e a de consumo (Rweyemamu, 1982, p. 2). Em razão disso, diz que o desenvolvimento industrial, como proposta, não pode ser definido à margem dos objetivos de uma determinada sociedade (idem, 1980, p. 1). Sendo assim, segundo ele, na medida em que os países africanos já se comprometeram como parte da Nova Ordem Econômica Internacional, com a política de auto-suficiência e necessidades básicas, uma estratégia industrial para a África nos anos 1980 deve ter em mente tais objetivos. A escolha de atividades deve ser voltada para reunir necessidades básicas, guiadas pela necessidade de estabelecer uma economia de auto-suficiência. (Rweyemamu, 1980, p. 10-1.) Nesse sentido, afirma que a chave é desenvolver uma proposta de industrialização em relação ao “background histórico” africano (idem, 1980, p. 11) e isso teria a ver com o fato de que a substituição de importações gerou maior penetração do capital internacional nas economias africanas e com o não-aproveitamento das próprias capacidades, sendo necessário conhecer as relações entre bens de capital e de consumo das massas e, em definitivo, elaborar uma concepção diferente da utilização dos próprios recursos (idem, 1980, p. 11-2).
Rweyemamu desenvolve mais essas idéias num artigo de 1981, “A Formulação de uma Estratégia Industrial para a Tanzânia”. Diz que o país buscava “uma estratégia de desenvolvimento diferente” e que os “objetivos da sociedade tanzaniana” abrangiam o “conceito de auto-suficiência, em todos os níveis do processo econômico”. Diz ainda que, no nível da tomada de decisões, isso implicaria “o desejo de construir e usar a capacidade para uma tomada de decisões autônoma e sua implementação em todos os níveis” e que, em relação à produção, a auto-suficiência requeria “o desenvolvimento de uma capacidade indígena para gerar e colocar em uso os elementos de conhecimento técnico que um processo autônomo de tomada de decisões selecionou, para o abastecimento indígena” (idem, 1981, p. 16).
Rweyemamu como Nyerere, e decerto em contato com o pensamento deste, vai construindo um modelo de interpretação e de proposta sobre a economia e particularmente sobre a industrialização em seu país e em seu continente. Sem dúvida, para tal tarefa, utiliza diversos conceitos e categorias elaborados na América Latina, recebidos em parte já “digeridos” ou mesclados por outros africanos, como o próprio Nyerere ou Samir Amin.
Walter Rodney |
Walter Rodney utilizou, mais que outros autores tanzanianos ou residentes, o material teórico original da América Latina com o objetivo de interpretar o passado africano; foi também quem realizou a mais importante reelaboração, misturando esse material com elementos do pensamento afro-americano e africano, articulando dependentismo, escravidão, racialismo e independência africana, tudo isso no âmbito de uma perspectiva identitária. Rodney é quem executa as reelaborações mais complexas e com maiores projeções para o pensamento negro posterior, que se converte em um caso privilegiado para a ideologia. Para desenvolver essas hipóteses, deve-se notar em primeiro lugar que a obra de Rodney acusa leituras de autores como Furtado, A. G. Frank, Samir Amin e outros impregnados das categorias estrutural dependentistas. O que Rodney faz, diferentemente de outros autores aos quais interessa criar um projeto econômico-político para a Tanzânia, é procurar um modelo interpretativo do processo histórico do subdesenvolvimento e da dependência. Atua como historiador e não como planejador da economia, por isso não cita nem discute com Prebish como Rweyemamu, o que não impede que em um tom menor realize algumas propostas de caráter geral, como aquela da necessidade de uma revolução que logre desligar a África da economia capitalista ocidental.
A obra mais importante de Rodney foi, sem dúvida, Como a Europa Subdesenvolveu a África, publicada em 1972 e de imenso impacto no pensamento negro mundial. Sua proposta fundamental é que “o desenvolvimento africano” somente seria possível “a partir de um corte radical com o sistema capitalista internacional, que foi o principal agente do subdesenvolvimento na África, durante os últimos cinco séculos” (Rodney, 1974, p. VII). Acreditava que o capitalismo rapidamente se extinguiria (idem, 1974, p. 11) e que, seja por isso ou apesar disso, o desenvolvimento passava pela ruptura com esse sistema, pela independência (idem, 1974, p. 4), porque o subdesenvolvimento, como para outros dependentistas, não é sinônimo de pobreza, desnutrição, insalubridade ou ineficiência, mas sim da “relação de exploração de um país sobre outro” (idem, 1974, p. 14). Para ele, esse foi o caso da África, já que, quando as regras de comércio são fixadas por um país de uma forma totalmente vantajosa para ele, então o comércio está geralmente em detrimento do sócio (idem, 1974, p. 22). Sintetiza suas idéias a respeito disso quando afirma que os escritores mais progressistas dividem o sistema capitalista-imperialista [alude a Pierre Jalee] em duas partes. A primeira é a dominante, ou seção metropolitana, em que os países do segundo grupo são freqüentemente chamados de “satélites”, porque estão na esfera das economias metropolitanas [alude a A. G. Frank]; e estão integradas de um modo desfavorável para a África, garantindo que a África é dependente dos países capitalistas. A dependência estrutural é uma das características do desenvolvimento. (Rodney, 1974, p. 25.) Especialmente em sua obra principal, How Europe Underdeveloped Africa, mostra leituras de diversas escolas de pensamento: a cepalino-dependentista (C. Furtado, A. G. Frank); a neomarxista (L. Huberman, A. G. Frank, S. Amin); a racialista e pan-negrista caribenha (C. L. R. James, E. Williams, A. Césaire, F. Fanon); a independentista africana e pan-africanista (K. Nkrumah, J. Nyerere, A. Cabral); a identitarista africana (J. C. Hayford); a pan-negrista (W. E. B. Du Bois, M. Garvey, G. Padmore, K. Nkrumah); a historiografia de iniciativa africana (T. S. Ranger, B. Davison). Pode-se também mencionar casos como o tunisiano A. Memmi e os ulemás argelinos, que servem de inspiração a Rodney para algumas de suas idéias (ver Devés-Valdés, 2005c).
Uma Perspectiva de Gênero
Afirmar que os textos que sistematizaram a história do pensamento africano, foram, não “predominantemente”, mas quase absolutamente masculinos, pode ser uma redundância. A ausência em tais textos de referências à obra de Olive Schreiner, Adelaide Smith (de Casely Hayford), Nadine Gordimer, entre outras figuras, sem dúvida, empobrece a compreensão do pensamento sul-saariano. As ciências sociais, decisivas no pensamento sul-saariano do último terço do século XX mas inexistentes nos períodos anteriores, expressam em suas evoluções e polêmicas alguns dos assuntos mais vitais do pensamento regional.
Ayesha Imam |
A renovação do pensamento feminino-feminista é particularmente notória em 1990 e um pouco antes. As análises de gênero, os estudos da mulher e a investigação feminista, situadas no seio das ciências sociais, envolvem críticas e desafios aos paradigmas dominantes, destaca Ayesha Imam (1999, p. 8). Esses tipos de trabalhos desafiam a androcentricidade das ciências sociais, mostrando como e através de que mecanismos as ciências sociais ignoram e marginalizam a contribuição que as mulheres trazem para a sociedade na África, colaborando para inferiorizá-las e subordiná-las, gerando um conhecimento sexista que legitima a ordem masculina dominante (Imam, 1999, p. 8). Imam postula que classe, gênero, raça e imperialismo são forças sociais simultâneas que interagem umas com as outras e que devem, portanto, ser consideradas em conjunto (idem, 1998, p. 21).
Fatou Sow |
Fatou Sow resenhou sobre o que ocorreu nas últimas décadas do século XX com os estudos sobre a mulher e o gênero na África, dando conta de investigações, atas de reuniões internacionais, projetos de trabalho etc., tentando detectar os traços de um pensamento e particularmente as potencialidades. Desse modo, determina os âmbitos que seriam enriquecidos com uma abordagem de gênero, como a organização social, técnica e econômica da produção agrícola e a questão da democracia, por exemplo (Sow, 1999, p. 47). Insiste em que repensar esses âmbitos levando em conta a perspectiva de gênero renovará e ou potencializará o trabalho das ciências sociais para a redefinição dos objetivos do desenvolvimento (Sow, 1999, p. 58). Por outro lado, deve-se assinalar que esse tipo de produção feminina-feminista é um lugar privilegiado para detectar a aparição de novas escolas de pensamento ou de hibridações que não são produzidas em outros âmbitos intelectuais. Isso se dá, por exemplo, no pensamento de Amina Mama, no qual convergem, junto às idéias feministas, um marxismo “terceiro-mundista”, teorias pós-coloniais, pós-estruturalistas, da pós-modernidade e, seguramente, posições racialistas (ver figura 17). Com esse instrumental Amina Mama escreve Além das Máscaras, sobre a construção da subjetividade das mulheres negras, iniciativa que passa por determinar a maneira como o meio acadêmico, particularmente dentro das disciplinas psicológicas, construiu historicamente o sujeito-negro (Mama, 1995, p. 1). Ela argumenta que esse sujeito foi construído pelos discursos coloniais, dominados pelos brancos, com objetivos não-científicos, marcados por relações de poder, sendo com certeza uma de suas metas desconstruir tais discursos. Mas seu trabalho, afirma, que foi desenvolvido no marco das lutas políticas do feminismo negro (idem, 1995, p. 3), visa igualmente desconstruir e recolocar os resultados do discurso da psicologia negra e africana, também limitada nas suas formulações.
Amina Mama |
Argumenta Amina Mama que a colonização não consistiu apenas na exploração material e na subordinação política dos recursos africanos e de suas formas de vida, mas também na transformação e sujeição dos africanos e africanas ao imaginário e aos caprichos da cultura imperial e de sua psicologia (idem, 1995, p. 18). A psicologia negra surgida nos Estados Unidos da América nos anos 1960 e 1970 tentou se transformar em alternativa ao discurso colonialista, ocupando-se particularmente da identidade negra (idem, 1995, p. 54), mas alcançando apenas resultados muito parciais, devido às inspirações teóricas que abraçou.
Amina Mama quer em definitivo elaborar um modelo de análise que considere a tripla opressão, compreendendo o econômico, o racial e o gênero (idem, 1995, p. 145). Para isso, deve ao mesmo tempo ter em conta que a subjetividade não é algo imutável, mas sim variável, e que, além disso, os processos de constituição dos sujeitos são mais rápidos e complexos do que se postulou. Esses processos consistem nos modos como os sujeitos vão se sobrepondo aos condicionamentos negativos e aos desafios, construindo identidades nas quais se combinam elementos socioistóricos e psíquicos. Desse modo, as mulheres negras se revelaram como agentes criadoras de novas subjetividades (idem, 1995, p. 163ss).
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Este espaço busca ser um lugar de interação com contribuições em temas relacionados às Culturas Afroameríndias, suas diversas manifestações e contextos. Nos campos de exposição, apresento em forma de reflexões alguns textos sociais, históricos, políticos, teológico-religiosos e educativos. Também o universo das artes e literaturas são outras referências, leituras e aprofundamentos, conforme este processo de interlocução dialógica em construção.
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Atenciosamente,
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