quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

EXISTE UM PENSAR HERMENÊUTICO-TEOLÓGICO NEGRO?

Por Reinaldo João de Oliveira1

Nosso maior desafio é o de uma teologia que tem bases epistêmicas e hermenêuticas de acordo com o “chão comum” da cultura, na construção local de saber, de apropriação contextual e política de linguagem.

O diálogo inter-cultural, inter-religioso e ecumênico, como “espaço de reconhecimento e legitimação de cultura” nos auxilia a “situar-nos dentro do mundo”. Neste foco, desenvolvemos um diálogo, partindo de uma “interpretação” sobre o tema que aqui nos impele a reflexão: “Existe um pensar hermenêutico-teológico negro?”2 O objetivo passa ser, portanto, esse “pensar” como ação situada e, por isso, o sentido de um “situar-se” em determinado “lugar”. A hermenêutica se torna “casa” (oikos) de um embasamento reflexivo e vivencial do “olhar-escuta”, do “aprendizado-ensinamento” na perspectiva teológica afro-americana. Sem dúvida que nossa busca compreende os fundamentos do fazer teológico, como missão de concepção de um olhar para a teologia de modo diferente e, assim, uma busca pela epistemologia da própria teologia, ou do que seja “esse tipo de fazer teologia”.

Começando por fazer um caminho pelos fundamentos do termo 3,“hermenêutica” é um termo carregado de significado e de história. Originalmente, o uso lingüístico do “termo grego” situa-se num contexto religioso: o sentido de “proclamação” submetido a ermhneia que está implícito no nome de Hermes, o mensageiro dos deuses, a quem se atribuía a invenção da linguagem. Assim, sendo esta a origem do termo no grego, desde o início está ligado com a divindade (ou os “deuses do Olimpo”).

O uso linguístico de ermhneia, mesmo fora do mundo clássico, continua dentro do âmbito da teologia cristã, característica essa que igualmente se verificava na antiga arte da “ermhneia intimamente vinculada à esfera sacral”. Foi Gadamer quem elaborou uma teoria da compreensão baseando-se nos trabalhos iniciados por Schleiermacher, Dilthey e Heidegger 4 tentando assim valorizar o preconceito (via de acesso aos conceitos). O preconceito significa, em Gadamer, uma pre-compreensão historicamente determinada que possibilita um primeiro acesso à compreensão mais aprofundada, como que, por exemplo, o fato de “o sujeito ao ver um objeto já conhecido, não precisar refletir sobre ele”. A partir daí, Gadamer irá falar da fusão dos horizontes, que seria o alargamento de nosso horizonte limitado mediante a compreensão do outro, por exemplo: o que me interessaria é meu ponto de vista, fazendo (realizando) uma fusão de horizontes (o meu e o do outro) para compreender.

A fusão dos horizontes nos interessa enquanto nos possibilita a abordagem ética como análise acerca desta proposta de leitura. A Hermenêutica carrega consigo uma bagagem teórica e de significação estritamente absorvida desde uma cultura e tradição. Contudo, nosso modo de pensar e interagir com as culturas, e tudo o que refletimos no campo teórico das letras e das ciências, pode também demonstrar uma certa maneira de conceber um pensamento próprio, que mesmo nascente, pode tornar-se algo estritamente latente para a reflexão teológica. Disso tudo depende: onde estamos – lugar sociológico – e o campo epistemológico de onde iniciamos nossa reflexão, ou melhor: a partir de onde construímos nosso pensamento? Situamo-nos “dentro” de uma “cultura”, realidade, Latino-americana, ou “Ameríndia”. Estamos refletindo uma teologia que tem bases epistêmicas e hermenêuticas de acordo com o “chão comum” (realidade) de história e, por isso, em uma “construção local de saber e de apropriação de linguagem”, bem como de referenciais teóricos. Então, propomos aqui uma reflexão hermenêutico-teológica Afro-ameríndia, com base em uma epistemologia também contextual.

A proposta e o método do olhar hermenêutico: a etnografia e a metáfora do olhar-escuta como descortinamento

Pensando a própria teologia, concebendo-a metodologicamente a partir do quadro teórico de uma etnografia: não como mera produção de imagem e representação de/sobre o outro, mas na construção um olhar-narrativo, uma forma de mediação cognitiva e ética, relacionada, situada e que se movimenta junto a essa alteridade.

Sabemos dos contextos, históricos, sociais e políticos em que vivemos envolvidos no decorrer de séculos, desde um tal “descobrimento”, que seguiu a corrente da “era colonial”, implicando vários processos de “encortinamento”, ao invés de “descobrimento”. Esse desvelamento, que não ocorreu e poderíamos chamar de uma “encurtação”, pois encurtou-se a reflexão, colocou-se limites à compreensão sobre o outro, sobre o mundo, enfim o cosmos, incutindo até mesmo uma compreensão acerca dos povos nativos como “sem cultura” – “sem alma” e até chegar a um outro processo no qual se escreveu a nossa história (de Escravidão, de marginalização, de expropriação de cultura, de saber, de linguagem etc.) ainda destes povos nativos e transplantados. Portanto, a cultura é fundamental para este olhar hermenêutico 5, e a religião como parte fundante nesta mesma perspectiva. Conforme outro autor, abordando sobre o tema de uma Teologia desafiada: “o descobrimento das culturas e da religião como sua alma, é o responsável pela irrupção do pluralismo cultural e religioso. Neste ponto, o descobrimento das culturas, no dizer de Mircea Eliade, seria o maior descobrimento do século XX”6. Seguindo o viés desta nossa reflexão e dos processos presentes na história do pensamento teológico latinoamericano, precisamos nos perguntar: onde estão estes povos que fizeram a história do Brasil ser mais rica de sentidos, significados (de cultura, de linguagem e de sabedorias)? Onde estão situados? A partir de onde poderíamos situar as raízes desta teologia ou da sabedoria latino-americana, afro, indígena? Até onde esses povos estiveram envolvidos pelo “ocultamento”, ou “encobrimento” 7 de suas “culturas”? Através daquilo que percebemos pelas várias formas de opressão, como construir-se em solo brasileiro uma legitimação de outros saberes ditos não-oficiais? Como partir por uma metodologia que favoreça um olhar diferente para esses “Outros” que se mantiveram “na marginalidade”? Assim, Leonardo Boff, no livro organizado por Paulo Suess, Culturas e Evangelização, reflete sobre a cultura do opressor versus a cultura do oprimido, e exatamente nesta nossa análise situaríamos outra pergunta para a teologia: Afinal, qual é a teologia do opressor e qual a teologia do oprimido? Em que referenciais teóricos, hermenêuticos podem estar situadas? No nível político se dão relações sociais de poder que se apresentam como autoritárias, ditatoriais, carismáticas, democráticas, relações que podem ser de apropriação, expropriação, controle, consolidação ou enfraquecimento de interesses, imposição de princípios reguladores de condutas de grupos sobre outros. É aqui que apontam os conflitos nas culturas, havendo culturas dominantes, culturas subalternas, culturas do silêncio, culturas populares etc. Não captar os conflitos dentro das culturas, particularmente nas nossas históricas que são culturas da desigualdade, é mascarar um dado fundamental que é decisivo para um processo de libertação e uma autêntica evangelização 8.

Podemos citar alguns casos tristes e cruéis da história, em que se fundou “sistemas” e “lógicas de dominação”, em que se prevalecia a “uniformidade”, a “exclusão como processo de seleção de seres-humanos”, a “eugenia” pregando a superioridade de uns sobre outros, bem como a xenofobia como medo, aversão e intolerância em oposição e rejeição do “outro” que é diferente em sua concepção de mundo, cultura, religião, existência (do “ser-aí-no-mundo” chamado como dasein por Heidegger). Porém, a corrente do pensamento formal elaborou postulados que também corroboram para nossa análise. Por exemplo, Gadamer iria considerar o seguinte:

Todavia, apesar de toda a densidade da experiência, o que significa propriamente “ser” para aqueles que foram educados no pensamento ocidental e em seu horizonte religioso é obscuro. O que significa a expressão “isso está aí”? Trata-se do segredo do aí, não daquilo que é aí, mas do fato de o “aí” ser. Isso não visa a existência do homem, tal como na expressão sobre a “luta da existência”, mas ao fato de no homem o aí se descortinar e permanecer ao mesmo tempo velado em toda abertura 9.


O OBJETIVO DESTA REFLEXÃO: fazer um recorte teórico...


Partindo de que o nosso objetivo seria “fazer o recorte teórico do que seria um ensaio de linguagem teológica determinada pela racionalidade imagética, metafórica e narrativa própria à cultura afroamericana”, como um situar-se dentro do mundo.


Já neste situar-se, o movimento de resistência pelo pensar teológico afro-americano, afrobrasileiro, afro-ameríndio, buscou-se ter sua autonomia reconhecida, divulgada (nem tanto), mas realmente respeitada e, mais que isso, valorizada por suas fortes manifestações que estão impregnadas de cultura, da religiosidade e, por tudo isso, da fé. Hoje esta busca continua, e não é diferente das décadas e dos contextos (sociais, políticos, religiosos, históricos) – Apenas o que percebemos é uma construção conjunta pela “identidade” da
reflexão.

Trazendo de volta uma análise sobre o modo como pensamos o nosso pensamento hermenêutico-teológico, um reconhecido grupo de teólogos e teólogas Afro-brasileiros (as), na década de 90, produziu um “pensar teológico contextual, aberto às provocações que fizemos neste pequeno relato sobre o percurso da nossa reflexão atual”10. E que, além destes questionamentos, trazem consigo outros tantos para refletirmos hoje. É, por isso que preocupa-nos, antes de tudo: - Para onde caminhamos? E, “por onde começamos a pensar sobre o pensamento teológico negro”? E, por que refletirmos a partir deste viés?

Este pensar hermenêutico, se é que ele exista, já que nos perguntamos por sua existência, é um pensamento de quem é, por definição, negro/a, afro? Ou, mais ainda: é um Pensamento teológico contextualmente negro, afro-latinoamericano, de fato?11 Talvez alguns se perguntem: - Por que o negro, o afro, quer saber de pensar teologia? Certamente seria óbvio que “dentro” do situar-se teológico contextual seria praxe pensar que este ou aquela pensasse sobre si mesmo(a). Mas, ainda não satisfeitos os acadêmicos perguntariam: Já não bastaria pensar a história, como memória, ou correção; ou pensar a partir das ciências sociais, como reivindicação ou “reparação”; ou analisar através das Ciências Humanas ou as Ciências Religiosas, e ainda quem sabe em particular a Antropologia, como pergunta sobre sua origem cultural; ou como contribuição à pesquisa científica, e a Psicologia como uma análise mais voltada à psique ou à alma como afirmação de uma identidade afro?12

Acreditamos que isso vem sendo feito apesar das resistências. Contudo, ao querermos mexer num “departamento” quase que exclusivista, do ponto de vista prático ou formal, como já criticava outros autores ao negar o estatuto de ciência para a Teologia, cabe perguntar neste caso se as intencionalidades coíbem ainda o pensar livre13. Talvez isso esteja superado pela ciência tal como a concebamos. No entanto, ainda bastaria olhar para as academias que lecionam a Teologia e perguntar: Onde se reflete teologia afro-indígena? Como se reflete? O que se fala sobre teologia Afro? E ainda: Por quem? Quem são os sujeitos do saber teológico negro, afro, no mundo, na história da Teologia, na história das Religiões? Não queremos dizer aqui que deva-se mudar a abordagem teológica por quem já esteja refletindo nas academias, mas acreditamos ser necessário uma avaliação e uma retomada histórica primordial resguardando a fé e os sentidos para além de uma inculturação teológica e hermenêutica.

Sentimos que se devam valorizar e empoderar os povos e as culturas a partir do diálogo e da abertura para eles se encontrarem como “ser” para o mundo, para os outros e para si mesmos, na interação livre e respeitosa de seus valores. Querendo, com isso, provocar ou recordar de um dos “gritos” deste tipo na América Latina, relatado no livro Teología Negra / teologia de la liberación, organizado por Paulo Freire, Hugo Assman, Eduardo I. Bodipo-Malumba e James H. Kone14, no início da década de 70, abrimos o campo da reflexão para discutir a dimensão de “africanidade”, ou “africanização da teologia” nos nossos momentos, nas nossas academias, nos nossos grupos socialmente constituídos.

Numa reflexão intitulada por “Diálogo – Incomunicación”, Eduardo I. Bodipo Malumba se apresenta com o seguinte discurso para uma platéia, acerca da teologia negra (ou africana), neste mesmo evento que “gestou” depois o livro supracitado. Traduzindo o texto, que se encontra no espanhol, eis a fala de Bodipo:

Está comprovado que a diferença básica que existe entre nossos padrões de pensamento é que vocês – e quando digo vocês refiro-me ao auditório ocidental que se encontra aqui – seguem um caminho estritamente determinista, enquanto que nossa interpretação da teologia e do papel que o homem desempenha na história se encontra enraizada em uma dialética que é puramente negra e sinceramente africana. Atualmente, parece que o oeste pretende defender a liberdade para si e também para nós. Considera-se protagonista da causa da liberdade e interlocutor do resto do mundo. O ocidente acredita que herdou uma metafísica do ser que não pode construir coerentemente a liberdade. Esta é a diferença básica que existe entre nós. Somente fazendo um esforço para a convergência poderíamos chegar a entendermo-nos mutuamente. Mas de momento somos dois mundos separados.15

Nota-se que Eduardo Bodipo abriu caminhos não somente para se pensar um outro tipo de hermenêutica, teologia, ou o que quer que venhamos perguntar, como também procura questionar uma outra “metafísica” que não seja determinista e ocidental, mas africana, negra. E, neste movimento, poderíamos nos perguntar se essa corrente também não nos levaria a uma outra “lógica” que não à que estamos habituados a “ver” em nossos programas e “conteúdos disciplinares”?


A RAZÃO INTEGRADA COM A IMAGINAÇÃO E A ORALIDADE


Em uma obra de construção mais recente, Günter Padilha resgata uma constatação de que “a Teologia da Libertação e a Teologia Negra e suas hermenêuticas impulsionaram o surgimento de uma Teologia Afro-Americana”16. Assim, já podemos afirmar que a “semente” já cresceu e dá seus frutos, principalmente através deste discurso que estamos analisando – o da Teologia Afrobrasileira.

Embora aqui pareça já estar bem clara e respondida a questão, queremos continuar nesta atitude provocadora de perguntarmos sobre e pela existência, ou não, da hermenêutica e da teologia afro (americana, brasileira etc.) e, se existente, é também pertinente?

As vezes, nossas perguntas podem direcionar para caminhos inesperados, principalmente quando refletidos sobre temáticas como esta. Vejamos por quê: No mesmo livro que pergunta sobre a existência da teologia negra, o teólogo “Marcos Rodrigues da Silva” escreveu o seguinte: “Entendemos que hoje não é mais novidade falar da existência de um pensamento teológico afro-americano”17. E, mais a frente, define melhor como se apresenta este tipo de pensamento, na teologia:

O pensamento teológico afro-americano, embora tenha um ponto de partida comum determinado pelo racismo, pela opressão, marginalização e exclusão da comunidade negra no continente, está atento também às particularidades geográficas e às práticas do cotidiano. A comunidade negra vive realidades que fazem dela um todo. Entretanto, ela constitui também uma realidade plural, presente em todos os espaços do continente. Estes fatores fazem com que o pensamento teológico defina uma ótica própria, priorizando acontecimentos.18

Acrescentando que além de acontecimentos, também nos situamos dentro de contextos já mencionados e que são importantíssimos continuamente se rediscutir na linguagem e na teologia: como cultura(s), identidade(s), política(s), economia(s), pluralidade(s), ética etc. Percebendo que para muitos essas palavras não convencem e que, por isso, questionam, elencamos algumas perguntas que necessariamente precisamos perguntar, na elaboração do nosso conhecimento, ou, da construção do nosso pensamento: - de que teologia partimos?

Seria possível de se refletir teologicamente conceitos de povo e de cultura africana, até mesmo sobre a fé e a experiência religiosa de africanos e afro-descendentes, mas com as categorias latinas (não da América Latina), mas “ocidental” e não africana, ou não de “matrizes africanas”? Mesmo sendo possível, qual seria o melhor caminho? A inculturação? Reduzir experiências de fé, manifestações religiosas, como “sincréticas” ou tentar entender a “síntese” que uma comunidade religiosa afro-descendente faz mediante um contexto e condicionamentos, parece-nos uma má tentativa de inculturação. Neste aspecto, o essencial não seria o emprego de um outro tipo de hermenêutica – não “tradicional ocidental e ortodoxo”, mas “tradicional africano e afrobrasileiro”?

Essencialmente importante é a valorização de aspectos cotidianos não tão elaborados, como é o dado da “Tradição Oral”. Os frutos das compreensões re-significadas a partir das “Diásporas” de um povo transplantado de um continente a outro são importantíssimos elementos para se ler teologicamente a realidade da vida. O imaginário constituído de metáforas, de fábulas, mitos, e tantos elementos próprios desse povo e das culturas que permeiam mundo simbólico, imaginário e “real”19 são manifestações de crenças. Pensamos existir nesta concepção a visão de uma “razão integrada à imaginação e à oralidade”.

Já vimos que na História, o “mundo oriental” teve tanta importância para fundamentar uma teologia da experiência do “inefável”, tanto quanto na explicitação da mensagem. E, exatamente por isso, a Teologia oriental é melhor entendida como “sabedoria” e mais voltada ao “mistério”, do que o pensamento sobre o mistério.

Pontuando quanto ao sentido da África e do simbolismo africano para a teologia afroamericana, sentimos a necessidade de implicações voltadas para buscas por outras categorias nas culturas e nas religiões Africanas e Afro-brasileiras. As várias manifestações e expressões de fé – trazem consigo “Tradição Oral”, “Ritual”, história vivenciada e contada num ambiente enfim “mais Cultural”, do que propriamente acadêmico. Embora os “ambientes de produção” e de pensamentos afros não sejam, ainda, teológicos, por essência, todas estas experiências de crenças são “teologizáveis”.
 
 

A MODO DE CONSIDERAÇÕES FINAIS: a liberdade do fazer...


Assim como fazemos no estudo da filosofia, quando filosofamos sobre “coisas”, dizemos que tudo o que existe pode ser questionado, e só não questionamos o que não existe. Logo, o pensar hermenêutico-teológico negro existe! O que não existe é o que ainda não se pensou sobre este pensamento, ou porque não se quer pensar ou porque não se admite pensar diferente. Mas o diferente existe!

O desafio hoje estaria entre o que se faz com o pensamento hermenêutico-teológico negro, afro, e seus fundamentos: negar, rejeitar, condenar, ou valorizar, respeitar, incluir, construir e se afirmar. Parece-nos mais evidente que a resposta para esta questão dependa de nós que hoje temos este desafio a nossa espreita. Tudo isto é, antes de tudo, uma questão de “liberdade” intelectual, de vontade e de fé.

Se a consciência ainda não se mostra a partir de uma construção também teórica, podemos começar agora por auxiliar em um desenvolvimento epistemológico através de uma leitura hermenêutica e de uma, ou de tantas quantas forem possíveis, Teologia Afroamericana, Afro-brasileira. E, como afirma Eduardo I. Bodipo-Malumba, na ocasião da mesma conferência antes mencionada, na década de 1970: “A consciência deve conduzir à atividade, uma atividade que implica criatividade; senão, como seremos conscientes do que somos? Se somos conscientes do que somos neste contexto, então vamos procurar a liberdade fazendo-a”. [20]

NOTAS E REFERÊNCIAS

1 Mestre em Teologia pela PUCRS. Realiza pesquisa na área da Teologia Afroamericana.

2 Remetendo, aqui, ao livro organizado por SILVA, Antonio Aparecido da. Existe um pensar teológico negro?”. São Paulo: Paulinas, 1998.

3 Comentando particularmente sobre o capítulo “Compreensão e História”, de CORETH, E. Questões fundamentais de hermenêutica. São Paulo: EPU/EDUSP, 1973.

4 Descrevendo acerca do conceito de hermenêutica e em sua elaboração interpretativa sobre este mesmo assunto que levou-o a chegar a suas próprias considerações, sem, porém, abandonar uma construção, Gadamer escreve que “gostaria de discutir de maneira introdutória o termo hermenêutica”, para depois aprofundá-lo, no seguinte: “Esse não é nenhum termo usual no âmbito da filosofia. O jurista sabia o que esse termo significava, mas não o considerava – outrora – como efetivamente importante. Com o teólogo, as coisas não eram diferentes. Mesmo em Schleiermacher, o avô da hermenêutica moderna, a hermenêutica ainda se mostra quase como uma disciplina auxiliar, e, em todo caso, como subordinada à dialética. Em seguida, em Dilthey, a hermenêutica é enquadrada na psicologia. Foi só a aplicação dada por Heidegger à fenomenologia husserliana, uma aplicação que significou ao mesmo tempo a recepção da obra de Dilthey pela fenomenologia, que forneceu à hermenêutica pela primeira vez a sua significação filosófica fundamental” (in GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 94.).

5 Citando Clifford Geertz: “[...] é a cultura que nos permite ficar extasiados diante de um dos fatos mais significativos da natureza humana: o fato de que nascemos com a possibilidade de viver mil vidas, mas terminamos por viver apenas uma” (in LARAIA apud SUESS, Paulo [Org.]. Culturas e Evangelização. São Paulo: Loyola, 1991. p. 20).

6 BRIGHENTI, Agenor. Para além da perplexidade do presente: A teologia desafiada. Texto sem publicação. p. 7; apresentando como um desafio a partir de outra obra: COMBLIN, J. “Evangelização e inculturação: implicações pastorais”. In: ANJOS, Fabri dos (Org.). Teologia da inculturação e inculturação da teologia. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 57-89. p. 57.

7 Somente para citar um pequeno comentário à conceptuação que estamos buscando, dentro do pensamento ocidental, para traduzir o que queremos afirmar, Heidegger tematizaria pela expressão aletheia mais ou menos isso que dizemos sobre o desvelamento ou o “encobrimento”.

8 BOFF, Leonardo. In: SUESS, Paulo (Org.). Culturas e Evangelização. São Paulo: Loyola, 1991. p. 129.

9 GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva. Petrópolis: Vozes, 2007. v. 1. p. 99.

10 SILVA, 1998.

11 Fazendo uma menção a uma reflexão muito bem desenvolvida em aula pelo professor Luiz Carlos Susin que, dentre outras coisas, afirma categoricamente: “Existem momentos na reflexão teológica em que a ‘não-teologia’ produz a teologia”. Entendo que, com isso, a teologia bebe de várias fontes, e, por isso, acredito firmemente que dentre as mais importantes fontes estão as culturas e as manifestações religiosas em suas expressões diversificadas, até mesmo como expressões de fé presentes e atuantes no seio das comunidades (cristãs e não cristãs). E digo até mais, sem tanto aprofundar agora: essas culturas, manifestações, expressões... configuram identidades em diálogo, e em processo contínuo  de expressão de vida, fé, amor, cultura, etc.

12 Dizemos isso refletindo já sobre os vários conteúdos e estudos elaborados e amplamente refletidos em todas as direções sobre o aspecto do pensamento afro. Porém, sentimos uma imensa defasagem de uma abordagem hermenêutica e teológica nesta mesma direção. Perguntamo-nos onde estariam as dificuldades para a “Teologia”, ou para os teólogos refletirem a partir de um referencial que fosse discutido, redefinido e constantemente re-elaborado, também como quebra de paradigmas e re-estruturação de pensamentos. Afinal, errar querendo acertar nem sempre foi pecado! Até mesmo para a teologia. O que será dito se tentando acertar consigamos também acertar nosso caminho começando por isso?

13 Enquanto constituição e organização teórico-prática: das disciplinas ensinadas não somente para os (as) afrodescendentes, como para todos(as) aqueles(as) que buscam e interessam-se pela temática. Tendo presente a Lei Federal 10.639/03 que até hoje nunca fora colocada em prática nas academias públicas e particulares da Nação Brasileira, devido à controversa discussão ou falta de vontade política dos governantes, Coordenadores Pedagógicos, Diretores de Faculdades – para mudança e implementação das medidas determinadas por leis que não se cumprem.

14 FREIRE, Paulo. Teologia negra y teología de la liberación. Prefácio à edição argentina da obra de James H. Cone, “A black theology of liberation”. Buenos Aires, Editorial Carlos Lolhe, 1973. 180 p. Também reproduzido: Cuadernos Latinoamericanos, Buenos Aires, n. 12, p. 9-11, 1974; Fichas Latioamericanas, Buenos Aires, Tierra Nueva, v. 1, ano 4, p. 55-56, dez. 1974. Prefácio à edição argentina de A black theology of liberation. In: FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. p. 128-30. Este texto originou-se de um simpósio realizado em Genebra e intitulado A Symposium on Black Theology and the Latin American Theology of Liberation, promovido pelo Conselho Mundial de Igrejas e com a colaboração de Hugo Assman, E. I. Bodipo-Malumba e James H. Cone. Disponível em: . Vários acessos.

15 BODIPO-MALUMBA apud FREIRE, Paulo (Org.). Teología negra y teología de la liberación. p. 99.

16 PADILHA, Günter. Hermenêutica Bíblica Negra e seus desafios. In: MENALÓPEZ, Maricel; NASH, Peter T. (Orgs.). Abrindo sulcos: para uma teologia afroamericana e caribenha. São Leopoldo: Sinodal, 2003. p. 110.

17 RODRIGUES DA SILVA, Marcos. Caminhos da teologia afro-americana. In: SILVA, Antonio Aparecido da. Existe um pensar teológico negro?”. São Paulo: Paulinas, 1998. p. 9.

18 RODRIGUES DA SILVA, 1998, p. 10.

19 Não deixando de considerar que também o simbólico e o imaginário são reais dentro de uma cultura africana. Apenas mencionamos para designar “os mundos” como comumente, ou ocidentalmente o separamos para entender melhor aquilo que, geralmente, em uma visão africana, forma um mesmo “todo” da existência real.

20 BODIPO-MALUMBA, p. 102.
 
 
 

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O NATAL EM LINGUAGEM ATUAL: ORALIDADE E PROFECIA


Como representar a história do Natal com traços da nossa cultura?

Isso é feito de forma espetacular, valorizando a Cultura Popular, em suas várias características. Assim, vemos e ouvimos neste vídeo o retrato, ou a história do nascimento de Jesus em forma de Cordel. Os textos ritmados são de Euriano Sales, e as ilustrações de Meg Banhos. A trilha, tipicamente nordestina, que embala o vídeo é de Sa Grama. E assim segue a belíssima “história do começo de tudo”, como insiste lembrar o narrador, é do “verdadeiro dono da festa, digno de toda honra e glória”.



E, logo depois do vídeo, a Profecia fica por conta de Dom Pedro Casaldáliga - bispo de São Félix do Araguaia - na sua mensagem de Natal e com reflexões profundas sobre este momento:



segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A GLOBALIZAÇÃO E “O RESTO NO OCIDENTE”


"The Rest in the West"

Por Stuart Hall *

São três possíveis conseqüências da globalização, isto é, a homogeneização das identidades globais. Elas são:

a) A globalização caminha em paralelo com um reforçamento das identidades locais, embora isso ainda esteja dentro da lógica da compreensão espaço-tempo.
b) A globalização é um processo desigual e tem sua própria “geometria de poder”.
c) A globalização retém alguns aspectos da dominação global ocidental, mas as identidades culturais estão, em toda parte, sendo relativizadas pelo impacto da compreensão espaço-tempo.

Talvez o exemplo mais impressionante desse terceiro ponto seja o fenômeno da migração. Após a Segunda Guerra Mundial, as potências européias descolonizadoras pensaram que podiam simplesmente cair fora de suas esferas coloniais de influência, deixando as conseqüências do imperialismo atrás delas. Mas a interdependência global agora atua em ambos os sentidos. O movimento para fora (de mercadorias, de imagens, de estilos ocidentais e de identidades consumistas) tem uma correspondência num enorme movimento de pessoas das periferias para o centro, num dos períodos mais longos e sustentados de migração “não-planejada” da história recente. Impulsionadas pela pobreza, pela seca, pela fome, pelo subdesenvolvimento econômico e por colheitas fracassadas, pela guerra civil e pelos distúrbios políticos, pelo conflito regional e pelas mudanças arbitrárias de regimes políticos, pela dívida externa acumulada de seus governos para com os bancos ocidentais, as pessoas mais pobres do globo, em grande número, acabam por acreditar na “mensagem” do consumismo global e se mudam para locais de onde vêm os “bens” e onde as chances de sobrevivência são maiores. Na era das comunicações globais, o Ocidente está situado apenas à distância de uma passagem aérea.
Tem havido migrações contínuas e de grande escala, legais e “ilegais”, para os Estados Unidos, a partir de muitos países pobres da América Latina e da bacia caribenha (Cuba, Haiti, Porto Rico, República Dominicana, ilhas do Caribe Britânico), bem como grande número de “migrantes econômicos” e de refugiados políticos do Sudeste da Ásia e do Extremo Oriente – chineses, coreanos, vietnamitas, cambojianos, indianos, paquistaneses, japoneses. O Canadá tem uma substancial minoria de população caribenha. Uma conseqüência disso é uma mudança dramática na “mistura étnica” da população dos Estados Unidos – a primeira desde as migrações em massa das primeiras décadas deste século (XX). Em 1980, um em cada cinco americanos tinha origem afro-americana, asiático-americana ou indígena. Em 1990, essa estatística era de um em cada quatro. Em muitas cidades grandes (incluindo Los Angeles, San Francisco, Nova York, Chicago e Miami), os brancos são agora uma minoria. Nos anos 80, a população da Califórnia cresceu em 5, 6 milhões, 43 por centro dos quais eram pessoas de cor – isto é, incluindo hispânicos e asiáticos, bem como afro-americanos (comparados com 33 por cento em 1980) – e um quinto tinha nascido no estrangeiro. Em 1995, previa-se que um terço dos estudantes das escolas públicas americanas seria constituído de “não-brancos” (Censo dos Estados Unidos, 1991, citado em Platt, 1991).
Ao longo do mesmo período, houve uma “migração” paralela de árabes do Maghreb (Marrocos, Argélia, Tunísia) para a Europa, e de africanos do Senegal e do Zaire para a França e para a Bélgica; de turcos e norte-africanos para a Alemanha; de asiáticos das Índias Ocidentais e Orientais (ex-colônias holandesas) e do Suriname para a Holanda; de norte-africanos para a Itália; e, obviamente, de pessoas do Caribe e da Índia, Paquistão, Bangladesh, Quênia, Uganda e Sri Lanka para o Reino Unido. Há refugiados políticos da Somália, Etiópia, Sudão e Sri Lanka e de outros lugares, em pequenos números, em toda parte.
Esta formação de “enclaves” étnicos minoritários no interior dos estados-nação do Ocidente levou a uma “pluralização” de culturas nacionais e de identidades nacionais.


A dialética das identidades

Como esta situação tem se mostrado na Grã-Bretanha, em termos de identidade? O primeiro efeito tem sido o de contestar os contornos estabelecidos da identidade nacional e o de expor seu fechamento às pressões da diferença, da “alteridade” e da diversidade cultural. Isto está acontecendo, em diferentes graus, em todas as culturas nacionais ocidentais e, como conseqüência, fez com que toda a questão da identidade nacional e da “centralidade” cultural do Ocidente fosse abertamente discutida.
Num mundo de fronteiras dissolvidas e de continuidades rompidas, as velhas certezas e hierarquias da identidade britânica têm sido postas em questão. Num país que é agora um repositório de culturas africanas e asiáticas, o sentimento do que significa ser britânico nunca mais pode ter a mesma velha confiança e certeza. O que significa ser europeu, num continente colorido não apenas pelas culturas de suas antigas colônias, mas também pelas culturas americanas e agora pelas japonesas? A categoria da identidade não é, ela própria, problemática? É possível, de algum modo, em tempos globais, ter-se um sentimento de identidade coerente e integral? A continuidade e a historicidade da identidade são questionadas pela imediatez e pela intensidade das confrontações culturais globais. Os confortos da Tradição são fundamentalmente desafiados pelo imperativo de se forjar uma nova auto-interpretação, baseada nas responsabilidades da Tradução cultural (Robins, 1991, p. 41).
Outro efeito desse processo foi o de ter provocado um alargamento do campo das identidades e uma proliferação de novas posições-de-identidade, juntamente com um aumento de polarização entre elas. Esses processos constituem a segunda e a terceira conseqüências possíveis da globalização, anteriormente referidas – a possibilidade de que a globalização possa levar a um fortalecimento de identidades locais ou à produção de novas identidades.
O fortalecimento de identidades locais pode ser visto na forte reação defensiva daqueles membros dos grupos étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras culturas. No Reino Unido, por exemplo, a atitude defensiva produziu uma “inglesidade” (englishness) reformada, um “inglesismo” mesquinho e agresssivo e um recuo ao absolutismo étnico, numa tentativa de escorar a nação e reconstruir “uma identidade que seja uma, unificada, e que filtre as ameaças da experiência social” (Sennett, 1971, p. 15). Isso frequentemente está baseado no que antes chamei de “racismo cultural” e é evidente, atualmente, em partidos políticos legais, tanto de direita quanto de esquerda, e em movimentos políticos mais extremistas em toda a Europa Ocidental.
Algumas vezes isso encontra uma correspondência num recuo, entre as próprias comunidades comunitárias, as identidades mais defensivas, em resposta à experiência de racismo cultural e de exclusão. Tais estratégias incluem a re-identificação com as culturas de origem (no Caribe, na Índia, em Bangladesh, no Paquistão); a construção de fortes contra-etnias – como na identificação simbólica da segunda geração da juventude afro-caribenha, através dos temas e motivos do rastafarianismo, com sua origem e herança africana; ou o revival do tradicionalismo cultural, da ortodoxia religiosa e do separatismo político, por exemplo, entre alguns setores da comunidade islâmica.


Um exemplo é o Movimento Rastafari





     O Rastafári é um movimento religioso de Origem Africana que proclama Hailê Selassiê I, imperador da Etiópia, como a representação terrena de Jah (Deus). O termo Rastafári tem sua origem em Ras ("príncipe" ou "cabeça") Tafari ("da paz").
     Iniciado por uma interpretação da profecia bíblica em parte baseada pelo status de Selassiê como o único monarca africano de um país totalmente independente e seus títulos de Rei dos Reis, Senhor dos Senhores e Leão Conquistador da Tribo de Judah, que foram dados pela Igreja Ortodoxa Etíope.
     O movimento se concretizou na Jamaica entre a classe trabalhadora e camponeses negros traficados de seu continente natal, em meados da década de 20.
     Alguns historiadores, afirmam que o movimento surgiu, e teve posteriormente adesão, por conta da exploração que sofria o povo jamaicano, o que favorece o surgimento de idéias religiosas como protesto-social. O movimento teve como publicista religioso e organizador jamaicano Marcus Garvey (considerado um profeta), o qual ajudou a inspirar a imagem de um novo mundo com sua visão política e cultural que beneficiacem o povo sofrido.
     Outro [ponto] importante é a identificação com as cores verde, amarelo e vermelho, representantativas da bandeira da Etiópia. Elas são símbolos do movimento rastafári, e da lealdade dos rastas a Hailê Selassiê, à Etiópia e a África acima de qualquer outra nação moderna onde eles possivelmente vivem. Estas cores são freqüentemente vistas em roupas e decorações:
 O Vermelho representa o sangue dos mártires,
O Verde representa a vegetação da África,
O Amarelo representa a riqueza e a prosperidade do continente africano.
O Preto foi incluso após a morte de Imperador Hailê Selassiê I, e representa o luto.


     O Movimento Rastafári se espalhou muito pelo mundo, principalmente por causa da imigração (geralmente forçada) e do interesse gerado pelo ritmo do reggae, e um dos maiores "divulgadores" o cantor, compositor e guitarrista Robert Nesta Marley. Este, mais conhecido como Bob Marley, aderiu ao mesmo Movimento com profundas convicções políticas e religiosas - retratadas em curto período de vida, em suas clássicas letras, estilo e musicalidade. *
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Acesso: 20/12/2010


* Com acréscimos, complementações (e correções), ao texto original.

Outras evidências e considerações

Também há algumas evidências da terceira conseqüência possível da globalização – a produção de novas identidades. Um bom exemplo é o das novas identidades que emergiram nos anos 70, agrupadas ao redor do significante black, o qual, no contexto britânico, fornece um novo foco de identificação tanto para as comunidades afro-caribenhas quanto para as asiáticas. O que essas comunidades têm em comum, o que elas representam através da apreensão da identidade black, não é que elas sejam, cultural, étnica, lingüística ou mesmo fisicamente, “a mesma coisa” (isto é, não-brancas, como o “outro”) pela cultura dominante. É a sua exclusão que fornece aquilo que Laclau e Mouffe chamam de “eixo comum de equivalência” dessa nova identidade. Entretanto, apesar do fato de que esforços são feitos para dar a essa identidade black um conteúdo único ou unificado, ela continua a existir como uma identidade ao longo de uma larga gama de outras diferenças. Pessoas afro-caribenhas e indianas continuam a manter diferentes tradições culturais. O black é, assim, um exemplo não apenas do caráter político das novas identidades, isto é, de seu caráter posicional e conjuntural (sua formação em e para tempos e lugares específicos), mas também do modo como a identidade e a diferença estão inextrincavelmente articuladas ou entrelaçadas em identidades diferentes, uma nunca anulando completamente a outra.

Como conclusão provisória, parece então que a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e “fechadas” de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas. Entretanto, seu efeito geral permanece contraditório. Algumas identidades gravitam ao redor daquilo que Robins chama de “Tradição”, tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas. Outras aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam outra vez unitárias ou “puras”; e essas, consequentemente, gravitam ao redor daquilo que Robins (seguindo Homi Bhabha) chama de “Tradução”.

Naquilo que diz respeito às identidades, essa oscilação entre Tradição e Tradução (que foi rapidamente descrita antes, em relação à Grã-Bretanha) está se tornando mais evidente num quadro global. Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. Pode ser tentador pensar na identidade, na era da globalização, como estando destinada a acabar num lugar ou noutro: ou retornando a suas “raízes” ou desaparecendo através da assimilação e da homogeneização. Mas esse pode ser um falso dilema.

Pois há uma outra possibilidade: a da Tradução. Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” (e não a uma “casa” particular). As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural “perdida” ou de absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente traduzidas. A palavra “tradução”, observa Salman Rushdie, “vem, etimologicamente, do latim”, significando “transferir”; “transportar entre fronteiras”. Escritores migrantes, como ele, que pertencem a dois mundos ao mesmo tempo, “tendo sido transportados através do mundo..., são homens traduzidos” (Rushdie, 1991). Eles são o produto das novas diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais. Eles devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia. Há muitos outros exemplos a serem descobertos.

* Stuart Hall é professor da Open University, Inglaterra. Foi um dos fundadores do importante Centre for Contemporany Cultural Studies, da Universidade de Birmingham, Inglaterra, tendo sido seu diretor de 1970-79. É uma das figuras mais importantes da área de estudos sociais.


Fonte:
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade; trad.Tomaz T. da Silva, Guaracira L. Louro, 10.ed., RJ: DP&A, 2005, pp. 80-89.

REFERÊNCIAS DO TEXTO

PLATT, A. Defending the Canon, Fernand Braudel Centre and Institute of Global Studies. Binghamton: State University of New York, 1991.

ROBINS, K. Tradition and translation: national culture in its global context. In Corner, J. and Harvey, S.(orgs.), Enterprise and Heritage: Crosscurrents of National Culture. Londres: Routledge, 1991.

RUSHIDIE, S. Imaginary Hornelands. Londres: Granta Books, 1991.

SENNETT, R. The Ideas of Disorder. Harmondsworth: Penguin, 1971.

sábado, 18 de dezembro de 2010

O PERIGO DA "HISTÓRIA ÚNICA" = O PRÉ-CONCEITO

Conforme relata a romancista Chimamanda Adichie, Nigeriana, a nossa vida, ou as nossas culturas, são compostas por muitas histórias sobrepostas. Assim, ela  conta a sua história, a partir de como descobriu a sua voz cultural - e adverte que se ouvirmos apenas uma "única história" sobre qualquer outra pessoa ou país, arriscamos obter o que ela chama de um "desentendimento crítico".

Para conferir seu discurso-palestra, acesse o endereço abaixo (um vídeo-conferência, com legenda em português):



quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

HUMANISMO - UM NOVO MOMENTO 'EM TEMPO'


É hora de um Novo Humanismo

Para responder aos neoliberais, é preciso propor um novo humanismo, que leve em conta as revoluções da informática e da biotecnologia

Por Patrick Viveret*, Le Monde Diplomatique

(As notas estão citadas com números no meio do texto e fundamentação ao final)


O debate que se abre novamente sobre o humanismo é de extrema importância. Ele tem por origem as conseqüências daquilo que se começa a evocar sob os termos de "revolução do ser vivo, revolução "biológica" ou "genética", e das quais só conhecemos, da fecundação in vitro à clonagem da ovelha Dolly, as primeiras etapas. Ao grande desafio ecológico do século XX -- expresso pela questão: "que faremos do nosso planeta?" - se acrescenta um outro, ainda mais radical, e de natureza antropológica: que faremos de nossa espécie?

Sobre este terreno, a tradição humanista progressista é confrontada com um debate, não somente com seus adversários, mas também em seu próprio interior. A tese da "pós-humanidade; é defendida, em suas linhas essenciais, por adversários do humanismo. Ela foi expressa recentemente por dois homens. O primeiro é identificado com a direita conservadora americana e, através de uma intensa publicidade, foi tornado célebre, em 1989, por seu artigo sobre "O fim da história", inicialmente publicado em The National Interest: trata-se de Francis Fukuyama (1). O segundo, Peter Sloterdijk, vem, ao contrário, da esquerda radical alemã, está na origem de uma forte polêmica com Jürgen Habermas e as teses da Escola de Frankfurt. A conferência de título significativo -- "Regras para o Parque Humano" -, proferida por ele em julho de 1999 por ocasião de um colóquio sobre Martin Heidegger e Emmanuel Levinas, transformou-se, nas colunas do semanário Die Zeit, no "affaire Sloterdijk". Ela encontrou seu prolongamento na França pela tradução do texto em questão e por diversas reações que provocou (2).

A nova "tese" de Francis Fukuyama, formulada novamente em The National Interest (3), tem um interesse mais ideológico do que teórico. Mas, na medida em que ela exprime o ponto de vista de um dos "intelectuais" orgânicos -- no sentido gramsciano do termo -- colocados em posição de vanguarda pelo capitalismo contemporâneo, deve ser conhecida e analisada. Nela, o autor afirma em primeiro lugar que os fatos confirmaram seu discurso sobre a realização da história (na acepção hegeliana e marxista do conceito) pelo capitalismo. Depois, sem pestanejar, anuncia que estava enganado, pois a revolução biotecnológica vai criar as condições para uma história "pós-humana". Deixemos de lado a megalomania do autor para examinar o fundo do problema que ele aborda: as interações entre as duas "revoluções irmãs", das tecnologias de informação, por um lado, e das biotecnologias, por outro, e seu impacto sobre a ordem mundial.


O Admirável mundo novo de Fukuyama

"Se a primeira é a mais visível", escreve Francis Fukuyama, "a segunda é suscetível de produzir as perturbações mais importantes". O argumento é explicitado em um parágrafo que merece ser citado integralmente, pois exprime sem rodeios os postulados antropológicos do capitalismo anglo-saxão (4):

"O período aberto pela revolução francesa viu florescer diversas doutrinas que desejavam triunfar sobre os limites da natureza humana, criando um novo tipo de ser que não estivesse submetido aos preconceitos e limitações do passado. O fracasso destas experiências, no fim do século XX, nos mostrou os limites do construtivismo social, confirmando -- ao contrário -- uma ordem liberal, baseada no mercado e estabelecida sobre verdades manifestas, ligadas à Natureza e ao deus da Natureza. Mas poderia muito bem ser que os instrumentos dos construtivistas sociais do século, desde a socialização a partir da infância até a agitação e propaganda política e os campos de trabalho, passando pela psicanálise, fossem muito grosseiros para modificar profundamente o substrato natural do comportamento humano. O caráter aberto das ciências contemporâneas da natureza nos permite avaliar que, de hoje às duas próximas gerações, a biotecnologia nos dará instrumentos que nos permitirão cumprir o que os especialistas da engenharia social não conseguiram fazer. Neste estágio, teremos definitivamente terminado com a história humana, porque teremos abolido os seres humanos enquanto tais. Então começará uma nova história, para além do humano."

Estamos precisamente, como pode-se ver, no coração da famosa ficção de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, publicada em 1932. Francis Fukuyama não se contenta em anunciar (e, implicitamente, em justificar) esta saída da era humana. A longa passagem que ele consagra ao tratamento químico das paixões pelo Prozac lembra estranhamente os famosos comprimidos de soma que as personagens de Huxley tomavam ao menor sinal de contrariedade. Considerando o elogio das desigualdades ao qual ele se dedica permanentemente, pressentimos igualmente que nosso autor consideraria, sem grande sobressaltos na alma, um mundo onde sub-homens estariam ao serviço de super-homens. É neste sentido que a afirmação da pós-humanidade põe em relevo mais um anti-humanismo teórico e prático do que aquilo que denominamos liberalismo.

Estes pretensos liberais são, na verdade, defensores de um anti-liberalismo cultural obstinado -- em nome, como diz Francis Fukuyama, do "deus da Natureza" -- e de um anti-liberalismo político não menos virulento, que se exprime principalmente pelas políticas repressivas em matéria de imigração, a livre circulação de capitais não tendo nada a ver, segundo eles, com a dos seres humanos. Quanto ao seu liberalismo econômico, ele vai desaparecendo à medida que as posições dos Estados Unidos estão em jogo e que, conforme tinha mostrado fortemente Fernand Braudel, os interesses do capitalismo entram em contradição com a própria lógica do mercado. Pode-se observar bem isso na reconstituição dos grandes trustes, cartéis e monopólios que restituem toda a atualidade à crítica marxista (5). Seu ponto comum é, na verdade, pesquisar na direção de um anti-humanismo ideológico e prático, justificar esta desordem mundial estabelecida que conduz à manutenção de aproximadamente três bilhões de seres humanos em estado de sub-humanidade.


Sloterdijk esconde-se atrás de Platão

A reaparição, no coração da Europa, de uma corrente filosófica baseada na crítica do humanismo inscreve-se neste mesmo contexto. Como no caso de Francis Fukuyama, a atenção que devemos dedicar a Peter Sloterdijk é justificada mais pelo sintoma ideológico inquietante que ele manifesta do que pela qualidade de seu pensamento: não é Nietzsche que quer! Longe, aliás, da audácia daquele que "filosofava a golpes de martelo", Peter Sloterdijk avança disfarçado em uma boa parte de seu texto, utilizando um método que não está longe de lembrar os deslizamentos semânticos sugestivos, caros às correntes de extrema-direita. As palavras que ele utiliza -- tais como "parque humano", "criação" (Nota do Tradutor: no sentido de criação de animais), "domesticação", etc. -- evocam ao leitor pouco familiarizado com a história da filosofia, idéias que se aparentam à justificação de um projeto de instrumentalização e de subordinação de uma parte dos seres humanos. Mas se alguém denuncia o caráter perigoso e regressivo de tais propostas, sobretudo no contexto alemão, ele grita contra o que considera ser uma difamação e se esconde atrás do fato de tais termos estarem presentes em Platão.

Entrincheirado atrás do autor da República, Peter Sloterdijk pode escrever assim: "Desde o politikos e a politeaia, existem discursos que falam da comunidade como se tratasse de um parque zoológico que é, ao mesmo tempo, um "parque temático". A partir disso, a manutenção dos homens nos parques -- e nas cidades -- pode aparecer como uma tarefa zôo-política". Ou, mais longe: "No que concerne ao zoo platônico, importa-lhe sobretudo aprender se a diferença entre a população e a direção é somente de grau ou é mais de espécie". O leitor que desconhece o contexto intelectual e político no qual se inscreve a obra de Platão é assim reenviado aos seus caros estudos. A intimidação pretende fazer calar tais críticas, ao passo que a sugestão funciona perfeitamente para aqueles que se re jubilam secretamente com tais termos.

Apesar disso, é suficiente se indignar, gritar contra o eugenismo fascistóide, como sugeriram Jürgen Habermas e alguns de seus discípulos? Esta indignação é necessária, mas não é suficiente. Duas razões maiores incitam à lucidez sobre a crise do humanismo da modernidade. A primeira refere-se à insuficiente consideração tanto da mutação informacional quanto da revolução biológica. A segunda, mais histórica, está relacionada às carências do tríptico indivíduo/razão/progresso, tal como ele foi construído a partir do período das Luzes. As grandes catástrofes éticas e humanitárias do século XX, assim como o caráter inumano do capitalismo industrial do século XIX puderam encontrar nele dois grandes pontos de fragilidade.

Inicialmente, fragilidade ecológica: ao fazer do homem cartesiano "o mestre e possuidor da natureza", sem que ele se interrogue sobre sua responsabilidade para com seu ambiente, o humanismo, fascinado pelo progresso técnico, depois pelo novo tríptico ciência/técnica/mercado, não se protegeu contra o que, nos anos 70, Illich denominará sua "parte de contra-produtividade". Em segundo lugar, fragilidade antropológica: após o desmoronamento das "sociedades da ordem", a refundação de todo laço social unicamente a partir do indivíduo racional, ignorava a inserção coletiva e organizava um cara-a-cara entre o indivíduo e o Estado e subestimava as aspirações emocionais e espirituais da condição humana (6), facilitando tanto as aproximações de tipo capitalista quanto as lógicas estatizantes.


Da reprodução assistida à fabricação do ser humano

No momento em que somos confrontados ao desafio ecológico (7) - de um desenvolvimento durável, para nós mesmos e para as gerações futuras --, e ao desafio antropológico -- de uma possível mutação da espécie humana --, não podemos esquecer que um novo humanismo deve pensar as tensões dinâmicas entre indivíduo e comunidade; entre razão crítica e busca de sentido; entre transformação da natureza e respeito pela biosfera; entre progresso técnico e científico e vigilância sobre seus potenciais efeitos destruidores. A fim de resistir aos fantasmas da pós-humanidade, toda refundação deve levar plenamente em conta a mutação informacional (8) e a revolução do ser vivo, que, em sua relação sistêmica, sacodem profundamente as marcas do "habitat" humano. É, com efeito, ao mesmo tempo, nosso modo de habitar o mundo e de habitar nosso próprio corpo que se encontra transformado até tocar nosso ponto mais íntimo, a partir do momento em que passamos insensivelmente da reprodução assistida para a fabricação do ser humano.

Nestas condições, não é surpreendente que diversos autores não somente denunciem com força a instrumentalização e a mercantilização -- único uso que o capitalismo contemporâneo faz desta dupla mutação --, mas também coloquem em causa aquilo que as correntes progressistas e feministas consideram como avanços sociais: aborto e reprodução assistida, especialmente.

A mais radical em sua interpelação é, sem dúvida, a psicanalista Monette Vacquin que, em Main basse sur les vivants (9), coloca uma questão crucial: "Eu procurava compreender e enunciar por que nossa geração tinha arrancado a origem da sexualidade, por que, hoje, ela estava ao ponto de anular a diferença de gerações, de pulverizar as relações de parentesco". Denunciando a ligação "turva e perturbadora entre industrialização da criação e ginecologia", ela se pergunta como pesquisadores nascidos durante ou imediatamente após a guerra, freqüentemente militantes anti-fascistas, puderam dar ao mundo "as ferramentas do eugenismo mais louco, indo contra seus ideais mais preciosos, como se uma repetição estivesse zombando deles?" (...) "Por que tal perfume, o do inconsciente mais arcaico, na ciência de ponta?" (...) "Por que este esboroamento da Razão maiúscula parece nos fazer perder a nossa? E por que a humanidade parece hoje como algo extremamente bom de se abandonar?"

Compreende-se, então, que aos olhos da autora, a perspectiva da clonagem não seja mais do que a parte visível de um iceberg cuja a massa invisível é a de um fantasma infantil de onipotência, e uma forma desviada de colocar em questão a proibição do incesto: "Denominamos incestuosa este impulso des-diferenciador (dé-différenciante) que tende inexoravelmente à padronização e à fabricação do mesmo". E citando Jean Baudrillard, em A Transparência do Mal: "Nós generalizamos o incesto em todos os seus derivados. É assim que contornamos o proibido, pela subdivisão do mesmo, pela copulação do mesmo com o mesmo, sem passar pelo outro" (10). Despojada das tranqüilizadoras perspectivas terapêuticas que, segundo ela, tinham adormecido o pensamento, a clonagem se impõe como um limite a este processo. Somente ela é enfim capaz de fazer aparecer "no seio da comunidade científica, assim como da sociedade civil, a enunciação da proibição -- largamente ausente já há vinte anos nesta formulação elementar -- e especialmente nos textos de leis, que usavam perífrases para evitar seu emprego e assim, suponho, poupar as consciências de uma geração que havia proibido o proibir".

Em certos momentos, pode-se perguntar onde se localizam as fronteiras entre a crítica legítima de Monette Vacquin e as posições das correntes tradicionalistas que inscrevem a condenação da clonagem humana em uma recusa global não somente do aborto -- até mesmo da contracepção --, mas também da reprodução assistida, assim como de toda pesquisa sobre um embrião definido como já sendo uma pessoa. Em resumo, estamos condenados, em nome da recusa à instrumentalização e à transformação do ser humano em mercadoria, a reexaminar conquistas centrais do liberalismo cultural? O biólogo Henri Atlan acredita que não. Sua denúncia dos efeitos devastadores do capitalismo no domínio biológico é tão clara quanto a de Monette Vacquin, mas ele tira dela conclusões em parte inversas.


Libertar a Humanidade do trabalho e do parto?

Em seu último livro, Les Etincelles de hasard (11) (As centelhas do acaso), Henri Atlan mantém o ponto de vista emancipador da tradição progressista, fundamentando-o numa leitura tão erudita como apaixonante da Cabala e de Spinoza: "A ciência e a tecnologia parecem liberar pouco a pouco os filhos de Adão e Eva da maldição bíblica, do trabalho em meio ao sofrimento e do parto na dor". Aliando-se neste ponto a Hannah Arendt, ele nota que "a vocação do homem, em todo caso para os mestres do Talmud, é a atividade criadora do conhecimento na sabedoria, e nunca a escravização à dor e ao sofrimento do trabalho". Mas ele ultrapassa estas inflexões -- que lembram as de André Gorz (12) -- para evocar uma outra emancipação, bem além do parto sem dor, aquela que, diz ele, permitiria "uma liberação completa do fardo do parto...ao menos para aquelas mulheres que o percebem como um fardo".

Assumindo plenamente a dissociação da fecundidade e da procriação, da qual a contracepção e o planejamento familiar foram os vetores originais, Henri Atlan estima que "o processo de planificação positiva está em andamento, e pode levar, em um prazo mais ou menos breve, a uma separação total entre procriação e sexualidade. As crianças seriam então produzidas desde o início -- fecundação in vitro, clonagem -- até o fim -- por gestação artificial -- fora do corpo das mulheres". Certamente, acrescenta, "estamos ainda longe disso, no que concerne à possibilidade de gestação extra-corporal, mas nada, em princípio, impede de imaginar a solução dos numerosos problemas técnicos que a criação de um útero artificial oferece".

Trata-se de um risco ou de uma oportunidade? Henri Atlan considera que as duas possibilidades estão abertas (13). Se ele se opõe com força a toda lógica de instrumentalização do ser humano, se ele atribui à questão da filiação uma real importância, ele não tira apesar disso conclusões totalmente negativas a respeito da dissociação da relação sexualidade/procriação. Duas frases de seu livro devem ser citadas aqui com prudência pois, extraídas de seu contexto favorável à proibição da clonagem, elas poderiam conduzir a uma incompreensão do autor.

Mas elas mostram que ele não hesita em assumir até o fim a lógica de sua tese, e delimitam a natureza de sua divergência com Monette Vacquin: "A fabricação do ser vivo-humano e não humano, acompanhará, de uma maneira que parece inevitável, a liberação da humanidade das maldições de sua condição, que a forçam a sofrer, simplesmente nutrindo-se para sobreviver e para se reproduzir. As dores do trabalho terão desaparecido, nos dois sentidos -- o do parto e o do cuidado com a criação. A clonagem reprodutiva humana seria um passo nesta direção".

Esta posição não o impede de se pronunciar -- como o fez o Comitê Consultivo Nacional de Ética para as Ciências da Vida e da Saúde, do qual é um membro influente -- em favor da proibição de toda clonagem humana. Mas ele não baseia esta proibição nem sobre motivos biológicos (dois seres clonados seriam geneticamente menos próximos que dois verdadeiros gêmeos), nem sobre razões religiosas e metafísicas. Sua leitura do Talmud o conduz a conclusões opostas às hipóteses tradicionalistas.


Uma ética para as mutações genéticas

É o risco social que lhe parece fundamental, considerando o estado moral atual da humanidade: "Como na lenda de Jeremias e do Golem que ele fabrica, a questão é saber se as sociedades humanas podem estar moralmente à altura do desafio que constituiria, para a humanidade, a capacidade de racionalizar e de controlar totalmente, pela técnica, a vida dos seres humanos... Nada impede de imaginar um tempo onde uma humanidade, pacificada e cada vez mais aberta aos refinamentos da vida e do espírito, poderá fazer um uso racional e benéfico dos produtos do progresso tecnológico, incluindo aí o domínio da fabricação de seres vivos".

Jacques Testart, que também aborda este tema capital em seu último livro, Des hommes probables (14), está sem dúvida mais próximo de Monette Vacquin do que de Henri Atlan. Sua abordagem é, porém, mais enraizada sobre o terreno político e biológico, e sua justificação matizada pela injeção direta de um espermatozóide no óvulo (ICSI), da qual ele é um dos melhores especialistas mundiais, não conviria sem dúvida ao radicalismo crítico de outros autores. Em todo o caso, ele junta-se à autora de Main basse sur les vivants quanto ao princípio da proibição definitiva da clonagem. Mas ele considera "ilusório querer construir uma ética à francesa no momento em que se edifica uma economia mundial". Considerando que a França, nota ele, está entre os países mais restritivos, certos pacientes vão buscar fora de suas fronteiras técnicas proibidas em seu próprio país: doação de óvulo entre familiares, úteros substitutos, assistência médica à procriação após a menopausa.

"O mais grave", acrescenta Jacques Testart, "é que certos médicos burlam a lei, seja indo fazer pequenos trabalhos fora do Hexágono (é preciso publicar!) seja despachando para laboratórios estrangeiros exames realizados na França, a fim de submetê-los a práticas não regulamentadas (pesquisa sobre embrião, diagnóstico genético pré-implantação)... A solução está necessariamente na adoção de regras éticas aplicáveis à espécie...e esta via foi aberta pela criação de um comitê internacional de ética sob a égide da Unesco". Para ele, a bioética precisa dos cidadãos do mundo para se construir em benefício da humanidade, mais do que "servir de tapa-sexo para profissionais da bioética, para grupos com mania de seminários, para cientistas em busca de reconhecimento e para médicos e industriais em busca de novos mercados".

Estas regras éticas evocadas por Jacques Testart são longa e minuciosamente discutidas em uma recente obra coletiva sobre Le Clonage Humain (15). A jurista Mireille Delmas-Marty evoca aí especialmente a necessidade de não reduzir a noção de humanidade à sua dimensão biológica expressa pelo termo "espécie". Os direitos da pessoa humana são, em primeiro lugar, estima ela, "um protesto contra a ordem da natureza". Quando a Declaração universal afirma que "os homens nascem livres e iguais", eles não são, na realidade, do ponto de vista biológico, nem iguais nem verdadeiramente livres. Há, portanto, algo irredutível no humano que ultrapassa infinitamente sua definição biológica. E quando se evoca a "dignidade humana", conceito central de todas as grandes declarações que pretendem proibir a clonagem, esta mesma dignidade é definida negativamente, na medida em que seu conteúdo positivo é, ao menos em parte, indefinível.

É por isso que a dimensão simbólica, analisada pelo antropólogo Marc Auge neste mesmo livro, também é essencial. Assim como Monette Vacquin, Marc Auge evoca o risco regressivo de uma "escalada na direção de uma indiferenciação primeira". O nascimento da humanidade passa, ao contrário, sublinha ele, pela "descoberta da diferença: dos sexos, dos outros e da morte". Mas como assumir positivamente esta trilogia da sexualidade, da alteridade e da morte? Estamos aí no coração de um paradoxo maior.


A refundação humanista é possível?

Pois muitas tentativas humanas, quer elas sejam políticas, culturais ou, mais recentemente, químicas ou biológicas, procuram justamente nos livrar da parte de sofrimento que esta tripla diferenciação carrega. Desde a fascinação do Mesmo (face ao Outro), entre os primeiros filósofos, até o projeto do "homem novo" fundado no grande todo social dos regimes totalitários, passando pela veneração de um Deus único e unificado na história religiosa, toda uma parte da história humana clama contra a diferença. Escolher a humanidade face aos fantasmas, aos mitos e às realidades da indiferenciação é afirmar um projeto no qual a alteridade constitui uma oportunidade e não uma ameaça.

É possível, nesta perspectiva dinâmica, pensar numa refundação do humanismo integrando as contribuições essenciais dos trabalhos que acabamos de analisar, sem esquecer a fecundidade de suas divergências? Uma pista nesta direção poderia ser a de distinguir entre o infantil e a criança. O risco, bem analisado por Monette Vacquin, do caráter infantil e fantasmagórico da pulsão de onipotência (ou de onisciência), em obra na tecno-ciência atual, parece tão mais importante na medida em que ele está inscrito na pulsão de riqueza e de potência, que não possui limites, do capital financeiro. Neste sentido, poderíamos caracterizar a desregulamentação psíquica provocada pelo capitalismo como um desejo de onipotência aliado a uma recusa de responsabilidade. Aliás, é porque pressentem as conseqüências devastadoras de uma liberdade sem responsabilidade que os ultra-liberais econômicos são, na maior parte dos casos, anti-liberais culturais e políticos.


A transgressão fecunda das proibições

Mas a questão do fantasma infantil não anula o que há de melhor na criança, em particular a riqueza criadora de sua curiosidade e sua capacidade de vivenciar a dimensão maravilhosa da vida. Indagado um dia sobre o que caracterizava um espírito científico, Albert Einstein respondeu assim: a capacidade de se colocar questões de criança na idade adulta. Do mesmo modo, não podemos rebaixar ao infantil a famosa frase do Evangelho anunciando que o reino dos céus só é visível ao coração de uma criança. Há uma parcela de verdade nas duas afirmações, que poderíamos exprimir sinteticamente pela seguinte questão: como crescer para tornar-se criança? Trata-se, com efeito, de abrir uma alternativa dinâmica ao infantilismo e à rigidez do estado adulto.

Compreende-se melhor, então, o que quer dizer Atlan quando diz que um progresso moral da humanidade poderia tornar possível, de maneira não destrutiva, a eventualidade da clonagem. Certamente, sempre há uma proibição necessária, mas ela é de natureza diferente. Num caso, a idéia de que é preciso impor proibições transcendentes ao ser humano em si mesmo, a fim de defendê-lo de sua própria loucura (ou de seu pecado original) repousa sobre um fundo de pessimismo radical a respeito do humano. Na segunda hipótese, o proibido é um momento estruturador da abertura para uma liberdade que não é antinômica em relação à responsabilidade. A pesquisa, a transformação da natureza, a transgressão das proibições sociais ou morais anteriores são então legítimas e fecundas, caso sejam testemunhas de uma humanidade em via de crescer e não de regredir.

Não é nesta sabedoria, ao mesmo tempo espiritual e política, que devemos encontrar, no nível mais profundo de nossas coletividades e de nossas pessoas, um desejo de viver conscientemente a condição humana, justamente no momento em que teríamos a possibilidade técnica de sair dela?

As novas humanidades desejadas por Edgar Morin, no belo livro coletivo Relier les connaissances (16) (Religar os conhecimentos), estão, assim, baseadas num duplo apelo ao sistema educativo: "ensinar a condição humana e aprender o duro ofício de viver". A melhor resposta à fadiga da humanidade, atestada pelo próprio desejo de superá-la, não está na organização do direito de todo ser viver de cabeça erguida, e em plena consciência, a aventura humana? Recusar a regressão infantil, mas aprender a crescer para se dar um coração de criança, não está aí o projeto de uma história apaixonante da humanidade a que podemos aspirar?


Traduzido por Marco Aurélio Weissheimer

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NOTAS:

* Patrick Viveret é diretor de redação da revista Transversales Science/Culture

1 Obscuro funcionário do Departamento de Estado, tornado professor na Universidade George-Mason, Francis Fukuyama, foi "lançado" graças à Fundação Olin Produtos químicos. Por intermédio dos professores universitários Allan Bloom e Samuel Huntington, ambos diretores de centros de pesquisa ligados à Fundação Olin, colocados nas universidades de Chicago e de Harvard respectivamente, ela forjou inteiramente um "debate" a partir de sua conferência sobre "O fim da história", pronunciada em 1988. Inicialmente sustentado por dois outros beneficiários das generosidades da Fundação Olin -- a revista The National Interest (Verão de 1989) e seu diretor Irving Kristol --, este "debate" foi em seguida retomado pelos grandes meios de comunicação. Sobre este tema, ler Susan George, "Como o pensamento tornou-se único", Le Monde Diplomatique, agosto de 1996. A tradução francesa de Fukuyama: "La fin de l'histoire", publicada na revista Commentaires, n° 47, outono de 1989, foi reapresentada em sua obra La Fin de l'histoire et le Dernier Homme, (Flammarion, Paris, 1994).

2 A tradução de "Regras para o parque humano" apareceu no Le Monde des débats (outubro de 1999). No número do mês seguinte, este jornal publicou várias reações de intelectuais alemães e franceses, especialmente Henri Atlan e Bruno Latour. Ler igualmente, a propósito deste caso, Libération, de 27 de setembro e 22 de novembro, e Le Monde, de 29 de setembro de 1999.

3 A tradução integral deste texto, "La post-humanité est pour demain", foi publicada no Le Monde des débats (Julho-Agosto de 1999). Uma versão resumida, publicada posteriormente em The Los Angeles Times, foi traduzida para o francês com o título "La fin de l'histoire dix ans après", no Le Monde de 17 de junho de 1999.

4 Francis Fukuyama, "La fin de l'histoire, dix ans après", Le Monde, XXX 1999.

5 Ler Frédéric F. Clairmont, "Ces firmes géantes qui se jouent des Etats", Le Monde Diplomatique, dezembro de 1999.

6 Ler Jean-Claude Guillebaud, La Refondation du monde, Seuil, Paris, 1999.

7 A sucessão recente de catástrofes naturais não está provavelmente livre de relações com o aquecimento climático devido à liberação de gases até a formação do efeito estufa, em relação ao qual o modelo produtivista tem responsabilidades evidentes.

8 Ler o artigo de Jacques Robin, La société em reseaux, consagrado à trilogia de Manuel Castells, L'Ere de l'information, no Le Monde Diplomatique de janeiro de 1999.

9 Monette Vacquin, Main basse sur les vivants, Fayard, Paris, 1999, 276 p., 130 francos.

10 Jean Baudrillard, La Transparence du mal, Fayard, Paris, 1985.

11 Henri Atlan, Les Etincelles de hasard, Seuil, Paris, 1999, 393 p., 149 francos.
Seguindo uma lenda talmúdica, as "centelhas do acaso" são gotas de esperma derramadas por Adão, separado de Eva durante cento e trinta anos.

12 André Gorz, Misères du présent. Richesse du possible, Galilée, Paris, 1997.

13 Complementando a leitura das obras de Henri Atlan e Monette Vacquin, ler o debate entre os dois autores em Transversales Science/Culture, n° 61, janeiro-fevereiro de 2000.

14 Jacques Testart, Des hommes probables, Seuil, Paris, 1999, 280 p., 120 francos.

15 Henri Atlan, Marc Augé, Mireille Delmas-Marty, Roger-Pol Droit, Nadine Fresco, Le clonage humain, Seuil, Paris, 1999, 205 p., 120 francos.

16 Edgar Morin (coordenador), Relier les connaissances, Seuil, Paris, 1999, 472 p., 145 francos. Este livro reúne as contribuições multidisciplinares das jornadas temáticas organizadas por Edgar Morin por ocasião do debate sobre a reforma dos Liceus.



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