quarta-feira, 18 de julho de 2012

Sobre “MAGIA NEGRA”


Acontecimentos trágicos envolvendo vítimas de violência, crianças, no interior do Brasil, trazem uma recorrente controvérsia sobre ‘rituais’, pejorativamente chamados pela mídia como “magia negra”. Em muitos desses casos, a polícia também, que tem o papel de investigar acaba errando ao denominar algo do tipo referente a matérias deste tema. O fato de alguns agentes despreparados desconhecerem as religiões de matriz africana, acabam chamando indivíduos que cometem esses crimes por títulos religiosos do Candomblé, ou Umbanda.
Sem entrar muito nos méritos do que se estabelece como fato, o que acontece seguidamente a esta equivocada interpretação, transforma-se numa barbárie autorizada sem qualquer tipo de retratação. Assim, já muitos casos foram vistos referente a depredação e perseguição de religiões e religiosos de matriz africana: em casas, objetos e símbolos ligados à este universo.
Encontrei uma bela exposição, madura de quem soube definir corretamente (positivamente) o que alguns veículos e grupos de pessoas ignorantemente in-formadas insistem reproduzir. A bela interpretação sobre o que seria corretamente designado como “Magia Negra”, segue abaixo exposto, anteriormente socializado em rede social por Yannick Koutchou Koule, em 17 de Julho de 2012, e por mim desenvolvido entre acréscimos, formatação e citações, abaixo com algumas imagens em forma de homenagens:
Pelé em ação no jogo amistoso entre Brasil e Áustria, no estádio do Morumbi, 11/07/1971. Foto: Domício Pinheiro/AE

“Magia negra era o Pelé jogando, Cartola compondo, Milton cantando. Magia negra é o poema de Castro Alves, o samba de Jovelina... Magia negra é Djavan, Emicida, Mano Brow, Thalma de Freitas, Simonal. Magia negra é Drogba, Fela kuti, Jam. Magia negra é Dona Edith recitando no Sarau da Cooperifa. Carolina de Jesus é pura magia negra. Garrincha tinhas duas pernas mágicas e negras. James Brow e Milton Santos é pura magia.
Milton Santos
Um pesquisador implicado na realidade local, um pesquisador viajante e engajado (destaque dado em sua biografia de 1948 a 2001, pelo endereço: http://miltonsantos.com.br/site/biografia/)

Não posso ouvir a palavra magia negra que me transformo num dragão!
Michael Jackson e Jordan é magia negra. Cafu, Milton Gonçalves, Dona Ivone Lara, Jeferson De, Daiane dos Santos é magia negra. Fabiana Cozza, Machado de Assis, James Baldwin, Alice Walker, Nelson Mandela, Tupac, isso é o que chamo de magia negra.
Nelson Mandela
Uma homenagem a este grande homem do nosso tempo, aniversariante deste dia 18 de julho de 2012 (94 anos).

Magia negra é Zumbi dos Palmares, Malcon X, Martin Luther King, Mussum, João Antônio, Candeia e Paulinho da Viola. Jackson do Bandeiro, Usain Bolt, Elza Soares, Sarah Vaughan, Billy Holliday, Pixinguinha, Louis Armstrong e Nina Simone é magia mais do que negra.
Eu faço magia negra quando danço Fundo de Quintal e Bob Marley. Cruz e Sousa, Zózimo, Spike Lee, tudo é magia negra neles. Umoja, Espírito de Zumbi, Afro Koteban...
É mestre Bimba, é Vai-Vai, é Mangueira e todas as escolas transformando quartas-feiras de cinza em alegria de primeira.
Magia negra é Jimi Hendrix, Gilberto Gil, Mohamed Ali, Anderson Silva, é Solano Trindade, Sabotage, MV Bill. Pepetela, Ondjaki, Ana Paula Tavares, João Mello... é também Magia negra.
Magia negra são os/as brancos/as que são solidários na luta contra o racismo. Magia negra é o RAP, o Samba, o Blues, o Rock, Hip Hop de Africabambaataa.
Magia negra é magia que não acaba mais.
É isso e mais um monte de coisa que é magia negra. O resto é feitiço racista”.
Citado texto, inspirado no Poeta Sergio Vaz em “A NEGRA”


Para quem quiser curtir Magia Negra, acesse e ouça:
http://gonnabefunky.podomatic.com/entry/2011-06-18T08_59_28-07_00



terça-feira, 17 de julho de 2012

MITOS E RITOS


A LITERATURA DE CANDOMBLÉ EM LONDRINA

O presente trabalho faz parte de um projeto de pesquisa “Mitos e Ritos: as palavras mal ditas no Candomblé de Londrina” que tem como um dos objetivos coletar, cotejar e publicar narrativas míticas, histórias verdadeiras e poemas, relativos ao cotidiano do Povo-de-Santo de Londrina.

Òşóòsì / Osún / Omolu

Abstract
This comunication intends to present the partial results about the Jeje-Nagô and Angola Candomblé temples oral literature, in Londrina, Pr. We’ve been working with the theories and the studies about orality and text analyse, from the special point of view of the production and the reception for these stories and mythe have a deep religious meaning.
  
Palavras-chave: Candomblé, Mito, narrativa.

Livro: NKISSI TATA DIA NGUZU - estudos sobre o candomblé Congo-Angola












por PROF. DR. SÉRGIO PAULO ADOLFO (com autorização)
Diálogos com Prof. Ms. Reinaldo João de Oliveira
(Formatação e pesquisa sobre "A religiosidade como alma da cultura e afirmação da identidade afro-brasileira")

Londrina, cidade de mais de 700.000 habitantes, localizada na região norte do Paraná, é o segundo pólo urbano do Estado, superado apenas por Curitiba, a capital. Trata-se de um centro urbano jovem, de pouco mais de 60 anos, caracterizado pelo rápido crescimento e por ostentar a intenção de um alto padrão de qualidade de vida, tendo como slogan municipal: “Londrina: Aqui se vive melhor”.
Brasão de Londrina

É uma cidade que sempre se orgulhou de seus fundadores ingleses - em homenagem aos quais recebeu o nome - vendo neles e nos europeus de outras nacionalidades o elemento principal de sua representação enquanto “sociedade civilizada”. No entanto, segundo Sônia Adum (1991), além desses pioneiros ingleses, alemães, franceses, italianos, participaram da construção de Londrina uma multidão de operários, roceiros, índios, negros, fugidos ou libertos, que eram vistos como vadios, desocupados, prostitutas, jogadores, pobres, mendigos e macumbeiros.
Dessa população, da qual a história oficial não dá conta, faz parte o segmento do “Povo-de-Santo”, compreendido pelos fiéis ou simpatizantes que freqüentam os cultos afro-brasileiros, especificamente o Candomblé, que parece ser estranho a uma cidade com ares de Europa, mas que, entretanto, se revela importante por um grande número de Casas-de-Santo.
O Xirê dos Orixás

Na realidade, contradizendo versões oficiais, a cidade apresenta numerosas Roças. Segundo a Mãe Oju Omin, Presidente da Federação Espírita Umbanda Alfa-Ômega do Paraná, são seus filiados cerca de 270 Centros de Umbanda e Candomblé. Entre os freqüentadores das seitas afro-brasileiras locais, utilizando-se de seus serviços religiosos e freqüentando as festas, encontramos pessoas de várias classes sociais: biscateiros, autônomos, profissionais liberais, professores universitários, políticos, artistas, etc.
O Candomblé parece ter presença segura em Londrina, como atividade organizada, desde a década de 50, sendo provável, no entanto, que pessoas ligadas a esta atividade religiosa a praticavam, de maneira informal, já desde muitos anos antes. Os primeiros sacerdotes seriam Pai João que realizava um cerimonial pendular entre Umbanda e Candomblé num local afastado onde hoje se localiza o Jardim Tóquio, e Mãe Jacinta que mantinha uma Casa na Vila do Grilo, hoje Vila da Fraternidade. Essas pessoas já não existem, sendo, no entanto, lembradas pelos atuais Zeladores.
Dessa forma, configuram-se em Londrina dois modelos rituais: um ritual que se reconhece como Angola se espelhando na severidade do falecido Tata Meluango e um ritual que se diz Keto com maior permeabilidade e flexibilidade ritual. Da mesma forma que esses dois modelos, enquanto tal se confrontam, na concretude do campo podemos perceber uma interpenetração no que diz respeito as práticas rituais e as concepções religiosas, acentuada pela constante troca de Zeladores uma das indiosincrasias do Candomblé de Londrina.
Aliado a esses fatores gostaríamos de destacar mais um último, mas não conclusivo fenômeno, que é a questão dos mitos cosmogônicos e de origem, estruturadores do candomblé banto ou nagô. Sabemos que todas as religiões fundam-se e sustentam sua prática ritual num discurso fundador, mitológico, multiarticulado, presente na memória coletiva e que lhe dá sustentação teológica interna, ao mesmo tempo que lhe permite jogar com outras instâncias sociais.
Temos percebido até o momento, que o Candomblé de Londrina apesar de se reconhecer herdeiro espiritual do Candomblé de Salvador, tanto os pertencentes a vertente Congo-Angola, quanto Gege-Nagô, que apesar dessa suposta filiação, essas casas não tem conseguido manter a ortodoxia das casas-mães, sincretizando dialogicamente rituais de várias procedências numa maleabilidade notável.
No entanto, apesar da extrema polissemia dos candomblés londrinenses, sobretudo os de origem congo-angola que temos investigado, toda a prática litúrgica, cantigas, rezas, formas de tratamento são em língua de nação, provavelmente kikongo seguida de perto do kimbundo e outras línguas bantas.
Terra vermelha de Londrina: panorama visto a partir da região norte da cidade (do Conjunto Habitacional Milton Gavetti ao centro)

No candomblé, há uma narrativa mítica cosmogônica que, segundo Mircea Eliade, é inauguradora de um novo tempo. Através dessas narrativas, explica-se a existência dos homens e das coisas.
Esses mitos, no caso presente, são aqueles que sustentam a Teogonia do Candomblé e são eles que, ritualizados nas cerimônias públicas e privadas, dão-lhe sentido. Essa categoria de narrativa - os fundamentos, na linguagem do povo-de-Santo - supostamente tem origem africana. E a partir delas, o fiel vivencia, rememorativamente, o princípio cósmico e humano que lhe dá razão do ser e do fazer no mundo.
Mircea Eliade ao tratar dos mitos, classifica-os em mitos cosmogônicos e mitos de origem, sendo que os primeiros referem-se ao nascimento do mundo, dos deuses e das coisas e os segundos ao nascimento das linhagens e das famílias. As sociedades tradicionais, ainda segundo Eliade, re-constróem o mundo sagrado através da reatualização dos mitos cosmogônicos. Temos sentido que os praticantes e sacerdotes de Londrina, tem em certa medida, “esquecido” tanto os mitos cosmogônicos, quanto os mitos de origem, daí o seu distanciamento das casas-mães enquanto raiz e a maleabilidade ritual por conta do esquecimento dos mitos cosmogônicos, transformando muitas vezes os rituais em meros aparatos gestuais vazios de sentido narrativo.
No Brasil, essa literatura de Candomblé, é desconhecida do grande público porque restrita a alguns espaços privilegiados, é uma literatura neoafricana, centrada no campo da oralidade, ligada a religiosidade dos descendentes de africanos no Brasil.
Estamos falando de uma literatura mítica vinda em parte da África nos porões dos navios negreiros, mas também reformulada e plasmada no recinto das casas religiosas. Estamos usando o termo literaturas neoafricanas num sentido diferente de J. Jans (1971) que chama toda a produção literária da diáspora de literatura neo-africana. Para nós, só é literatura neo-africana aquela ligada aos fenômenos africanos propriamente ditos, como fenômenos religiosos e culturais produzidos a partir de uma matriz africana. Esta literatura parte em kikongo ou kibundo, línguas bantas, ou iorubá, língua do grupo sudanês, parte em português, constituída de pontos de Umbanda e outras louvações, tem sua existência e perpetuação asseguradas pelo suporte religioso e salvo raríssimas exceções não foi ainda pesquisada com o labor necessário.
Sabemos que a literatura tem, entre outras funções, aquela de dar o mundo e o homem a conhecer-se através de si. Segundo o Prof. Antônio Cândido,a literatura faculta uma maior inteligibilidade com relação a uma determinada realidade(CANDIDO: texto policopiado). Sendo assim, o texto permite uma interação entre o leitor e o mundo vivenciado, e através do texto, o leitor pode vir a conhecer e apreender uma determinada realidade, tendo como conseqüência compreender melhor a sua. Pensando nisso é que temos investido na coleta e na compreensão de uma literatura oral de origem africana ou de matriz africana, praticadas no interior dos candomblés de origem banto em Londrina.
Arte representando a "Cerimônia de Candomblé"

Há, entre poucos outros, dois autores, Antonio Póvoas (1989), lingüista e Antonio Risério (1996), literato, ambos baianos, que tem iniciado uma linha de pesquisa bastante interessante sobre essa literatura intra-muros do mundo do candomblé brasileiro, de origem sudanesa. Póvoas analisa os falares do Povo-de-Santo, incluindo aí cantigas religiosas e poemas; enquanto Risério dedica-se ao estudo dos orikis de orixás. Orikis são poemas de louvação, que em África sudanesa são usados para louvar as divindades, as pessoas, ou acontecimentos notáveis. No Brasil, só sobreviveram, segundo Risério e Pierre Verger, os Orikis dedicados aos orixás.

o oriki nasce no interior da rica malha de jogos verbais, de ludilinguae, que se enrama no cotidiano iorubá. Concordo com o ponto de vista de Bolandé Awè sobre o assunto. O historiador acredita que o oriki-poema é uma extensão ou um desdobramento do oriki-nome (oriki-sòkí, oriki-palavra) ou nome atribuitivo, espécie de apelido poético, digamos assim, que é um dos três nomes que o recém-nascido iorubano pode receber. (RISÉRIO: 1996, pg. 35)

Risério em seu estudo aponta ainda a influência dos orikis na produção poética brasileira, tanto ligada a literatura escrita quanto a produção da música popular brasileira. Cita alguns exemplos como a música de Caymmi “Oração à Mãe Menininha” ou a de Vinícius de Moraes, “Canto de Ossanhe”, assim como assinala essa mesma influência em romances de Jorge Amado, como Teresa Batista Cansada de guerra, sendo que na música de Caymmi e no romance de Jorge Amado temos orikis de nomes, enquanto na música de Vinícius teríamos um oriki de Orixá.
Inúmeros são os exemplos de como essa forma poética legitimamente africana tem influenciado a literatura brasileira, mas não cabe no espaço restrito desse trabalho. Só resta ainda assinalar que o oriki é uma forma poética sudanesa, e que os terreiros de candomblé de origem bantu também possuem suas formas poéticas africanas que ainda não foram investigadas, acrescidos dos pontos de Umbanda e Quimbanda, se não de origem banto, mantêm a temática e a estrutura da poética africana. Para compreender essa produção estética é necessário compreender o mundo simbólico africano, que possue outras leis que não as do universo judaico-cristão. O mundo criado pelos portugueses na América ou na África, tem também outros falares para além da língua lusitana. Esses outros falares deverão ser expostos ao público brasileiro.
Sem o conhecimento desse mundo simbólico africano é difícil o leitor e a crítica entenderem a literatura neo-africana, segundo o conceito de J. Jans (1971), produzida no Brasil. Cruz e Souza, o exemplo mais clássico, ainda é um autor desconhecido, mal compreendido, assim como inúmeros outros de origem africana, inclusive nosso mais famoso ficcionista, Jorge Amado. O instrumental e conhecimento meramente ocidental são insuficientes para conhecermos e analisarmos a obra destes autores afrobrasileiros. Sem mudarmos o ponto de vista de nossa ótica crítica, dificilmente entenderemos nossa própria literatura que, considerando ter suas raízes fundadas no modelo ocidental, possui forte influxo do mundo africano. O que não nos deixa perceber o nosso lado africano é exatamente a forte influência exercida ainda sobre nós de autores como os que acabamos de citar. O próprio Prof. Antonio Cândido mestre incontestável de todos nós, falha ao afirmar que os outros povos formadores desse país nada puderam legar a nossa literatura, sendo a mesma, fruto direto da Europa colonizadora, sob o influxo das novas condições americanas. A contribuição africana ou indígena não existe para os nossos estudiosos e a nossa crítica está totalmente voltada para os padrões ocidentais, prejudicando, dessa forma, os autores afro-brasileiros que produzem no influxo e sob as luzes da cultura africana. O orikis sudaneses e os ingorossis banto são algumas das formas literárias africanas que com certeza muito têm influenciado nossos escritores, mas o desconhecimento dessa realidade torna-nos alheios a determinadas formas e conteúdos poéticos por não corresponderem a nossa visão eurocêntrica, e ficamos, portanto, sem cabedal e nem instrumental para formar o nosso aparato crítico.
No entanto, não conhecemos nenhum trabalho de academia que tenha se debruçado sobre as manifestações poéticas dos bantos, nenhum trabalho tem sido realizado nesse sentido, e a bibliografia existente é difícil de encontrar, toda ela escrita em francês ou inglês.
A pauperidade de pesquisas na área de estudos de textos religiosos de origem africana no Brasil, agrava-se em se tratando dos Bantos, pois é fato notório que os estudos nesse campo se dirigiram desde seu início aos povos nagôs, principalmente os iorubás.
Edson Carneiro (1978) tem o mérito de ser um pioneiro nesses estudos apesar de tomar como ponto de partida seu antecessor Nina Rodrigues (1945), e tal como ele, continua elegendo como modelo de pureza ritual o rito nagô. Em que pese esse autor ser um dos únicos por várias gerações a preocupar-se com os africanos de outras procedências, seus estudos sempre se voltaram para a legitimação do grupo nagô.
Quando estuda os outros templos, o faz sempre tendo como modelo de legitimidade os templos dos iorubás. Para ele, existem outras liturgias, mas estas tendem a desaparecer em função da hegemonia dos nagôs. Apesar de sua acuidade e de sua convivência dentro dos candomblés mais prestigiosos e faustosos da Bahia, não percebeu muito claramente que mesmo entre os nagôs existiam e existem algumas diferenças muito peculiares.
Ao tratar das casas de culto de procedência banto, Edson Carneiro as vê apenas como uma cópia com débeis modificações, diga-se mal feitas, do modelo original. Percebe que essas contribuições se dão, sobretudo, no campo linguístico, como se fossem meras adaptações do panteão de deuses, nomes de ervas e cantigas, ou melhor, apenas uma tradução dos nomes dos orixás e das práticas ritualísticas dos nagôs.
O autor não conseguiu perceber que enquanto os nagôs cultuam os orixás que são forças da natureza, os bantos cultuam os inkices que são ligados, sobretudo, a ancestralidade. Não era, portanto, uma mera tradução dos nomes de uns pelos outros, mas principalmente, a preocupação litúrgica, por se tratar de divindades diferentes.
Em Londrina, apesar de confundirem, ou sincretizarem, os orixás iorubás com os inkicis bantos, toda a louvação dedicada a eles, aos inkices, é feita em kikongo ou kimbundo, com algumas alterações fonéticas e de prosódia, alterado algumas vezes pela língua portuguesa. Podemos alinhar três gêneros literários diferentes: as dijinas, os ingorossis e as cantigas, além das narrativas míticas, pouco expressivas no meio banto.
As dijinas, termo originado do Kimbundo (LOPES: Rio, s/d) é o nome iniciático do novo filho-de-santo, nome esse pelo qual ele passará a ser chamado a partir da iniciação. É muito comum que pessoas conhecidas no meio do Candomblé pelas dijinas não tenham seu nome civil lembrado mais pelos seus pares ou mesmo pelos seus conhecidos, parentes e amigos, tal a força desse novo nome que lhe é dado.
A dijina é elaborada pelo Pai-de-Santo a partir de um outro nome iniciático, recitado pelo Inkice, durante os dias de reclusão do fiel, através de um estado de transe infantil, ou estado de erê, momento em que o neófito age e fala como criança. Este nome iniciático, chamado de morunkô, por influência do culto nagô é mantido em segredo conventual, só revelado pelo iniciador ao iniciado e algumas autoridades do alto clero do terreiro. Esse nome, o morunkó (em ioruba é orunkó) traz em sua constituição as qualidades do inkice que está sendo preparado. Meus informantes dizem que é um nome muito longo, muito complicado de se falar e de se entender, todo ele em língua de nação angola. Desse longo nome é tirada a Dijina, composta geralmente de uma só palavra, no máximo duas, contendo em sua morfologia as qualidades do novo encantado, do novo deus. Alguns exemplos:
  • Filhas das Kiandas (encantados das águas): Luegi, Kaiá Suté, Kaiá Undé, Dandaluã, Guanguanseça.
  • Filhos de Nzazi (Senhor dos Raios): Meluango, Luandemin.
  • Filhos do Grande Caçador: Tauá, Tauamin, Mutakenam.
  • Filhos do Senhor da Criação: Lembafurum, Lembaomin.
  • Filhos do Senhor das Varíolas: Kitologi, Katule.
  • Filhas da Senhora dos Ventos: iaiá Baramin, iaiá Delci, iaiá Janan.
  • Filhos do Senhor dos Caminhos: Tumbereci, Mukumbi.

A mitologia dos Orixás é rica de exemplos, como na própria relação entre Òşóòsì com Osún e Lógunèdè.

Um estudo apurado desses nomes poderá revelar a natureza diferenciada de muitos encantados que são confundidos entre si e também com os orixás nagôs. Estudar as dijinas, assim como os morunkós (orunkós) é poder descobrir a origem e as condições em que muitos povos africanos chegaram ao Brasil.
Nos parece que as dijinas são uma espécie de orikis de nomes, tal como entre os nagôs. Mas a nenhuma conclusão ainda chegamos a esse respeito por falta absoluta de material de pesquisa. Faltam dicionários especializados, um maior conhecimento das línguas bantas, viagens aos países de origem, entre outros problemas.
Quanto as cantigas, há uma coletânea delas para cada inkice ou encantado. Nos candomblés congo-angola, tanto se usa o termo orixá (influência da mídia e do prestígio dos nagôs, que estão na mídia) como encantado, e só alguns zeladores mais antigos usam o termo inkice. Numa cerimônia de barracão, festa pública, espaço em que os deuses vêm dançar no meio e com os homens, é necessário que se cante no mínimo sete cantigas para cada Santo. Pode acontecer de os cantadores, os encarregados dos toques e cantos não saberem tantas para determinados santos, e acabam improvisando algumas em português. No entanto, quando isso acontece, há uma censura aberta e às vezes velada dependendo do prestígio do autor, sobre tal fato.
Essas cantigas dão a exata composição do enredo do inkice, e em linguagem de candomblé, a palavra enredo tem o mesmo significado que em teoria literária, pois, o enredo é a história do inkice. As cantigas a ele dedicadas enumeram as suas qualidades, tecem loas aos seus feitos e às suas habilidades e vitórias. Ao traduzir esses poemas descobriremos, com certeza, uma riqueza poética e temática que talvez na própria África já em parte tenha desaparecido.
Dançarinos africanos caracterizados em uma apresentação lembra a cultura presente no Brasil, trazida pelos nossos ancestrais.

A tradução poética dessas cantigas, que também nos parecem formas de oriki, pois são sempre louvações, seria um passo importante para compreender a verdadeira contribuição dos bantos na cultura brasileira, desvendar sua mítica vigorosa e sua força poética, considerada pelos africanistas brasileiros pobre e insignificante.
Por outro lado, o conhecimento dessas estruturas poéticas poderá revelar a presença dessas formas na literatura brasileira canônica. Muitos dos sons e ritmos da literatura brasileira poderão ter suas gêneses nessas formas poéticas vindas da África.
Essas cantigas-poemas já o dissemos, contêm as histórias dos Inkices, suas origens e suas principais qualidades. Portanto, nessas cantigas há um corpus mitológico do povo Banto que revelado virá desmistificar muitos dos pontos de vista até agora sustentados pelos nossos africanistas. A mitologia banto chegou ao Brasil em levas sucessivas do século XVI ao XIX, trazendo pessoas de reinos os mais diversos. Há dessa forma muitos mitos sobrepostos e recontados de maneiras muito variadas, considerando-se que a cultura e especificamente a literatura participam de um dinamismo irreversível, mas o que se pode perceber é que ao longo do corpus poético do Candomblé Congo-Angola esses nomes aparecem sinalizando assim uma determinada origem de acordo com o Inkice presente.
Em terceiro lugar temos as orações, os ingorossis, que segundo o dicionário de Nei Lopes, é uma palavra de origem umbundo e significa reunir-se, informação essa retirada de Alves, 1951. Fazem parte dos ingorossis uma série de rezas de ronkó, de caráter sigiloso, aprendidas nos limites do espaço e do tempo das iniciações, restrita portanto aos Filhos-de-Santo e vedada à visitantes ou pesquisadores. O significado, origem e estrutura poética desses ingorossis só poderemos realmente desvendar com uma vigorosa pesquisa incluindo as fontes, os países da África Banta, ou fontes bibliográficas também fora do alcance de brasileiros, por pertencerem a alguns centros de pesquisa na Europa. É, pois, necessário que apareça para o mundo banto brasileiro um novo Verger, que com todo o despojamento e com toda a coragem e vigor científico possibilitou o aclaramento de pontos obscuros na cultura nagô transplantada e revigorada no Brasil. Os ingorossis são, de certa maneira, os poemas mais difíceis de alcançar pela mão do pesquisador dado o seu caráter sagrado. O Povo-de-Santo de nação Angola-Congo sempre se mostrou muito reticente aos pesquisadores o que motivou por parte destes um certo menosprezo pelas raízes culturais daqueles. O caso dos ingorossis é muito esclarecedor dessa dada situação.
Quanto aos mitos, é lugar comum dizermos que os bantos brasileiros não possuem um corpus organizado como os iorubás. Essa ausência levou os nossos pesquisadores a imputarem aos bantos a ausência de mitos ou declararem que os mesmos possuíam uma mitologia paupérrima, tendo por isso de utilizar os mitos nagôs. Esse corpus mitológico está no interior das cantigas, dijinas e ingorossis, pois se o sistema adivinhatório nagô conservou um corpus mitológico aparentemente coerente, o sistema adivinhatório banto é de outra natureza e a própria idéia de divindade dos bantos está ligada, sobretudo, à ancestralidade, resultando dessa forma em mitos de fundação com heróis bem delineados. Uma das divindades do panteão banto, iaiá Matamba, erroneamente nomeada de Oyá Matambá por assimilação com o orixá nagô Iansã também nomeada de Oyá, é ninguém menos que a legendária Rainha Nzinga, poderosa guerreira, rainha dos Jagas, que castigou duramente os portugueses no século XVI. Matamba é a região no planalto angolano onde viveu essa rainha poderosa, que hoje se apresenta nos Candomblés bantos exibindo a sua força guerreira, o seu poder de ventania e tempestade.
E assim, rastreando os passos dos deuses bantos, através de sua literatura, ou oralitura, sem compará-los aos orixás iorubás, mania em que incorremos todos, desde Nina Rodrigues, é possível recuperar um corpus mitológico importante e coerente, recuperar histórias que ainda não foram contadas por permanecerem sob os véus da sacralidade, perceber formas poéticas, sonoridades e ritmos, em suma compreender melhor a nossa própria cultura. Afinal, existem muitas outras literaturas, uma infinidade de outras obras para além dos textos canônicos.
Uma imagem bastante simbólica da religião de Matriz africana no Brasil

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Endereço eletrônico do texto (em PdF)http://www.gelne.ufc.br/revista_ano3_no1_36.pdf
Imagens: Internet.


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