segunda-feira, 20 de dezembro de 2010


Outras evidências e considerações

Também há algumas evidências da terceira conseqüência possível da globalização – a produção de novas identidades. Um bom exemplo é o das novas identidades que emergiram nos anos 70, agrupadas ao redor do significante black, o qual, no contexto britânico, fornece um novo foco de identificação tanto para as comunidades afro-caribenhas quanto para as asiáticas. O que essas comunidades têm em comum, o que elas representam através da apreensão da identidade black, não é que elas sejam, cultural, étnica, lingüística ou mesmo fisicamente, “a mesma coisa” (isto é, não-brancas, como o “outro”) pela cultura dominante. É a sua exclusão que fornece aquilo que Laclau e Mouffe chamam de “eixo comum de equivalência” dessa nova identidade. Entretanto, apesar do fato de que esforços são feitos para dar a essa identidade black um conteúdo único ou unificado, ela continua a existir como uma identidade ao longo de uma larga gama de outras diferenças. Pessoas afro-caribenhas e indianas continuam a manter diferentes tradições culturais. O black é, assim, um exemplo não apenas do caráter político das novas identidades, isto é, de seu caráter posicional e conjuntural (sua formação em e para tempos e lugares específicos), mas também do modo como a identidade e a diferença estão inextrincavelmente articuladas ou entrelaçadas em identidades diferentes, uma nunca anulando completamente a outra.

Como conclusão provisória, parece então que a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e “fechadas” de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas. Entretanto, seu efeito geral permanece contraditório. Algumas identidades gravitam ao redor daquilo que Robins chama de “Tradição”, tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas. Outras aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam outra vez unitárias ou “puras”; e essas, consequentemente, gravitam ao redor daquilo que Robins (seguindo Homi Bhabha) chama de “Tradução”.

Naquilo que diz respeito às identidades, essa oscilação entre Tradição e Tradução (que foi rapidamente descrita antes, em relação à Grã-Bretanha) está se tornando mais evidente num quadro global. Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. Pode ser tentador pensar na identidade, na era da globalização, como estando destinada a acabar num lugar ou noutro: ou retornando a suas “raízes” ou desaparecendo através da assimilação e da homogeneização. Mas esse pode ser um falso dilema.

Pois há uma outra possibilidade: a da Tradução. Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” (e não a uma “casa” particular). As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural “perdida” ou de absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente traduzidas. A palavra “tradução”, observa Salman Rushdie, “vem, etimologicamente, do latim”, significando “transferir”; “transportar entre fronteiras”. Escritores migrantes, como ele, que pertencem a dois mundos ao mesmo tempo, “tendo sido transportados através do mundo..., são homens traduzidos” (Rushdie, 1991). Eles são o produto das novas diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais. Eles devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia. Há muitos outros exemplos a serem descobertos.

* Stuart Hall é professor da Open University, Inglaterra. Foi um dos fundadores do importante Centre for Contemporany Cultural Studies, da Universidade de Birmingham, Inglaterra, tendo sido seu diretor de 1970-79. É uma das figuras mais importantes da área de estudos sociais.


Fonte:
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade; trad.Tomaz T. da Silva, Guaracira L. Louro, 10.ed., RJ: DP&A, 2005, pp. 80-89.

REFERÊNCIAS DO TEXTO

PLATT, A. Defending the Canon, Fernand Braudel Centre and Institute of Global Studies. Binghamton: State University of New York, 1991.

ROBINS, K. Tradition and translation: national culture in its global context. In Corner, J. and Harvey, S.(orgs.), Enterprise and Heritage: Crosscurrents of National Culture. Londres: Routledge, 1991.

RUSHIDIE, S. Imaginary Hornelands. Londres: Granta Books, 1991.

SENNETT, R. The Ideas of Disorder. Harmondsworth: Penguin, 1971.

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