A
LITERATURA DE CANDOMBLÉ EM LONDRINA
O presente
trabalho faz parte de um projeto de pesquisa “Mitos e Ritos: as palavras mal
ditas no Candomblé de Londrina” que tem como um dos objetivos coletar, cotejar
e publicar narrativas míticas, histórias verdadeiras e poemas, relativos ao
cotidiano do Povo-de-Santo de Londrina.
|
Òşóòsì / Osún
/ Omolu
|
Abstract
This comunication intends to present the partial results about the
Jeje-Nagô and Angola Candomblé temples oral literature, in Londrina, Pr. We’ve
been working with the theories and the studies about orality and text analyse,
from the special point of view of the production and the reception for these
stories and mythe have a deep religious meaning.
Palavras-chave: Candomblé, Mito, narrativa.
|
Livro: NKISSI TATA DIA NGUZU - estudos sobre o
candomblé Congo-Angola
|
por PROF. DR. SÉRGIO PAULO ADOLFO (com autorização)
Diálogos com Prof. Ms. Reinaldo João de Oliveira
(Formatação e pesquisa sobre "A religiosidade como alma da cultura e afirmação da identidade afro-brasileira")
Londrina,
cidade de mais de 700.000 habitantes, localizada na região norte do Paraná, é o
segundo pólo urbano do Estado, superado apenas por Curitiba, a capital.
Trata-se de um centro urbano jovem, de pouco mais de 60 anos, caracterizado
pelo rápido crescimento e por ostentar a intenção de um alto padrão de
qualidade de vida, tendo como slogan municipal: “Londrina: Aqui se vive melhor”.
|
Brasão de Londrina |
É uma
cidade que sempre se orgulhou de seus fundadores ingleses - em homenagem aos
quais recebeu o nome - vendo neles e nos europeus de outras nacionalidades o
elemento principal de sua representação enquanto “sociedade civilizada”. No
entanto, segundo Sônia Adum (1991), além desses pioneiros ingleses,
alemães, franceses, italianos, participaram da construção de Londrina uma
multidão de operários, roceiros, índios, negros, fugidos ou libertos, que eram
vistos como vadios, desocupados, prostitutas, jogadores, pobres, mendigos e
macumbeiros.
Dessa
população, da qual a história oficial não dá conta, faz parte o segmento do
“Povo-de-Santo”, compreendido pelos fiéis ou simpatizantes que freqüentam os
cultos afro-brasileiros, especificamente o Candomblé, que parece ser estranho a
uma cidade com ares de Europa, mas que, entretanto, se revela importante por um
grande número de Casas-de-Santo.
|
O Xirê dos Orixás |
Na
realidade, contradizendo versões oficiais, a cidade apresenta numerosas Roças.
Segundo a Mãe Oju Omin, Presidente da Federação Espírita Umbanda Alfa-Ômega do
Paraná, são seus filiados cerca de 270 Centros de Umbanda e Candomblé. Entre os
freqüentadores das seitas afro-brasileiras locais, utilizando-se de seus
serviços religiosos e freqüentando as festas, encontramos pessoas de várias
classes sociais: biscateiros, autônomos, profissionais liberais, professores
universitários, políticos, artistas, etc.
O
Candomblé parece ter presença segura em Londrina, como atividade organizada,
desde a década de 50, sendo provável, no entanto, que pessoas ligadas a esta
atividade religiosa a praticavam, de maneira informal, já desde muitos anos
antes. Os primeiros sacerdotes seriam Pai João que realizava um cerimonial
pendular entre Umbanda e Candomblé num local afastado onde hoje se localiza o
Jardim Tóquio, e Mãe Jacinta que mantinha uma Casa na Vila do Grilo, hoje Vila
da Fraternidade. Essas pessoas já não existem, sendo, no entanto, lembradas
pelos atuais Zeladores.
Dessa
forma, configuram-se em Londrina dois modelos rituais: um ritual que se
reconhece como Angola se espelhando na severidade do falecido Tata Meluango e
um ritual que se diz Keto com maior permeabilidade e flexibilidade ritual. Da
mesma forma que esses dois modelos, enquanto tal se confrontam, na concretude
do campo podemos perceber uma interpenetração no que diz respeito as práticas
rituais e as concepções religiosas, acentuada pela constante troca de Zeladores
uma das indiosincrasias do Candomblé de Londrina.
Aliado a
esses fatores gostaríamos de destacar mais um último, mas não conclusivo
fenômeno, que é a questão dos mitos cosmogônicos e de origem, estruturadores do
candomblé banto ou nagô. Sabemos que todas as religiões fundam-se e sustentam
sua prática ritual num discurso fundador, mitológico, multiarticulado, presente
na memória coletiva e que lhe dá sustentação teológica interna, ao mesmo tempo que
lhe permite jogar com outras instâncias sociais.
Temos
percebido até o momento, que o Candomblé de Londrina apesar de se reconhecer
herdeiro espiritual do Candomblé de Salvador, tanto os pertencentes a vertente
Congo-Angola, quanto Gege-Nagô, que apesar dessa suposta filiação, essas casas não
tem conseguido manter a ortodoxia das casas-mães, sincretizando dialogicamente
rituais de várias procedências numa maleabilidade notável.
No
entanto, apesar da extrema polissemia dos candomblés londrinenses, sobretudo os
de origem congo-angola que temos investigado, toda a prática litúrgica,
cantigas, rezas, formas de tratamento são em língua de nação, provavelmente
kikongo seguida de perto do kimbundo e outras línguas bantas.
|
Terra vermelha de Londrina: panorama visto a partir da região norte da
cidade (do Conjunto Habitacional Milton Gavetti ao centro)
|
No
candomblé, há uma narrativa mítica cosmogônica que, segundo Mircea Eliade, é
inauguradora de um novo tempo. Através dessas narrativas, explica-se a
existência dos homens e das coisas.
Esses
mitos, no caso presente, são aqueles que sustentam a Teogonia do Candomblé e
são eles que, ritualizados nas cerimônias públicas e privadas, dão-lhe sentido.
Essa categoria de narrativa - os fundamentos, na linguagem do povo-de-Santo -
supostamente tem origem africana. E a partir delas, o fiel vivencia,
rememorativamente, o princípio cósmico e humano que lhe dá razão do ser e do
fazer no mundo.
Mircea
Eliade ao tratar dos mitos, classifica-os em mitos cosmogônicos e mitos de
origem, sendo que os primeiros referem-se ao nascimento do mundo, dos deuses e
das coisas e os segundos ao nascimento das linhagens e das famílias. As
sociedades tradicionais, ainda segundo Eliade, re-constróem o mundo sagrado
através da reatualização dos mitos cosmogônicos. Temos sentido que os
praticantes e sacerdotes de Londrina, tem em certa medida, “esquecido” tanto os
mitos cosmogônicos, quanto os mitos de origem, daí o seu distanciamento das
casas-mães enquanto raiz e a maleabilidade ritual por conta do esquecimento dos
mitos cosmogônicos, transformando muitas vezes os rituais em meros aparatos
gestuais vazios de sentido narrativo.
No Brasil,
essa literatura de Candomblé, é desconhecida do grande público porque restrita
a alguns espaços privilegiados, é uma literatura neoafricana, centrada no campo
da oralidade, ligada a religiosidade dos descendentes de africanos no Brasil.
Estamos
falando de uma literatura mítica vinda em parte da África nos porões dos navios
negreiros, mas também reformulada e plasmada no recinto das casas religiosas.
Estamos usando o termo literaturas neoafricanas num sentido diferente de J.
Jans (1971) que chama toda a produção literária da diáspora de literatura
neo-africana. Para nós, só é literatura neo-africana aquela ligada aos
fenômenos africanos propriamente ditos, como fenômenos religiosos e culturais produzidos
a partir de uma matriz africana. Esta literatura parte em kikongo ou kibundo,
línguas bantas, ou iorubá, língua do grupo sudanês, parte em português,
constituída de pontos de Umbanda e outras louvações, tem sua existência e
perpetuação asseguradas pelo suporte religioso e salvo raríssimas exceções não
foi ainda pesquisada com o labor necessário.
Sabemos
que a literatura tem, entre outras funções, aquela de dar o mundo e o homem a
conhecer-se através de si. Segundo o Prof. Antônio Cândido, “a literatura faculta uma maior inteligibilidade
com relação a uma determinada realidade” (CANDIDO: texto policopiado). Sendo
assim, o texto permite uma interação entre o leitor e o mundo vivenciado, e
através do texto, o leitor pode vir a conhecer e apreender uma determinada
realidade, tendo como conseqüência compreender melhor a sua. Pensando nisso é que
temos investido na coleta e na compreensão de uma literatura oral de origem
africana ou de matriz africana, praticadas no interior dos candomblés de origem
banto em Londrina.
|
Arte representando a "Cerimônia de Candomblé"
|
Há, entre
poucos outros, dois autores, Antonio Póvoas (1989),
lingüista e Antonio Risério (1996), literato, ambos baianos, que tem
iniciado uma linha de pesquisa bastante interessante sobre essa literatura intra-muros
do mundo do candomblé brasileiro, de origem sudanesa. Póvoas analisa os falares
do Povo-de-Santo, incluindo aí cantigas religiosas e poemas; enquanto Risério
dedica-se ao estudo dos orikis de orixás. Orikis são poemas de louvação, que em
África sudanesa são usados para louvar as divindades, as pessoas, ou
acontecimentos notáveis. No Brasil, só sobreviveram, segundo Risério e Pierre
Verger, os Orikis dedicados aos orixás.
o oriki nasce no interior da rica malha de jogos
verbais, de ludilinguae, que se enrama no cotidiano iorubá. Concordo com o
ponto de vista de Bolandé Awè sobre o assunto. O historiador acredita que o oriki-poema
é uma extensão ou um desdobramento do oriki-nome (oriki-sòkí, oriki-palavra) ou
nome atribuitivo, espécie de apelido poético, digamos assim, que é um dos três
nomes que o recém-nascido iorubano pode receber.
(RISÉRIO: 1996, pg. 35)
Risério em
seu estudo aponta ainda a influência dos orikis na produção poética brasileira,
tanto ligada a literatura escrita quanto a produção da música popular
brasileira. Cita alguns exemplos como a música de Caymmi “Oração à
Mãe Menininha” ou a de Vinícius de Moraes, “Canto de Ossanhe”, assim como
assinala essa mesma influência em romances de Jorge Amado, como Teresa Batista
Cansada de guerra, sendo que na música de Caymmi e no romance de Jorge Amado
temos orikis de nomes, enquanto na música de Vinícius teríamos um oriki de
Orixá.
Inúmeros
são os exemplos de como essa forma poética legitimamente africana tem
influenciado a literatura brasileira, mas não cabe no espaço restrito desse trabalho.
Só resta ainda assinalar que o oriki é uma forma poética sudanesa, e que os
terreiros de candomblé de origem bantu também possuem suas formas poéticas
africanas que ainda não foram investigadas, acrescidos dos pontos de Umbanda e Quimbanda,
se não de origem banto, mantêm a temática e a estrutura da poética africana.
Para compreender essa produção estética é necessário compreender o mundo
simbólico africano, que possue outras leis que não as do universo
judaico-cristão. O mundo criado pelos portugueses na América ou na África, tem
também outros falares para além da língua lusitana. Esses outros falares
deverão ser expostos ao público brasileiro.
Sem o
conhecimento desse mundo simbólico africano é difícil o leitor e a crítica
entenderem a literatura neo-africana, segundo o conceito de J. Jans (1971), produzida
no Brasil. Cruz e Souza, o exemplo mais clássico, ainda é um autor
desconhecido, mal compreendido, assim como inúmeros outros de origem africana,
inclusive nosso mais famoso ficcionista, Jorge Amado. O instrumental e
conhecimento meramente ocidental são insuficientes para conhecermos e
analisarmos a obra destes autores afrobrasileiros. Sem mudarmos o ponto de
vista de nossa ótica crítica, dificilmente entenderemos nossa própria
literatura que, considerando ter suas raízes fundadas no modelo ocidental,
possui forte influxo do mundo africano. O que não nos deixa perceber o nosso lado
africano é exatamente a forte influência exercida ainda sobre nós de autores
como os que acabamos de citar. O próprio Prof. Antonio Cândido mestre
incontestável de todos nós, falha ao afirmar que os outros povos formadores
desse país nada puderam legar a nossa literatura, sendo a mesma, fruto direto
da Europa colonizadora, sob o influxo das novas condições americanas. A
contribuição africana ou indígena não existe para os nossos estudiosos e a
nossa crítica está totalmente voltada para os padrões ocidentais, prejudicando,
dessa forma, os autores afro-brasileiros que produzem no influxo e sob as luzes
da cultura africana. O orikis sudaneses e os ingorossis banto são algumas das
formas literárias africanas que com certeza muito têm influenciado nossos
escritores, mas o desconhecimento dessa realidade torna-nos alheios a determinadas
formas e conteúdos poéticos por não corresponderem a nossa visão eurocêntrica,
e ficamos, portanto, sem cabedal e nem instrumental para formar o nosso aparato
crítico.
No
entanto, não conhecemos nenhum trabalho de academia que tenha se debruçado
sobre as manifestações poéticas dos bantos, nenhum trabalho tem sido realizado
nesse sentido, e a bibliografia existente é difícil de encontrar, toda ela
escrita em francês ou inglês.
A
pauperidade de pesquisas na área de estudos de textos religiosos de origem
africana no Brasil, agrava-se em se tratando dos Bantos, pois é fato notório
que os estudos nesse campo se dirigiram desde seu início aos povos nagôs,
principalmente os iorubás.
Edson
Carneiro (1978) tem o mérito de ser um pioneiro nesses estudos apesar de tomar
como ponto de partida seu antecessor Nina Rodrigues (1945), e tal
como ele, continua elegendo como modelo de pureza ritual o rito nagô. Em que
pese esse autor ser um dos únicos por várias gerações a preocupar-se com os
africanos de outras procedências, seus estudos sempre se voltaram para a
legitimação do grupo nagô.
Quando
estuda os outros templos, o faz sempre tendo como modelo de legitimidade os
templos dos iorubás. Para ele, existem outras liturgias, mas estas tendem a
desaparecer em função da hegemonia dos nagôs. Apesar de sua acuidade e de sua
convivência dentro dos candomblés mais prestigiosos e faustosos da Bahia, não
percebeu muito claramente que mesmo entre os nagôs existiam e existem algumas
diferenças muito peculiares.
Ao tratar
das casas de culto de procedência banto, Edson Carneiro as vê apenas como uma
cópia com débeis modificações, diga-se mal feitas, do modelo original. Percebe
que essas contribuições se dão, sobretudo, no campo linguístico, como se fossem
meras adaptações do panteão de deuses, nomes de ervas e cantigas, ou melhor,
apenas uma tradução dos nomes dos orixás e das práticas ritualísticas dos
nagôs.
O autor
não conseguiu perceber que enquanto os nagôs cultuam os orixás que são forças
da natureza, os bantos cultuam os inkices que são ligados, sobretudo, a
ancestralidade. Não era, portanto, uma mera tradução dos nomes de uns pelos
outros, mas principalmente, a preocupação litúrgica, por se tratar de divindades
diferentes.
Em
Londrina, apesar de confundirem, ou sincretizarem, os orixás iorubás com os
inkicis bantos, toda a louvação dedicada a eles, aos inkices, é feita em
kikongo ou kimbundo, com algumas alterações fonéticas e de prosódia, alterado
algumas vezes pela língua portuguesa. Podemos alinhar três gêneros literários
diferentes: as dijinas, os ingorossis e as cantigas, além das narrativas
míticas, pouco expressivas no meio banto.
As
dijinas, termo originado do Kimbundo (LOPES: Rio, s/d) é o nome
iniciático do novo filho-de-santo, nome esse pelo qual ele passará a ser
chamado a partir da iniciação. É muito comum que pessoas conhecidas no meio do
Candomblé pelas dijinas não tenham seu nome civil lembrado mais pelos seus pares
ou mesmo pelos seus conhecidos, parentes e amigos, tal a força desse novo nome
que lhe é dado.
A dijina é
elaborada pelo Pai-de-Santo a partir de um outro nome iniciático, recitado pelo
Inkice, durante os dias de reclusão do fiel, através de um estado de transe
infantil, ou estado de erê, momento em que o neófito age e fala como criança.
Este nome iniciático, chamado de morunkô, por influência do culto nagô é mantido
em segredo conventual, só revelado pelo iniciador ao iniciado e algumas
autoridades do alto clero do terreiro. Esse nome, o morunkó (em ioruba
é orunkó) traz em sua constituição as qualidades do inkice que está sendo
preparado. Meus informantes dizem que é um nome muito longo, muito complicado de
se falar e de se entender, todo ele em língua de nação angola. Desse longo nome
é tirada a Dijina, composta geralmente de uma só palavra, no máximo duas,
contendo em sua morfologia as qualidades do novo encantado, do novo deus.
Alguns exemplos:
- Filhas
das Kiandas (encantados das águas): Luegi,
Kaiá Suté, Kaiá Undé, Dandaluã, Guanguanseça.
- Filhos
de Nzazi (Senhor dos Raios): Meluango,
Luandemin.
- Filhos
do Grande Caçador: Tauá, Tauamin, Mutakenam.
- Filhos
do Senhor da Criação: Lembafurum, Lembaomin.
- Filhos
do Senhor das Varíolas: Kitologi,
Katule.
- Filhas
da Senhora dos Ventos: iaiá Baramin, iaiá Delci,
iaiá Janan.
- Filhos
do Senhor dos Caminhos: Tumbereci,
Mukumbi.
|
A mitologia dos Orixás é rica de exemplos, como na própria relação entre Òşóòsì com Osún e Lógunèdè. |
Um estudo
apurado desses nomes poderá revelar a natureza diferenciada de muitos
encantados que são confundidos entre si e também com os orixás nagôs. Estudar
as dijinas, assim como os morunkós (orunkós) é poder
descobrir a origem e as condições em que muitos povos africanos chegaram ao
Brasil.
Nos parece
que as dijinas são uma espécie de orikis de nomes, tal como entre os nagôs. Mas
a nenhuma conclusão ainda chegamos a esse respeito por falta absoluta de
material de pesquisa. Faltam dicionários especializados, um maior conhecimento
das línguas bantas, viagens aos países de origem, entre outros problemas.
Quanto as
cantigas, há uma coletânea delas para cada inkice ou encantado. Nos candomblés congo-angola,
tanto se usa o termo orixá (influência da mídia e do prestígio dos nagôs,
que estão na mídia) como encantado, e só alguns zeladores mais antigos usam o termo
inkice. Numa cerimônia de barracão, festa pública, espaço em que os deuses vêm
dançar no meio e com os homens, é necessário que se cante no mínimo sete
cantigas para cada Santo. Pode acontecer de os cantadores, os encarregados dos
toques e cantos não saberem tantas para determinados santos, e acabam
improvisando algumas em
português. No entanto, quando isso acontece, há uma censura
aberta e às vezes velada dependendo do prestígio do autor, sobre tal fato.
Essas
cantigas dão a exata composição do enredo do inkice, e em linguagem de
candomblé, a palavra enredo tem o mesmo significado que em teoria literária,
pois, o enredo é a história do inkice. As cantigas a ele dedicadas enumeram as
suas qualidades, tecem loas aos seus feitos e às suas habilidades e vitórias.
Ao traduzir esses poemas descobriremos, com certeza, uma riqueza poética e
temática que talvez na própria África já em parte tenha desaparecido.
|
Dançarinos africanos caracterizados em uma apresentação lembra a cultura
presente no Brasil, trazida pelos nossos ancestrais. |
A tradução
poética dessas cantigas, que também nos parecem formas de oriki, pois são
sempre louvações, seria um passo importante para compreender a verdadeira
contribuição dos bantos na cultura brasileira, desvendar sua mítica vigorosa e
sua força poética, considerada pelos africanistas brasileiros pobre e insignificante.
Por outro
lado, o conhecimento dessas estruturas poéticas poderá revelar a presença
dessas formas na literatura brasileira canônica. Muitos dos sons e ritmos da
literatura brasileira poderão ter suas gêneses nessas formas poéticas vindas da
África.
Essas
cantigas-poemas já o dissemos, contêm as histórias dos Inkices, suas origens e
suas principais qualidades. Portanto, nessas cantigas há um corpus mitológico
do povo Banto que revelado virá desmistificar muitos dos pontos de vista até
agora sustentados pelos nossos africanistas. A mitologia banto chegou ao Brasil
em levas sucessivas do século XVI ao XIX, trazendo pessoas de reinos os mais diversos.
Há dessa forma muitos mitos sobrepostos e recontados de maneiras muito
variadas, considerando-se que a cultura e especificamente a literatura
participam de um dinamismo irreversível, mas o que se pode perceber é que ao
longo do corpus poético do Candomblé Congo-Angola esses nomes aparecem
sinalizando assim uma determinada origem de acordo com o Inkice presente.
Em
terceiro lugar temos as orações, os ingorossis, que segundo o dicionário de Nei
Lopes, é uma palavra de origem umbundo e significa reunir-se, informação essa
retirada de Alves, 1951. Fazem parte dos ingorossis uma série de rezas de ronkó, de caráter
sigiloso, aprendidas nos limites do espaço e do tempo das iniciações, restrita
portanto aos Filhos-de-Santo e vedada à visitantes ou pesquisadores. O significado,
origem e estrutura poética desses ingorossis só poderemos realmente desvendar
com uma vigorosa pesquisa incluindo as fontes, os países da África Banta, ou fontes
bibliográficas também fora do alcance de brasileiros, por pertencerem a alguns centros
de pesquisa na Europa. É, pois, necessário que apareça para o mundo banto
brasileiro um novo Verger, que com todo o despojamento e com toda a coragem e vigor
científico possibilitou o aclaramento de pontos obscuros na cultura nagô
transplantada e revigorada no Brasil. Os ingorossis são, de certa maneira, os
poemas mais difíceis de alcançar pela mão do pesquisador dado o seu caráter
sagrado. O Povo-de-Santo de nação Angola-Congo sempre se mostrou muito
reticente aos pesquisadores o que motivou por parte destes um certo menosprezo
pelas raízes culturais daqueles. O caso dos ingorossis é muito esclarecedor
dessa dada situação.
Quanto aos
mitos, é lugar comum dizermos que os bantos brasileiros não possuem um corpus organizado
como os iorubás. Essa ausência levou os nossos pesquisadores a imputarem aos
bantos a ausência de mitos ou declararem que os mesmos possuíam uma mitologia
paupérrima, tendo por isso de utilizar os mitos nagôs. Esse corpus mitológico
está no interior das cantigas, dijinas e ingorossis, pois se o sistema
adivinhatório nagô conservou um corpus mitológico aparentemente coerente, o
sistema adivinhatório banto é de outra natureza e a própria idéia de divindade
dos bantos está ligada, sobretudo, à ancestralidade, resultando dessa forma em
mitos de fundação com heróis bem delineados. Uma das divindades do panteão
banto, iaiá Matamba, erroneamente nomeada de Oyá
Matambá por assimilação com o orixá nagô Iansã também nomeada de Oyá, é
ninguém menos que a legendária Rainha Nzinga, poderosa guerreira, rainha dos
Jagas, que castigou duramente os portugueses no século XVI. Matamba é a região
no planalto angolano onde viveu essa rainha poderosa, que hoje se apresenta nos
Candomblés bantos exibindo a sua força guerreira, o seu poder de ventania e
tempestade.
E assim,
rastreando os passos dos deuses bantos, através de sua literatura, ou
oralitura, sem compará-los aos orixás iorubás, mania em que incorremos todos,
desde Nina Rodrigues, é possível recuperar um corpus mitológico importante e
coerente, recuperar histórias que ainda não foram contadas por permanecerem sob
os véus da sacralidade, perceber formas poéticas, sonoridades e ritmos, em suma
compreender melhor a nossa própria cultura. Afinal, existem muitas outras
literaturas, uma infinidade de outras obras para além dos textos canônicos.
|
Uma imagem
bastante simbólica da religião de Matriz africana no Brasil
|
Bibliografia
ADOLFO, Sérgio Paulo. O Mito e a Narrativa de Mar Morto,
Bauru, Dissertação de Mestrado, mímeo, 1981.
______. et allii A Poesia de Improviso no Vale do Jaguaribe,
Londrina, mímeo, 1982.
ALMEIDA, Lilian Pestre de. A presença da Grande-Mãe no Imaginário
Brasileiro: Formas e Motivos Barrocos, UFF/CNPq, 1988, mímeo.
ALMEIDA, Renato. Manual de coleta folclórica. Rio de
Janeiro, Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, MEC, 1965.
BAKTHIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética. A
teoria do Romance. São Paulo, Hucitec, l990.
BASTIDE, Roger. Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo, Perspectiva,
l983.
BERND, Zilá. Introdução à Literatura Negra. São Paulo, Brasiliense, l988.
CACCIATORE, Olga Gugolle. Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros,
Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1988.
CâNDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e
História Literária, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1973, 3ª Edição.
______. A literatura e a formação do homem. Texto policopiado.
CARNEIRO, Edson. Candomblés da Bahia. São Paulo: Ediouro,
1978.
CASSIRER, Ernest. Linguagem, Mito e Religião, Porto,
Edições Rés Ltda., 1973, Portugal.
EQUILBECQ, F.V. Essai sur la litteráture merveilleuse des
noirs, suivi de contes indigénes de l’ouest African francçais. Paris: E.
Leroux, 1913.
HEUSC de Luc. Róis nés d’ um coeur de vache. Paris: Gallimard/s.d.
______. Lê Roi
Ivre ou L’ Origine
de L’ Etat. Paris:Gallimard s/d.
JAHN, Janheiz. Las Literaturas Neoafricanas. Madrid, Guadarrama,
l97l.
JOLLES, André. Formas Simples. São Paulo, Cultrix, 1976.
JUNIOR, Eduardo Fonseca. Dicionário de Yorubá. Rio de Janeiro,
Sociedade Yorubana Teológica de Cultura afro-brasileira, 1983.
KOTHE, Flávio. Literatura e Sistemas intersemióticos. São Paulo, Ed. Cortez,
1986.
LEAL, José Carlos. A natureza do conto popular. Rio de
Janeiro: Conquista, 1985.
LOPES, Nei. Bantos, Malês e Identidade Negra. Rio de Janeiro:Forence, 1988.
_______. Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pref. Municipal, s/d.
MENDONÇA, Renato. A influência africana no português do
Brasil, Rio de Janeiro, MEC, Civilização Brasileira, 1973.
MOURA, Clóvis. História do Negro Brasileiro. São Paulo, Ática, l989.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. São Paulo,
Ática, l986.
PÓVOAS, Ruy do Carmo. A linguagem do candomblé. São Pauilo:
José Olympio, 1989.
RISÉRIO, Antonio. Oriki-Orixá. São Paulo: Perspectiva, 1996.
RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. Rio de Janeiro,
Cia. Edit. Nacional, l945.
SANTOS, M. Descoredes. Porque oxalá usa ekodidé. Rio de
Janeiro, Pallas, 1997.
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. Rio de Janeiro, Codecri, 1983.
_______. O Terreiro e a cidade, Petrópolis, Vozes, 1988.
TODOROV, Tevetan. Introdução à Literatura Fantástica,
São Paulo, Editora Perspectiva S.A., 1977.
TRINDADE, Ordep. As águas do rei. São Paulo, Cortez,
1995.
VANSINA, Jan. La tradición oral, Barcelona,
Ed. Labor, 1967.
YEMONJÁ, Mãe Beata de. Caroço de Dendê. Rio de Janeiro,
Pallas, 1998.
Fontes:
Revista do GELNE, Vol. 3, Nº. 1, 2001.
Imagens: Internet.
Parabéns! É um interessante diálogo com a cultura... como resgate.
ResponderExcluirAsè
Abasà de Odé