domingo, 20 de março de 2011

A Intelectualidade e a Afirmação Cultural Africana

Em 1954, foi realizado no Cairo o primeiro congresso islâmico, promovido pelos governantes do Egito, Arábia Saudita e Paquistão. O segundo foi realizado em 1964. Alguns dirigentes do mundo muçulmano propuseram reunir as forças dispersas e orientá-las a serviço da paz, reformar as relações entre os países muçulmanos e dar um novo impulso à islamização da África.

Universidade de Al-Azhar

A partir das universidades do Mediterrâneo e do Oriente Médio, a atividade missionária se expandiu até a região sul-saariana. Assinalou-se que a Universidade de Al-Azhar, no Cairo, tinha em 1977 uns 10 mil estudantes sul-saarianos. De volta aos seus países, eles se ocupam de afirmar as convicções religiosas, transformam-se em propagadores da língua árabe e dos programas de formação existentes nos países árabes (sobre isso, ver Solages, 1992, p. 470ss).

Universitária em Al-Azhar

Mulheres na Universidade Al-Azhar - Cairo
Tudo isso favoreceu a manifestação e a articulação de uma intelectualidade islâmica, tanto da antiga como dessa nova procedência. Entre os mais conhecidos, encontram-se o economista senegalês Cheikh Hamidou Kane, o malinês Amadou Hampate Ba, que foi diretor do Instituto de Ciências Humanas de Bamaco, o senegalês Cheikh Touré e o sudanês Hasan al Turabi.


Hasan al Turabi

Touré e Turabi são herdeiros do salafismo, o primeiro pelo lado dos Ulemás argelinos e o segundo pelo lado dos Irmãos Muçulmanos, e militantes do islamismo e promotores de organizações: Touré, da União Cultural Muçulmana, em 1953, e da revista Estudos Islâmicos, em 1979, e Turabi, da Frente Nacional Islâmica, em 1985. Em uma linha mais acadêmica, pode-se situar Hampate Ba, originário de Mali e o autor muçulmano mais citado nos meios intelectuais sul-saarianos da época, por sua defesa das línguas e culturas autóctones.

Amadou Hampate Ba

Amadou Hampate Ba – que poderia ser considerado tanto antropólogo e compilador cultural, como estudioso das religiões e teólogo islâmico e se desenvolveu no Instituto Francês da África Negra (depois da independência do Senegal, Instituto Fundamental da África Negra, Ifan) e logo na Unesco – afirmou ter colocado como objetivo “falar aos europeus sobre a tradição africana e a cultura” (Hampate Ba, 1972, p. 21). Esse objetivo o conduz diretamente ao seu trabalho de resgate das culturas orais, assim como à tarefa de criar uma escrita-padrão para as várias línguas da região que envolve o Mali, o Senegal e outros territórios adjacentes.

Hampate Ba traça um tipo de agenda em que estabelece uma série de pontos. Um deles consiste na necessidade de afirmar a diferença entre escrita e cultura, conceitos esses que não são sinônimos. Apoiando-se em seu mestre Tierno Bokar, destaca firmemente que “a escrita é uma coisa e o saber é outra” (idem, 1972, p. 22). Segundo ele, a cultura oral é cultura e possui uma capacidade muito grande, sendo tão precisa e rigorosa que permite reconstituir os acontecimentos dos séculos anteriores nos seus detalhes (idem, 1972, p. 25).


O segundo ponto ao qual se dedica é afirmar a noção de ser humano que se desprende da cultura oral, em que a força da palavra é maior do que naquela em que se pratica a escrita. Na cultura oral, sustenta, a palavra compromete o ser humano, a palavra é o ser humano (l’homme) (idem, 1972, p. 25).

Um terceiro elemento se refere ao tipo de saber africano, que caracteriza dizendo que “o conhecimento africano é um conhecimento global e vivo” (idem, 1972, p. 26). Tal conhecimento, que é passado de geração em geração e que está relacionado a ritos iniciáticos, foi interrompido pela ação externa da colonização.
Para isso, o colonizador tentou destruir a escola africana e perseguir os de tentores da cultura tradicional. Assim, a transmissão iniciática, durante a época colonial, para sobreviver, refugiou-se na clandestinidade. Mas, na verdade, foram as idéias ocidentalizadas das independências as mais destruidoras dessas culturas, pois penetraram mais profundamente que as idéias coloniais (idem, 1972, p. 26-7). Em todo caso, sua tarefa consistiria em salvar o “prodigioso capital de conhecimentos e de cultura humana acumulada através de milênios nesses frágeis monumentos que são os seres humanos” (idem, 1972, p. 28).

Uma das experiências teatrais baseadas nos ensinamentos de Tierno Bokar

Um quarto elemento é o da reabilitação das línguas, que permitiria a cada etnia valorizar a tradição original, pensar em sua língua, recorrer às tradições na sua língua, sem perder o sabor e a força (idem, 1972, p. 31). Com certeza, a língua colonial não favoreceu nem desenvolveu as originalidades clânicas, mas, por outro lado, permitiu criar uma unidade lingüística dificilmente realizável por outros meios (idem, 1972, p. 30). Já que se trata de ajudar a África a expressar e desenvolver sua própria personalidade, e permitir-lhe falar por si mesma, porque caberia aos africanos falar da África aos estrangeiros, e não o inverso (idem, 1972, p. 31), isso não poderia ser feito senão reabilitando as línguas. De fato, o abandono das línguas locais afastaria o africano, afirma, mais cedo ou mais tarde, de suas tradições e modificaria a própria estrutura de seu espírito, o que significaria amputar da humanidade uma de suas riquezas, um estilo de vida profundamente humano, fraternal e equilibrado, cada vez mais raro na humanidade moderna (idem, 1972, p. 32). E somente através das línguas é que se poderia chegar à alma real da África (idem, 1972, p. 33).


A Africanização das Ciências Econômico-Sociais

Em certo sentido, pode-se afirmar que as ciências econômico-sociais inauguram o último terço do século XX na região sul-saariana. Por outro lado, esse último terço do século é formado pela primeira geração “acadêmica”, ou seja, com formação curricular completa, instalada amplamente no interior do aparelho universitário, associada a programas docentes e a um sistema de pesquisa e publicações. Isso permitiu a criação de novas redes intelectuais, mais amplas, sólidas e duradouras que as anteriores no eixo Senegal, Nigéria, Uganda, Tanzânia e Quênia, ainda que com algumas ramificações e conexões prematuras com uns poucos países e logo depois com muitos, inclusive alguns dos quais com a intelectualidade lusófona. Mas não é menos importante assinalar que, agregada à mudança institucional, ocorre uma mudança nos paradigmas, confrontam-se as ciências econômico-sociais com os grandes pensadores do período da independência. Planta-se agora um novo desafio que consiste em elaborar uma teoria pós-independência política que permita construir e, sobretudo, explicar os problemas econômico-sociais da África, os de longa data e os novos que se vão manifestando – política de desenvolvimento, causas da dependência nova e antiga, funcionamento do comércio internacional –, e que permita, ao mesmo tempo, a discussão teórica sobre a possibilidade e o sentido das ciências econômico-sociais africanas. Em alguns momentos, esse último problema esbarra em preocupações que já eram abordadas nos escritos da negritude ou nas propostas historiográficas de Cheikh A. Diop. Mas os cientistas econômico-sociais não relacionam suas perguntas à trajetória do pensamento do qual são parcialmente herdeiros, ainda que não conscientes disso, como em outros lugares, como, por exemplo, na América Latina. Os cientistas econômico-sociais conhecem pouco ou nada da trajetória do próprio pensamento, aludindo notoriamente mais às escolas internacionais: a economia do desenvolvimento, o marxismo, tanto “clássico” como “neo”, e o dependentismo. É verdade, por outro lado, que, mesmo desconhecendo a própria trajetória intelectual, não deixam de possuir certa sensibilidade em relação ao periférico. Com certeza, isso é o que os leva a recorrer às formulações “terceiro-mundistas” da economia do desenvolvimento e do marxismo.2
Cheikh Anta Diop
Deve ser notada também a consolidação, nesse espaço, de uma intelectualidade africana não-negra. Um conjunto de pessoas nascidas na África, mas de ascendência árabe ou indiana, que conquistam presença nesse meio acadêmico, representando um salto importante em relação a uma intelectualidade asiática do período anterior na África do Sul, no Quênia, na Tanzânia ou em Uganda que se articulava em torno de organizações políticas, gremistas e de diversas publicações, mas que carecia de um espaço universitário. Samir Amin, Abdul Sheriff, Issa Shivji, Mahmood Mamdani, Yash Tandom são algumas das pessoas que se destacam nesse meio.3 Por suas origens étnicas, esse grupo não tende a pensar em termos de negro versus branco, mas sim, principalmente, em termos de classes sociais ou espaços geoculturais África versus Europa, Terceiro Mundo versus Primeiro Mundo ou periferia versus centro. Nisso coincide com o importante grupo de cientistas econômico-sociais do Primeiro Mundo, radicais políticos em sua maioria que, instalando-se na África, contribuem para a criação do campo das ciências econômico-sociais e que tampouco pensam em termos raciais ou étnicos. Esses são, entre outros, Colin Leys, John Saul, John Iliffe, Colin Pratt. Para a instalação das ciências econômico-sociais, deve-se também mencionar o grupo de origem caribenha, esse, sim, com forte marca racial: Walter Rodney e Clive Y. Thomas, entre outros.



O Desafio do Desenvolvimento
Claude Ake, um dos mais importantes especialistas em ciências econômico-sociais da África Sul-Saariana, ocupou-se da relação entre estas e o problema do desenvolvimento, sem dúvida, o maior desafio que é formulado nos anos 1970.

Uma primeira dificuldade, afirma Ake, é que as concepções sobre o desenvolvimento estão cheias de contradições e ambigüidades, do que decorre a necessidade de ministrar uma definição adequada do conceito “desenvolvimento”.
De fato, as concepções que são utilizadas na África são inadequadas porque, inspirando-se excessivamente nas usadas no Ocidente, terminam por tornar o Ocidente um modelo, e isso ocorre apesar de os cientistas sociais africanos geralmente criticarem a noção ocidental de desenvolvimento, questionando-se especificamente a confusão entre desenvolvimento e crescimento ou, dito de outra maneira, a concepção demasiadamente materialista (Ake, 1980, p. 6-7). Por outro lado, afirma, trata-se quase sempre de uma crítica meramente ritual, pois logo é esquecida para assumir a visão ocidentalizada.

No afã pouco comum de recuperar a trajetória das ciências econômico-sociais africanas, assim como os projetos presentes nos textos políticos, Ake passa em revista numerosos trabalhos. Menciona, entre outras pessoas, Samir Amin, Justinian Rweyemamu, Senghor, Kenyatta, Nyerere, Machel e Mengistu, que haviam tentado elaborar modelos de desenvolvimento diferentes do ocidental (idem, 1980, p. 7-8). Mas tais tentativas não foram suficientes e outras foram meramente retóricas. Em resumo, afirma Ake, a tarefa urgente a ser realizada pelos especialistas é a do esforço para encontrar um modelo de desenvolvimento de acordo com as realidades africanas, melhor do que os modelos ocidentais atualmente adotados (idem, 1980, p. 9).


Para que as ciências sociais progridam na África (assumindo sua condição africana, se se pode dizer assim), Ake postula que a chave é conhecer a realidade das próprias disciplinas: a questão dos recursos humanos, começando por fazer um inventário detalhado dos especialistas, e recorda que o Codesria e o Cerdas se ocuparam desse assunto; também se deve conhecer a realidade dos programas existentes e em especial daqueles que se estão ocupando do desenvolvimento; o estado das relações entre os estudiosos africanos e os de outras regiões do mundo; e a estrutura de investigação na qual estão inseridos a institucionalidade e o financiamento (idem, 1980, p. 13-5). Por outro lado, advoga que, além das próprias ciências sociais, deve-se conhecer o uso que se está fazendo delas – produção, distribuição e utilização –, o que tem a ver com a situação política.

um "outro" ponto a ser aprofundado...


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Este espaço busca ser um lugar de interação com contribuições em temas relacionados às Culturas Afroameríndias, suas diversas manifestações e contextos. Nos campos de exposição, apresento em forma de reflexões alguns textos sociais, históricos, políticos, teológico-religiosos e educativos. Também o universo das artes e literaturas são outras referências, leituras e aprofundamentos, conforme este processo de interlocução dialógica em construção.
Agradeço-lhe pelo interesse em reconhecimento e atenção ao nosso trabalho!

Atenciosamente,
Reinaldo.

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