domingo, 20 de março de 2011

Entender a África Sul-Saariana e Sair da Tragédia

(o Terceiro Terço do Século XX)
por Eduardo Devés-Valdés
As sensibilidades constituem o mais importante dos ecossistemas onde as idéias são produzidas e evoluem. Certamente, idéias e sensibilidades afetam-se reciprocamente, como afetam e são afetadas por diversos outros componentes que se encontram nos ecossistemas culturais.
As sensibilidades constituem o mais importante dos ecossistemas onde as idéias são produzidas e evoluem. Certamente, idéias e sensibilidades afetam-se reciprocamente, como afetam e são afetadas por diversos outros componentes que se encontram nos ecossistemas culturais.
O terceiro terço do século XX é mais curto que o anterior e seu início pode ser situado por volta dos anos 1970 ou alguns anos depois e é marcado por uma importante mudança na sensibilidade a respeito do segundo terço, o que facilita o desenvolvimento de idéias bem diferentes dos períodos anteriores, ainda que muitas sejam suas herdeiras. Seguramente, elementos da sensibilidade e das idéias posteriores a 1970 podem ser encontrados já durante os anos 1960, ao serem observadas as primeiras críticas aos novos sistemas africanos independentes.
Essa mudança de sensibilidade, que contribui para a modificação das perspectivas, das questões e inspirações, deve ser entendida relacionada a outros elementos que, interagindo com estes, não são estritamente nem a sua causa nem sua conseqüência, mas contribuem para a conformação de novos ecossistemas ou cenários. Uma questão muito importante é o enorme aumento, durante os anos 1960, da institucionalidade acadêmica e, paralelamente, da massa intelectual, composta por pessoas recém-formadas, retornados e acadêmicos comprometidos com os processos de construção de uma África independente, muitos deles de procedência intelectual muito radical. A diversificação das ciências sociais e humanas, assim como a aparição de instituições e redes, como a Comissão Econômica para a África, e mais tarde do Codesria, o Conselho para o Desenvolvimento da Investigação nas Ciências Sociais na África, facilitaram a recepção e a circulação de novas idéias. A aparição de novos setores sociais intelectuais, como os ásio-descendentes, as mulheres, a intelectualidade islâmica “moderna” dentro da África Sul-Saariana, e a incorporação de novos Estados africanos aos organismos internacionais levam inúmeros intelectuais africanos a participarem de reuniões internacionais. Com certeza, os novos exílios e o agravamento do apartheid na África do Sul geram novos núcleos internacionais do pensamento, primeiro na própria África (Dacar, Dar es Salaam, Nairóbi) e, depois do exílio em massa já nos anos 1970 e 1980, na Europa e nos Estados Unidos, configurando uma nova diáspora intelectual (notoriamente mais profissional ou mais acadêmica que a dos anos 1920, 1930 ou 1940) e constituindo um pólo de produção muito forte, particularmente nos Estados Unidos.
Eis aqui alguns dos elementos que constituem os novos ecossistemas que vão facilitar o aparecimento, entre outras coisas, de um pensamento mais acadêmico e sujeito a uma organização disciplinar em que os líderes sociais e políticos estão menos presentes; um pensamento que procura explicar fracassos e buscar soluções, e não gerar independências; um pensamento mais heterogêneo em que proliferam diversidade de escolas, paradigmas e linguagens; um pensamento marcado pelos fracassos.
O tema do desenvolvimento, as causas do fracasso econômico e a democracia são alguns dos mais importantes objetos de trabalho. O tema da independência continua vigente em algumas regiões do Sul, e o do apartheid se faz mais e mais relevante. Por fim, o crescimento do tema do gênero, a discussão sobre uma filosofia africana, o afro-pessimismo, a globalização e a marginalidade encerram o século.



O Pensamento Africano Sul-Saariano... Transição para o Último Terço do Século

Pode-se afirmar que o período de transição ocorre com Fanon e Cabral, pois Fanon inicia a autocrítica e Cabral termina com as idéias independentistas, ou entre Nkrumah, que assinalou o grande desafio pós-independência, e Mazrui, que representa a nova geração em termos de profissionalismo e de busca por resposta às diversas frustrações.
Outra manifestação de uma mudança é a crítica a algumas das idéias marcantes do período anterior. Dentre as mais importantes, podem ser citadas a crítica ao socialismo africano, substituído pelo “afro-marxismo”, e a crítica à negritude. Essa modificação, como se assinalou, não se manifesta apenas no aparecimento de uma nova sensibilidade ou na formulação de novos problemas, mas também no desaparecimento de antigas escolas de pensamento e no surgimento de novas. A mais importante do período anterior, a do socialismo africano, vai ser posta de lado, e de certa maneira substituída, por um pensamento marxista-leninista, sob o argumento de que o socialismo não tem país nem continente, por tratar-se de uma disciplina científica que tem validade universal, ainda que deva ser aplicada de acordo com certas particularidades. Essa nova escola foi chamada de “afro-marxismo”. Tal mudança sofre uma série de modificações tanto no tocante à interpretação da realidade africana, quanto ao modelo que se formula para o futuro.

Stanislas Adotevi


A crítica mais direta à negritude é a que realiza Stanislas Adotevi. Sua crítica às idéias de negritude abrange diferentes aspectos, focando-se particularmente nas imprecisões e contradições na obra de L. Senghor. Como ao que chama de “vontade insana de manter o conceito em uma falta de acabamento teórico original”, passando logo do “inacabado conceito de negritude ao outro muito velho e, sobretudo, muito hábil da alma negra” (Adotevi, 1972, p. 113). Segundo Adotevi, “a negritude é um discurso mistificado e mistificador do neo-racismo” (idem, 1972, p. 115) que procura perpetuar o neocolonialismo (idem, 1972, p. 114). A crítica de Adotevi articula negritude ao “lamentável socialismo africano”, que ele caracteriza, ridicularizando-o, como “fruto de um silogismo biológico nascido do cruzamento dos ‘ritmos primitivos’ da África com os ‘acordes fecundantes da Europa’” (idem, 1972, p. 127).1

A Sensibilidade do “Afro-Pessimismo”

O período de mudança de sensibilidade dura pouco mais de uma década, iniciando-se em 1961, com o texto de Frantz Fanon 'Os Condenados da Terra'. Nele, entre outras coisas, Fanon realiza uma análise e uma avaliação do que está ocorrendo nos Estados recém-independentes, tanto ao norte como ao sul do Saara. Sua avaliação do breve deslize no percurso é muito negativa, destacando a incapacidade dos setores dirigentes para governar e desenvolver os países, a falta de unidade e de um objetivo comum, a ansiedade da burguesia nacional para enriquecer, dando as costas ao país, e sua associação com as metrópoles, além da ação dos colonialistas visando enfraquecer os novos Estados.

Frantz Fanon

A fórmula da “unidade africana”, que tanto funcionou para a conquista da independência, rapidamente se enfraquece, afirma Fanon, inclusive dentro de cada Estado. A burguesia nacional, que só pensa em seus interesses imediatos, e como não enxerga além de seus narizes, mostra-se incapaz de realizar a simples unidade nacional, incapaz de unificar a nação sobre bases sólidas e fecundas.

Nesse âmbito, desencadeia-se uma luta implacável entre raças e tribos para ocupar os postos que foram deixados livres, somando-se os conflitos religiosos. Tudo isso é aproveitado e explorado pelo colonialismo para quebrar a vontade africana (Fanon, 1980, p. 146). O colonialismo se ocupa em revelar aos africanos a existência de rivalidades espirituais, utiliza toda sua teia para confrontar uns africanos com outros, fortalecendo as diversas religiões para que se oponham entre si (idem, 1980, p. 147). A burguesia nacional assume, herda, aproveita-se também disso, fazendo aparecer formas de racismo perigosíssimas para o futuro do continente.


De fato, a burguesia nacional africana “assimilou até as raízes mais podres do pensamento colonialista” (idem, 1980, p. 148). Cria-se assim, através da fórmula do partido único, uma forma moderna de ditadura burguesa na África (idem, 1980, p. 151). Essa burguesia segue apostando e utilizando (ou pretendendo) um nacionalismo que se esgotou, diz Fanon, e que, se não fosse transformado rapidamente em consciência política e social, em humanismo, estaria em um beco sem saída (idem, 1980, p. 185-6). Essa mudança na sensibilidade é, praticamente, produto das fragilidades, derrotas ou traições captadas “intuitivamente” e, parcialmente, produto de idéias que vão sendo elaboradas para entender tais processos e que incidem ciclicamente sobre essa mesma sensibilidade.

Kwame Nkrumah, seguindo uma reflexão semelhante em muitos aspectos à de Fanon, introduz a noção-chave do “neocolonialismo”, com a qual tenta sintetizar um conjunto de elementos que apareceram depois das independências: uma nova forma de articulação entre as antigas potências coloniais e os novos Estados independentes, concluindo que, em alguns aspectos, a África se encontrava em piores condições que durante o período colonial (Nkrumah, 1966, p. 3ss).
O terceiro terço do século XX é marcado, então, por um lado, pelo sentimento de ter conquistado algo importante – o triunfo nas lutas pela independência – e, por outro, pelas grandes derrotas nas batalhas em prol do desenvolvimento, da justiça, da inserção internacional. Uma questão decisiva, sem dúvida, é que as derrotas sofridas são infinitamente maiores e mais terríveis do que os intelectuais africanos puderam imaginar. A pobreza, as ditaduras, as guerras civis ou internacionais, os genocídios, a corrupção e as doenças foram se acumulando e minando a confiança em si mesmos que os africanos tinham ganhado com suas independências. O pensamento do último terço do século procura entender, dar conta e remediar essa tragédia. Esse pensamento emerge a partir de uma sensibilidade muito castigada. Assinalou-se que Fanon e Nkrumah são alguns dos que inauguram as propostas críticas pós-independência, mas não são eles que transparecem melhor essa sensibilidade que se inaugura, mas sim os escritores, freqüentemente mais sensíveis que os pensadores.

Wole Soyinka

Chinua Achebe

Wole Soyinka e Chinua Achebe, durante os anos 1960, mostram os sinais de um sentimento que vai invadindo a sensibilidade da intelectualidade africana. Essa mudança na sensibilidade vai sendo expressa e denunciada por eles, conscientes do processo que estava sendo gerado. Refletindo sobre as questões dos escritores africanos, Chinua Achebe destaca que foi a Europa quem introduziu na África os problemas que o escritor estava tentando resolver, como, entre outros, o de restaurar em seu povo o amor-próprio, pois a associação com a Europa minou a autoconfiança. O escritor estava procurando corrigir as distorções da cultura africana (Achebe, 1970, p. 165). Mas, nos anos 1960, surgem novos problemas que, mesmo não podendo se desligar completamente do passado colonial, são problemas da África independente, entre eles a tentativa das antigas colônias de manter o controle (idem, 1970, p. 166). Apesar de tudo, isso não parece ser o mais grave ou ao menos o mais chocante, o pior é que, em seus poucos anos como Estado independente, a Nigéria se transformou em um esgoto de corrupção e desgoverno. Os servidores públicos desfrutavam livremente da riqueza da nação. As eleições eram descaradamente fraudadas. O censo nacional era ultrajantemente manipulado, assim como os magistrados, pelos políticos no poder. Os próprios políticos eram manipulados e corrompidos pelos interesses dos negócios estrangeiros. Segundo Achebe, “essa era a situação” na qual ele escreveu Um Homem do Povo (idem, 1970, p. 166-7). A esse quadro de corrupção e destruição, no qual o dominador branco se encontra inclusive no poder, deve ser agregada a irrupção do golpe de Estado movido por interesses tribais (idem, 1970, p. 168).

Wole Soyinka, por sua vez, denuncia a pressão sobre o intelectual que se afasta das regras do poder. Essa pressão, que supostamente poderia ocorrer somente nas regiões dominadas pelo colonialismo ou pelo apartheid, se estende a outras regiões já independentes, o que estimula um sentimento de desilusão (idem, 1970, p. 136). É certo que não ocorre com todos, pois diversos escritores continuam se refugiando na literatura sobre o passado idílico e idealizado, permanecendo de costas à realidade africana e mundial. O escritor africano não assume o seu papel em uma situação tão trágica. A situação na África, segundo Achebe, é a mesma que se observava por todo o mundo: não se tratava de tragédias que provinham de isoladas fraquezas humanas, mas sim de um “verdadeiro colapso da humanidade” (idem, 1970, p. 137).





A Intelectualidade e a Afirmação Cultural Africana

Em 1954, foi realizado no Cairo o primeiro congresso islâmico, promovido pelos governantes do Egito, Arábia Saudita e Paquistão. O segundo foi realizado em 1964. Alguns dirigentes do mundo muçulmano propuseram reunir as forças dispersas e orientá-las a serviço da paz, reformar as relações entre os países muçulmanos e dar um novo impulso à islamização da África.

Universidade de Al-Azhar

A partir das universidades do Mediterrâneo e do Oriente Médio, a atividade missionária se expandiu até a região sul-saariana. Assinalou-se que a Universidade de Al-Azhar, no Cairo, tinha em 1977 uns 10 mil estudantes sul-saarianos. De volta aos seus países, eles se ocupam de afirmar as convicções religiosas, transformam-se em propagadores da língua árabe e dos programas de formação existentes nos países árabes (sobre isso, ver Solages, 1992, p. 470ss).

Universitária em Al-Azhar

Mulheres na Universidade Al-Azhar - Cairo
Tudo isso favoreceu a manifestação e a articulação de uma intelectualidade islâmica, tanto da antiga como dessa nova procedência. Entre os mais conhecidos, encontram-se o economista senegalês Cheikh Hamidou Kane, o malinês Amadou Hampate Ba, que foi diretor do Instituto de Ciências Humanas de Bamaco, o senegalês Cheikh Touré e o sudanês Hasan al Turabi.


Hasan al Turabi

Touré e Turabi são herdeiros do salafismo, o primeiro pelo lado dos Ulemás argelinos e o segundo pelo lado dos Irmãos Muçulmanos, e militantes do islamismo e promotores de organizações: Touré, da União Cultural Muçulmana, em 1953, e da revista Estudos Islâmicos, em 1979, e Turabi, da Frente Nacional Islâmica, em 1985. Em uma linha mais acadêmica, pode-se situar Hampate Ba, originário de Mali e o autor muçulmano mais citado nos meios intelectuais sul-saarianos da época, por sua defesa das línguas e culturas autóctones.

Amadou Hampate Ba

Amadou Hampate Ba – que poderia ser considerado tanto antropólogo e compilador cultural, como estudioso das religiões e teólogo islâmico e se desenvolveu no Instituto Francês da África Negra (depois da independência do Senegal, Instituto Fundamental da África Negra, Ifan) e logo na Unesco – afirmou ter colocado como objetivo “falar aos europeus sobre a tradição africana e a cultura” (Hampate Ba, 1972, p. 21). Esse objetivo o conduz diretamente ao seu trabalho de resgate das culturas orais, assim como à tarefa de criar uma escrita-padrão para as várias línguas da região que envolve o Mali, o Senegal e outros territórios adjacentes.

Hampate Ba traça um tipo de agenda em que estabelece uma série de pontos. Um deles consiste na necessidade de afirmar a diferença entre escrita e cultura, conceitos esses que não são sinônimos. Apoiando-se em seu mestre Tierno Bokar, destaca firmemente que “a escrita é uma coisa e o saber é outra” (idem, 1972, p. 22). Segundo ele, a cultura oral é cultura e possui uma capacidade muito grande, sendo tão precisa e rigorosa que permite reconstituir os acontecimentos dos séculos anteriores nos seus detalhes (idem, 1972, p. 25).


O segundo ponto ao qual se dedica é afirmar a noção de ser humano que se desprende da cultura oral, em que a força da palavra é maior do que naquela em que se pratica a escrita. Na cultura oral, sustenta, a palavra compromete o ser humano, a palavra é o ser humano (l’homme) (idem, 1972, p. 25).

Um terceiro elemento se refere ao tipo de saber africano, que caracteriza dizendo que “o conhecimento africano é um conhecimento global e vivo” (idem, 1972, p. 26). Tal conhecimento, que é passado de geração em geração e que está relacionado a ritos iniciáticos, foi interrompido pela ação externa da colonização.
Para isso, o colonizador tentou destruir a escola africana e perseguir os de tentores da cultura tradicional. Assim, a transmissão iniciática, durante a época colonial, para sobreviver, refugiou-se na clandestinidade. Mas, na verdade, foram as idéias ocidentalizadas das independências as mais destruidoras dessas culturas, pois penetraram mais profundamente que as idéias coloniais (idem, 1972, p. 26-7). Em todo caso, sua tarefa consistiria em salvar o “prodigioso capital de conhecimentos e de cultura humana acumulada através de milênios nesses frágeis monumentos que são os seres humanos” (idem, 1972, p. 28).

Uma das experiências teatrais baseadas nos ensinamentos de Tierno Bokar

Um quarto elemento é o da reabilitação das línguas, que permitiria a cada etnia valorizar a tradição original, pensar em sua língua, recorrer às tradições na sua língua, sem perder o sabor e a força (idem, 1972, p. 31). Com certeza, a língua colonial não favoreceu nem desenvolveu as originalidades clânicas, mas, por outro lado, permitiu criar uma unidade lingüística dificilmente realizável por outros meios (idem, 1972, p. 30). Já que se trata de ajudar a África a expressar e desenvolver sua própria personalidade, e permitir-lhe falar por si mesma, porque caberia aos africanos falar da África aos estrangeiros, e não o inverso (idem, 1972, p. 31), isso não poderia ser feito senão reabilitando as línguas. De fato, o abandono das línguas locais afastaria o africano, afirma, mais cedo ou mais tarde, de suas tradições e modificaria a própria estrutura de seu espírito, o que significaria amputar da humanidade uma de suas riquezas, um estilo de vida profundamente humano, fraternal e equilibrado, cada vez mais raro na humanidade moderna (idem, 1972, p. 32). E somente através das línguas é que se poderia chegar à alma real da África (idem, 1972, p. 33).


A Africanização das Ciências Econômico-Sociais

Em certo sentido, pode-se afirmar que as ciências econômico-sociais inauguram o último terço do século XX na região sul-saariana. Por outro lado, esse último terço do século é formado pela primeira geração “acadêmica”, ou seja, com formação curricular completa, instalada amplamente no interior do aparelho universitário, associada a programas docentes e a um sistema de pesquisa e publicações. Isso permitiu a criação de novas redes intelectuais, mais amplas, sólidas e duradouras que as anteriores no eixo Senegal, Nigéria, Uganda, Tanzânia e Quênia, ainda que com algumas ramificações e conexões prematuras com uns poucos países e logo depois com muitos, inclusive alguns dos quais com a intelectualidade lusófona. Mas não é menos importante assinalar que, agregada à mudança institucional, ocorre uma mudança nos paradigmas, confrontam-se as ciências econômico-sociais com os grandes pensadores do período da independência. Planta-se agora um novo desafio que consiste em elaborar uma teoria pós-independência política que permita construir e, sobretudo, explicar os problemas econômico-sociais da África, os de longa data e os novos que se vão manifestando – política de desenvolvimento, causas da dependência nova e antiga, funcionamento do comércio internacional –, e que permita, ao mesmo tempo, a discussão teórica sobre a possibilidade e o sentido das ciências econômico-sociais africanas. Em alguns momentos, esse último problema esbarra em preocupações que já eram abordadas nos escritos da negritude ou nas propostas historiográficas de Cheikh A. Diop. Mas os cientistas econômico-sociais não relacionam suas perguntas à trajetória do pensamento do qual são parcialmente herdeiros, ainda que não conscientes disso, como em outros lugares, como, por exemplo, na América Latina. Os cientistas econômico-sociais conhecem pouco ou nada da trajetória do próprio pensamento, aludindo notoriamente mais às escolas internacionais: a economia do desenvolvimento, o marxismo, tanto “clássico” como “neo”, e o dependentismo. É verdade, por outro lado, que, mesmo desconhecendo a própria trajetória intelectual, não deixam de possuir certa sensibilidade em relação ao periférico. Com certeza, isso é o que os leva a recorrer às formulações “terceiro-mundistas” da economia do desenvolvimento e do marxismo.2
Cheikh Anta Diop
Deve ser notada também a consolidação, nesse espaço, de uma intelectualidade africana não-negra. Um conjunto de pessoas nascidas na África, mas de ascendência árabe ou indiana, que conquistam presença nesse meio acadêmico, representando um salto importante em relação a uma intelectualidade asiática do período anterior na África do Sul, no Quênia, na Tanzânia ou em Uganda que se articulava em torno de organizações políticas, gremistas e de diversas publicações, mas que carecia de um espaço universitário. Samir Amin, Abdul Sheriff, Issa Shivji, Mahmood Mamdani, Yash Tandom são algumas das pessoas que se destacam nesse meio.3 Por suas origens étnicas, esse grupo não tende a pensar em termos de negro versus branco, mas sim, principalmente, em termos de classes sociais ou espaços geoculturais África versus Europa, Terceiro Mundo versus Primeiro Mundo ou periferia versus centro. Nisso coincide com o importante grupo de cientistas econômico-sociais do Primeiro Mundo, radicais políticos em sua maioria que, instalando-se na África, contribuem para a criação do campo das ciências econômico-sociais e que tampouco pensam em termos raciais ou étnicos. Esses são, entre outros, Colin Leys, John Saul, John Iliffe, Colin Pratt. Para a instalação das ciências econômico-sociais, deve-se também mencionar o grupo de origem caribenha, esse, sim, com forte marca racial: Walter Rodney e Clive Y. Thomas, entre outros.



O Desafio do Desenvolvimento
Claude Ake, um dos mais importantes especialistas em ciências econômico-sociais da África Sul-Saariana, ocupou-se da relação entre estas e o problema do desenvolvimento, sem dúvida, o maior desafio que é formulado nos anos 1970.

Uma primeira dificuldade, afirma Ake, é que as concepções sobre o desenvolvimento estão cheias de contradições e ambigüidades, do que decorre a necessidade de ministrar uma definição adequada do conceito “desenvolvimento”.
De fato, as concepções que são utilizadas na África são inadequadas porque, inspirando-se excessivamente nas usadas no Ocidente, terminam por tornar o Ocidente um modelo, e isso ocorre apesar de os cientistas sociais africanos geralmente criticarem a noção ocidental de desenvolvimento, questionando-se especificamente a confusão entre desenvolvimento e crescimento ou, dito de outra maneira, a concepção demasiadamente materialista (Ake, 1980, p. 6-7). Por outro lado, afirma, trata-se quase sempre de uma crítica meramente ritual, pois logo é esquecida para assumir a visão ocidentalizada.

No afã pouco comum de recuperar a trajetória das ciências econômico-sociais africanas, assim como os projetos presentes nos textos políticos, Ake passa em revista numerosos trabalhos. Menciona, entre outras pessoas, Samir Amin, Justinian Rweyemamu, Senghor, Kenyatta, Nyerere, Machel e Mengistu, que haviam tentado elaborar modelos de desenvolvimento diferentes do ocidental (idem, 1980, p. 7-8). Mas tais tentativas não foram suficientes e outras foram meramente retóricas. Em resumo, afirma Ake, a tarefa urgente a ser realizada pelos especialistas é a do esforço para encontrar um modelo de desenvolvimento de acordo com as realidades africanas, melhor do que os modelos ocidentais atualmente adotados (idem, 1980, p. 9).


Para que as ciências sociais progridam na África (assumindo sua condição africana, se se pode dizer assim), Ake postula que a chave é conhecer a realidade das próprias disciplinas: a questão dos recursos humanos, começando por fazer um inventário detalhado dos especialistas, e recorda que o Codesria e o Cerdas se ocuparam desse assunto; também se deve conhecer a realidade dos programas existentes e em especial daqueles que se estão ocupando do desenvolvimento; o estado das relações entre os estudiosos africanos e os de outras regiões do mundo; e a estrutura de investigação na qual estão inseridos a institucionalidade e o financiamento (idem, 1980, p. 13-5). Por outro lado, advoga que, além das próprias ciências sociais, deve-se conhecer o uso que se está fazendo delas – produção, distribuição e utilização –, o que tem a ver com a situação política.

um "outro" ponto a ser aprofundado...


sexta-feira, 11 de março de 2011

A Escola da Dependência e uma Perspectiva de Gênero


A Escola da Dependência
No âmbito das ciências econômico-sociais da época, década de 70, o tema do desenvolvimento pôde ser formulado a partir de outro ponto de vista, como o da “dependência”. Em lugares como o Quênia, o Senegal e a Tanzânia (assim como em vários países da Ásia, particularmente do subcontinente indiano4), desenvolveu-se um pensamento dependentista africano que, inspirado em grande parte nas idéias geradas na América Latina, seguiu caminhos especificamente africanos. Houve maior originalidade na Tanzânia, país privilegiado nos anos 1970 pela afluência de uma intelectualidade procedente de diversos lugares, o que motivou uma efervescência intelectual excepcional.5 Ali se desenvolveu um pensamento para o qual confluíram trajetórias africanas e latinoamericanas, com alguns elementos europeus e USA-americanos. Uma instituição como o Fórum Terceiro Mundo cumpriu importante tarefa nos contatos e na circulação de idéias.6
Justinian Rweyemamu

Justinian Rweyemamu é o cientista econômico-social tanzaniano da época com maior reconhecimento internacional e ao mesmo tempo quem mais utilizou a produção intelectual latino-americana. Seu problema teórico foi entender o funcionamento da economia do país, em particular seu baixo nível de industrialização, e propor um modelo viável no âmbito da economia mundial. Propôs pensar a economia mundial e sugerir transformações em benefício dos pequenos países subdesenvolvidos como a Tanzânia. Em um trabalho de 1969, já aludia às “estruturas da periferia”, indicando com precisão que “o termo periferia” seria usado “para se referir aos países capitalistas ‘subdesenvolvidos’ ou ‘em desenvolvimento’” e que esse conceito “se origina em Prebisch” (Rweyemamu, 1991, p. 37 e 48). Avançando nas precisões conceituais, assinala que “a palavra ‘centros’” seria usada “para denotar países desenvolvidos com economia de mercado”, relacionando essa afirmação com o livro Capitalismo e Subdesenvolvimento na América Latina, de André Gunder Frank (idem, 1991, p. 48), e acrescentando, mais à frente, que “a relação metrópole-satélite é explorada cabalmente por A. G. Frank” (idem, 1991, p. 49). Em um texto de 1973, “Um Modelo Perverso de Desenvolvimento Industrial Capitalista”, Rweyemamu define o que do seu ponto de vista foi o tipo de industrialização na África. Comparando-o com aquele “processo de crescimento do produto per capita que se desenvolveu nas economias nacionalmente integradas, flexíveis e capazes de crescimento autogerado e auto-sustentado” (idem, 1991, p. 52), destaca, recorrendo a F. Fanon, que nas “economias periféricas” a industrialização foi levada a cabo por “empresários do centro”, gerando diferenças radicais entre o mundo dos colonizadores e o dos colonizados. Rweyemamu se interessa precisamente em focar essa realidade africana, que se volta a um período anterior à produção industrial, o do tráfico de escravos. O tráfico na África “destruiu suas instituições e retardou seu crescimento”, depois veio a partilha do continente entre os europeus, coisa que deturpou as sociedades e usurpou o poder dos africanos, sendo criadas relações de dependência com os poderes metropolitanos. Isso teve como conseqüência uma balcanização (citando K. Nkrumah) de países pequenos, em termos de população e renda, tornando-os pouco viáveis para a industrialização (idem, 1991, p. 58-9).


F. Fanon
Kuame Nkrumah

Em outro texto publicado no ano de 1972 (ainda que posterior ao anteriormente citado, pois, além disso, o consigna na bibliografia), define as características do subdesenvolvimento como ligadas às “relações de dependência” criadas pela divisão do trabalho colonial, que produz um crescimento perverso. Propõe, em decorrência, que o sistema a “ser adotado para superar o subdesenvolvimento” deveria ser “capaz de liquidar as relações de dependência”. Este seria um sistema socialista que implicasse “a quebra da dependência econômica dos investimentos privados externos”. Por outro lado, tal socialismo deveria gerar simetria, cuja falta produz a dependência do país, tanto dos mercados externos, como dos bens de capital importados, com a posterior conseqüência da dependência tecnológica (idem, 1991, p. 93). Nesse momento, Rweyemamu combina o diagnóstico realizado com as categorias provenientes da América Latina com a solução proposta pelo presidente Nyerere. Aparecem conceitos como “a iniciativa do povo” e “as experiências e os projetos do povo” e, com certeza, a “auto-suficiência”. Assim, postula que “o subdesenvolvimento pode ser erradicado se e somente se as relações de dependência forem eliminadas, na medida em que a economia da Tanzânia se integra internamente e se faz auto-suficiente” (idem, 1991, p. 94), questão que tem a ver com a eliminação da alienação e as relações de exploração (idem, 1991, p. 95).
ex-presidente Julius Nyerere

Em 1975, Rweyemamu produz um trabalho – “Interpretação Econômica da Auto-Suficiência” – em que continua na linha de combinar os instrumentos conceituais latino-americanos com a proposta da auto-suficiência (1991, p. 220). Depois, escreve vários outros sobre a industrialização na África em suas relações com a ordem mundial, a velha e a nova. Para abordar esses temas, assimila algumas idéias dos caribenhos, citando particularmente Clive Y. Thomas e Havelock Brewster, que se ocuparam das pequenas economias, inspirando-se na produção latino-americana, mas gerando também reflexões autônomas. A obra de Thomas (1974) fora muito citada na África, escrita enquanto residia na Tanzânia nesses anos.
Em 1980, Rweyemamu publica um trabalho intitulado “Industrialização e Distribuição de Renda na África. Uma Agenda de Investigação”. Nele faz referência a diversos temas, como a substituição de importações, a dependência africana das importações, as experiências fracassadas de industrialização, a continuação da dependência apesar da nacionalização das riquezas, a ausência de investimentos diretos, os problemas derivados da concentração da industrialização em poucas cidades, entre outros. Em relação a esses assuntos, sua interpretação é que a economia colonial, que a África herdou, conduz os países inevitavelmente à industrialização dependente, incapaz de criar uma economia que gere desenvolvimento auto-sustentado, assim como um sistema econômico com razoável equilíbrio entre a estrutura de produção e a de consumo (Rweyemamu, 1982, p. 2). Em razão disso, diz que o desenvolvimento industrial, como proposta, não pode ser definido à margem dos objetivos de uma determinada sociedade (idem, 1980, p. 1). Sendo assim, segundo ele, na medida em que os países africanos já se comprometeram como parte da Nova Ordem Econômica Internacional, com a política de auto-suficiência e necessidades básicas, uma estratégia industrial para a África nos anos 1980 deve ter em mente tais objetivos. A escolha de atividades deve ser voltada para reunir necessidades básicas, guiadas pela necessidade de estabelecer uma economia de auto-suficiência. (Rweyemamu, 1980, p. 10-1.) Nesse sentido, afirma que a chave é desenvolver uma proposta de industrialização em relação ao “background histórico” africano (idem, 1980, p. 11) e isso teria a ver com o fato de que a substituição de importações gerou maior penetração do capital internacional nas economias africanas e com o não-aproveitamento das próprias capacidades, sendo necessário conhecer as relações entre bens de capital e de consumo das massas e, em definitivo, elaborar uma concepção diferente da utilização dos próprios recursos (idem, 1980, p. 11-2).
Rweyemamu desenvolve mais essas idéias num artigo de 1981, “A Formulação de uma Estratégia Industrial para a Tanzânia”. Diz que o país buscava “uma estratégia de desenvolvimento diferente” e que os “objetivos da sociedade tanzaniana” abrangiam o “conceito de auto-suficiência, em todos os níveis do processo econômico”. Diz ainda que, no nível da tomada de decisões, isso implicaria “o desejo de construir e usar a capacidade para uma tomada de decisões autônoma e sua implementação em todos os níveis” e que, em relação à produção, a auto-suficiência requeria “o desenvolvimento de uma capacidade indígena para gerar e colocar em uso os elementos de conhecimento técnico que um processo autônomo de tomada de decisões selecionou, para o abastecimento indígena” (idem, 1981, p. 16).
Rweyemamu como Nyerere, e decerto em contato com o pensamento deste, vai construindo um modelo de interpretação e de proposta sobre a economia e particularmente sobre a industrialização em seu país e em seu continente. Sem dúvida, para tal tarefa, utiliza diversos conceitos e categorias elaborados na América Latina, recebidos em parte já “digeridos” ou mesclados por outros africanos, como o próprio Nyerere ou Samir Amin.


Walter Rodney

Walter Rodney utilizou, mais que outros autores tanzanianos ou residentes, o material teórico original da América Latina com o objetivo de interpretar o passado africano; foi também quem realizou a mais importante reelaboração, misturando esse material com elementos do pensamento afro-americano e africano, articulando dependentismo, escravidão, racialismo e independência africana, tudo isso no âmbito de uma perspectiva identitária. Rodney é quem executa as reelaborações mais complexas e com maiores projeções para o pensamento negro posterior, que se converte em um caso privilegiado para a ideologia. Para desenvolver essas hipóteses, deve-se notar em primeiro lugar que a obra de Rodney acusa leituras de autores como Furtado, A. G. Frank, Samir Amin e outros impregnados das categorias estrutural dependentistas. O que Rodney faz, diferentemente de outros autores aos quais interessa criar um projeto econômico-político para a Tanzânia, é procurar um modelo interpretativo do processo histórico do subdesenvolvimento e da dependência. Atua como historiador e não como planejador da economia, por isso não cita nem discute com Prebish como Rweyemamu, o que não impede que em um tom menor realize algumas propostas de caráter geral, como aquela da necessidade de uma revolução que logre desligar a África da economia capitalista ocidental.
A obra mais importante de Rodney foi, sem dúvida, Como a Europa Subdesenvolveu a África, publicada em 1972 e de imenso impacto no pensamento negro mundial. Sua proposta fundamental é que “o desenvolvimento africano” somente seria possível “a partir de um corte radical com o sistema capitalista internacional, que foi o principal agente do subdesenvolvimento na África, durante os últimos cinco séculos” (Rodney, 1974, p. VII). Acreditava que o capitalismo rapidamente se extinguiria (idem, 1974, p. 11) e que, seja por isso ou apesar disso, o desenvolvimento passava pela ruptura com esse sistema, pela independência (idem, 1974, p. 4), porque o subdesenvolvimento, como para outros dependentistas, não é sinônimo de pobreza, desnutrição, insalubridade ou ineficiência, mas sim da “relação de exploração de um país sobre outro” (idem, 1974, p. 14). Para ele, esse foi o caso da África, já que, quando as regras de comércio são fixadas por um país de uma forma totalmente vantajosa para ele, então o comércio está geralmente em detrimento do sócio (idem, 1974, p. 22). Sintetiza suas idéias a respeito disso quando afirma que os escritores mais progressistas dividem o sistema capitalista-imperialista [alude a Pierre Jalee] em duas partes. A primeira é a dominante, ou seção metropolitana, em que os países do segundo grupo são freqüentemente chamados de “satélites”, porque estão na esfera das economias metropolitanas [alude a A. G. Frank]; e estão integradas de um modo desfavorável para a África, garantindo que a África é dependente dos países capitalistas. A dependência estrutural é uma das características do desenvolvimento. (Rodney, 1974, p. 25.) Especialmente em sua obra principal, How Europe Underdeveloped Africa, mostra leituras de diversas escolas de pensamento: a cepalino-dependentista (C. Furtado, A. G. Frank); a neomarxista (L. Huberman, A. G. Frank, S. Amin); a racialista e pan-negrista caribenha (C. L. R. James, E. Williams, A. Césaire, F. Fanon); a independentista africana e pan-africanista (K. Nkrumah, J. Nyerere, A. Cabral); a identitarista africana (J. C. Hayford); a pan-negrista (W. E. B. Du Bois, M. Garvey, G. Padmore, K. Nkrumah); a historiografia de iniciativa africana (T. S. Ranger, B. Davison). Pode-se também mencionar casos como o tunisiano A. Memmi e os ulemás argelinos, que servem de inspiração a Rodney para algumas de suas idéias (ver Devés-Valdés, 2005c).
Uma Perspectiva de Gênero
Afirmar que os textos que sistematizaram a história do pensamento africano, foram, não “predominantemente”, mas quase absolutamente masculinos, pode ser uma redundância. A ausência em tais textos de referências à obra de Olive Schreiner, Adelaide Smith (de Casely Hayford), Nadine Gordimer, entre outras figuras, sem dúvida, empobrece a compreensão do pensamento sul-saariano. As ciências sociais, decisivas no pensamento sul-saariano do último terço do século XX mas inexistentes nos períodos anteriores, expressam em suas evoluções e polêmicas alguns dos assuntos mais vitais do pensamento regional.

Ayesha Imam

A renovação do pensamento feminino-feminista é particularmente notória em 1990 e um pouco antes. As análises de gênero, os estudos da mulher e a investigação feminista, situadas no seio das ciências sociais, envolvem críticas e desafios aos paradigmas dominantes, destaca Ayesha Imam (1999, p. 8). Esses tipos de trabalhos desafiam a androcentricidade das ciências sociais, mostrando como e através de que mecanismos as ciências sociais ignoram e marginalizam a contribuição que as mulheres trazem para a sociedade na África, colaborando para inferiorizá-las e subordiná-las, gerando um conhecimento sexista que legitima a ordem masculina dominante (Imam, 1999, p. 8). Imam postula que classe, gênero, raça e imperialismo são forças sociais simultâneas que interagem umas com as outras e que devem, portanto, ser consideradas em conjunto (idem, 1998, p. 21).


Fatou Sow

Fatou Sow resenhou sobre o que ocorreu nas últimas décadas do século XX com os estudos sobre a mulher e o gênero na África, dando conta de investigações, atas de reuniões internacionais, projetos de trabalho etc., tentando detectar os traços de um pensamento e particularmente as potencialidades. Desse modo, determina os âmbitos que seriam enriquecidos com uma abordagem de gênero, como a organização social, técnica e econômica da produção agrícola e a questão da democracia, por exemplo (Sow, 1999, p. 47). Insiste em que repensar esses âmbitos levando em conta a perspectiva de gênero renovará e ou potencializará o trabalho das ciências sociais para a redefinição dos objetivos do desenvolvimento (Sow, 1999, p. 58). Por outro lado, deve-se assinalar que esse tipo de produção feminina-feminista é um lugar privilegiado para detectar a aparição de novas escolas de pensamento ou de hibridações que não são produzidas em outros âmbitos intelectuais. Isso se dá, por exemplo, no pensamento de Amina Mama, no qual convergem, junto às idéias feministas, um marxismo “terceiro-mundista”, teorias pós-coloniais, pós-estruturalistas, da pós-modernidade e, seguramente, posições racialistas (ver figura 17). Com esse instrumental Amina Mama escreve Além das Máscaras, sobre a construção da subjetividade das mulheres negras, iniciativa que passa por determinar a maneira como o meio acadêmico, particularmente dentro das disciplinas psicológicas, construiu historicamente o sujeito-negro (Mama, 1995, p. 1). Ela argumenta que esse sujeito foi construído pelos discursos coloniais, dominados pelos brancos, com objetivos não-científicos, marcados por relações de poder, sendo com certeza uma de suas metas desconstruir tais discursos. Mas seu trabalho, afirma, que foi desenvolvido no marco das lutas políticas do feminismo negro (idem, 1995, p. 3), visa igualmente desconstruir e recolocar os resultados do discurso da psicologia negra e africana, também limitada nas suas formulações.


Amina Mama

Argumenta Amina Mama que a colonização não consistiu apenas na exploração material e na subordinação política dos recursos africanos e de suas formas de vida, mas também na transformação e sujeição dos africanos e africanas ao imaginário e aos caprichos da cultura imperial e de sua psicologia (idem, 1995, p. 18). A psicologia negra surgida nos Estados Unidos da América nos anos 1960 e 1970 tentou se transformar em alternativa ao discurso colonialista, ocupando-se particularmente da identidade negra (idem, 1995, p. 54), mas alcançando apenas resultados muito parciais, devido às inspirações teóricas que abraçou.
Amina Mama quer em definitivo elaborar um modelo de análise que considere a tripla opressão, compreendendo o econômico, o racial e o gênero (idem, 1995, p. 145). Para isso, deve ao mesmo tempo ter em conta que a subjetividade não é algo imutável, mas sim variável, e que, além disso, os processos de constituição dos sujeitos são mais rápidos e complexos do que se postulou. Esses processos consistem nos modos como os sujeitos vão se sobrepondo aos condicionamentos negativos e aos desafios, construindo identidades nas quais se combinam elementos socioistóricos e psíquicos. Desse modo, as mulheres negras se revelaram como agentes criadoras de novas subjetividades (idem, 1995, p. 163ss).


quarta-feira, 2 de março de 2011

Sentido e Possibilidade de uma Filosofia Africana


Uma das fontes de maior criatividade do final do século foi a filosofia africana, que se expressou principalmente em três vertentes: a) sobre a possibilidade e sentido dessa filosofia; b) sobre os aportes das cosmovisões ancestrais africanas, ou etnofilosofia; e c) sobre a sistematização do pensamento africano letrado.7
As discussões filosóficas estão ligadas, na primeira vertente, àquelas sobre a possibilidade das ciências econômico-sociais para a região; na segunda, às discussões da teologia e das ciências da religião; e, na terceira, a múltiplos autores e escolas do pensamento africano que servem de base para desenvolvimentos seguintes.
Paulin Hountondji

Uma das pessoas que mais contribuiu para a discussão sobre o sentido do que se chamou “filosofia africana” foi Paul Hountondji. Em um texto originalmente escrito em 1973 e reelaborado posteriormente, discute o que denomina “conceito popular” da filosofia, entendida como a cosmovisão de um povo ou de uma cultura, uma visão “unânime” sobre a realidade, os valores ou as relações interpessoais, designada como filosofia, mas que não o é propriamente (Hountondji, 1991, p. 11-2). O fundador dessa idéia “popular” foi Placide Tempels, com A Filosofia Bantu, seguido por Aléxis Kagame, com A Filosofia Bantu-Ruandesa do Ser, e por John Mbiti, com Religiões Africanas e Filosofia, assim como por toda uma trajetória constituída por clérigos das diversas confissões cristãs, que olharam para seus povos como objetos de cristianização (idem, 1991, p. 115). Essa linha de trabalho tem a sua base no mito da “unanimidade primitiva” e na existência de “sistemas de crenças” (idem, 1991, p. 117). Hountondji acredita que esses trabalhos, inspirados no “dogma da unanimidade”, ao mesmo tempo que não constituem propriamente obra filosófica, não foram totalmente estéreis para a África, pois contribuíram para a geração de uma “literatura filosófica”. A partir disso, pretende elaborar uma distinção entre essas visões “implícitas, coletivas e espontâneas” e o que acredita caracterizar verdadeiramente a ocupação filosófica, que é uma “atividade analítica, deliberada, explícita e individual” (idem, 1991, p. 119).
A africanidade decorre, para a filosofia, de sua dimensão geográfica, ou seja, por ser realizada por africanos, e não por ser uma especificidade metafísica (idem, 1991, p. 123). Esse conjunto deve incluir pessoas que não crêem no mito da filosofia coletiva, assim como aqueles que não se referem especificamente à experiência africana. Por ser o geográfico aquilo que define, deve abranger igualmente africanos que trabalham sobre temas tradicionais e sobre autores da filosofia européia (idem, 1991, p. 121-3). A tarefa dos filósofos africanos, se desejam desenvolver uma autêntica filosofia africana, em conseqüência, argumenta Hountondji, não consiste em buscar especificidades, mas sim em promover e sustentar uma constante discussão sobre todos os problemas que concernem à disciplina (idem, 1991, p. 124).

Kwasi Wiredu

Kwasi Wiredu, por sua vez, se referiu à urgente necessidade de uma nova filosofia na África, que deve ser crítica e reconstrutiva e, portanto, capaz de uma cuidadosa discriminação, no corpo de idéias tradicionais, entre aquelas anacrônicas e as que podem contribuir para o florescimento humano na África contemporânea. Em relação a isso, levanta a necessidade de infundir na população africana os hábitos mentais característicos da ciência: exatidão, rigor no pensar, coerência, aproximação experimental. Isso porque a ciência é um fator crucial para a transformação social da África e para o desenvolvimento (Oladipo, 1995, p. 4). Articulado ao anterior, postula a necessária apropriação da filosofia útil em outras culturas para a África e, decerto, o estudo das heranças ancestrais africanas para extrair daí tudo de válido (idem, 1995, p. 6).
Wiredu tentou elaborar uma agenda para a filosofia africana dialogando com outros promotores dessa mesma percepção, como Kwame Gyekye e Odera Oruka. “Investigando nossas filosofias tradicionais, devemos responder às incitações da reflexão filosófica, que são inerentes à condição humana”, mas, esclarece simultaneamente, é necessário, além de expor esses pensamentos, “avançar na correção de interpretações errôneas do pensamento africano tradicional, pois se trata de avaliar e reconstruir nossa herança para construir a partir dela” (Wiredu, 1995, p. 17). Correlativamente, trata-se de uma tarefa de descolonização mental que tem duas faces: a “negativa”, que consiste em reverter, através de uma autociência conceitual crítica, as não-examinadas assimilações de nosso pensamento, emprestadas das tradições filosóficas estrangeiras; e a “positiva”, que consiste em explorar os recursos de nossos próprios esquemas conceituais indígenas (idem, 1995, p. 22). A colonização da África se fez através da política, da religião e do idioma. Esse último foi o mais importante meio de colonização mental e isso se observa particularmente na disciplina filosófica.
Odera Oruka, com sua proposta de uma filosofia sábia ou da sabedoria (sage philosophy), pretende instalar a sabedoria africana em pé de igualdade com a filosofia européia ou, pelo menos, com a dos pré-socráticos. Uma visão que associa a filosofia com a cultura dos brancos, inclusive com o branco masculino, e que considerou que Tales de Mileto, Anaximandro, Heráclito, Parmênides e Sócrates eram filósofos. Alguns dos sábios gregos são vistos como filósofos, argumenta Oruka, por terem proposto uma ou duas sentenças. Tales, por exemplo, é conhecido por ter dito que tudo é composto de água e Heráclito por ter afirmado que a luta é a verdade de toda vida. Decerto, na África, podiam ser encontradas entre os sábios muitas informações desse gênero (Oruka, 1998, p. 99-100). Além dessa argumentação básica, Oruka se interessa por considerar epistemologicamente o que poderia chamar-se das formas de fazer filosofia na África e destaca, então, seis tipos de ocupação: a etnofilosofia, a filosofia profissional, a filosofia nacionalista-ideológica, a filosofia africana hermenêutica, a filosofia africana artística ou literária e a sabedoria filosófica, da qual ele mesmo se ocupa (Oruka, 1998, p. 101). Seu projeto no Quênia consiste em detectar os “sábios”, muitas vezes pertencentes a culturas ágrafas, para escrever o seu pensamento. Esse tipo de sábio pode ser encontrado em qualquer sociedade, não sendo um privilégio das africanas ancestrais. Esses são os custos do desenvolvimento de suas respectivas sociedades. De fato, diz, uma sociedade sem sábios facilmente será tragada, transformando-se num apêndice de outra (Oruka, 1998, p. 101).
Um “sábio”, no sentido filosófico, o é somente na medida em que é consistente com os problemas e desafios étnicos e empíricos fundamentais de sua sociedade e é capaz de oferecer soluções para tais problemas (Oruka, 1998, p. 100). Oruka insiste que não se deve confundir a pessoa “sábia” com os informantes a que se referem os antropólogos, nem tampouco com o filósofo. A pessoa sábia é crítica e independente, “conhece sua própria mente” e mantém uma distância crítica diante da autoridade e do senso comum, resumiu Marlene van Niekerk (1998, p. 79).

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Outros autores e escritos filosóficos destacados:


Placide Tempels

Aléxis Kagame


John Mbiti


 









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