quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A CONSTRUÇÃO DO "LUGAR AFRO" NA EPISTEMOLOGIA

Em homenagem aos intelectuais negros do Brasil, em particular aos teólogos, neste dia em que se lembra deste ofício pouco requisitado atualmente na 'sociedade laica' (30 de novembro).

por Reinaldo João de Oliveira
(Mestre em Teologia Sistemática)
in Artigo: Teoafricanidades em diálogo e perspectivas.


Embora não trabalhamos em cima deste conceito "Ubuntu" decidi colocá-lo na perspectiva de uma referência importante ao tema exposto - de construção a partir de uma "outra" epistemologia...

          A população afrodescendente tem uma grande dificuldade de saber qual a sua genealogia, suas origens - tão necessário para o caminho da sua afirmação identitária. Assim, dado à condição implicada nestes processos, sequencialmente, sem fugir de diversas análises, remeto ao caminho que traçamos, para além do horizonte do "ocidente".

Essa é uma das principais indagações e fontes de pesquisa deste importante filósofo contemporâneo.


 
Uma das interpretações de “lugar” referido é o epistemológico, assim podemos considerar este como um olhar para as ciências, inclusive a teologia (apesar das críticas sobre o seu estatuto científico), vale observar que é um “olhar marginal”, pois estamos na grande maioria das vezes situados fora dos discursos destes centros, mas com olhares para nossa casa-comum (cf. APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura). Essa é uma análise mais sobre o fato do olhar a partir do próprio afrodescendente, com um menor número considerável dentre estudantes, e menor ainda entre professores/as, pesquisadores do fenômeno religioso e cultural afrobrasileiro.

Além de uma primeira constatação, o que mais podemos notar é o fato da Educação de base, na rede pública, onde muitos professores/as são mal formados sobre a história afro-brasileira e indígena e suas formas de religiosidade. Assim, não podemos esperar muito de uma formação adequada para gerar uma consciência suficiente para o processo que antes inferimos como uma necessidade – o da afirmação identitária. Logo, constatamos que a formação recebida pelos professores, em geral, teoricamente e na prática, é aquém da realidade brasileira quanto a questão africana e indígena com suas vivências históricas culturais e religiosas. assim tem sido a luta e buscas de outros importantes teóricos da práxis e da epismologia afro.

Abdias do Nascimento é uma grande referencia de serviço à causa da libertação, pelas vias da Educação, da Religiosidade/Cultura e Artes Negras do nosso tempo. Sua luta alimenta o dinamismo e as ações, como importante intelectual Negro brasileiro, militante e dedicado aos povos afrodescendentes do mundo todo.
 Podemos também afirmar que tanto as manifestações religiosas são elementos fundantes da cultura brasileira, ainda desprezados, desfavorecidos no ambiente das universidades e das escolas públicas, assim como as políticas relacionadas à promoção humana de pessoas afrodescendentes que ainda permanecem desconhecidas. Isso tudo pode ser constatado através dos programas e currículos dos cursos superiores e da escola pública que pouco tratam do fenômeno religioso africano no Brasil, que se confunde com as práticas do cristianismo e outras tradições religiosas espirituais eurocêntricas. E, mesmo nas instituições em que no currículo, ou programa, se vê imbricado a relação do estudo com o fenômeno religioso, manifesta-se estes equívocos – percebidos nos congressos, seminários e abordagens a respeito (realizados no sul do Brasil de 2009 a 2011). Ainda assim, toda essa discussão desenvolvida na esfera pública é o caminho que devemos continuar seguindo.
Produções de qualidade reconhecida são cada dia melhor desejadas no currículo escolar, para aprofundamento das 'raízes da construção do conhecimento' fundamental para estudantes e professores no Brasil.
Precisamos de mais ousadia acadêmica na pesquisa, sem os medos que impregnaram os discursos até aqui elaborados por outros estudiosos não tanto imparciais nas suas apresentações – e quero fazer valer até mesmo os próprios teóricos que nos ajudaram a chegar até aqui, num caminho de vitórias. Cito sem necessariamente fazer diferenciação sobre correntes de pensamento, ou de postura acadêmica. São nomes importantes para a pesquisa, tais como: Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Roger Bastide etc (conferir algumas referências no fim desta postagem). Apropriar-se dos vários pontos de vista também se torna um importante movimento que significa essa ousadia do pensamento livre, com vistas à uma atualização fundamentada na história, nas ciências gerais, a caminho de outras descobertas e horizontes.
Também para a teologia, que ainda permanece na esfera privada, cada realidade dessas, quando discutida, estudada, demonstra o quão necessário se faz empreender o caminho em que estamos para o “lugar” onde podemos chegar – sem interrupção, estagnação ou recolhimento. Na compreensão geral sobre o pensamento teológico ocidental em referência ao pensamento africano, já se desenvolveu uma análise partindo da Conferência Pan-Africana de Teólogos do Terceiro Mundo, reunida em Accra, Ghana (de 17 a 23 de dezembro de 1977), com uma reflexão teológica pertinente, nos aproximando em certa medida, para este contexto que permanece atual:

Afirmamos que nossa história é ao mesmo tempo sagrada e secular (...). Na estrutura tradicional não havia dicotomia entre o sagrado e o secular. Ao contrário, o sagrado era experimentado no contexto do secular. A Igreja deve tomar a sério este sadio modo de entender nossa sociedade africana (...) Os teólogos africanos têm plena consciência daquilo que ocorreu devido ao impacto da cultura ocidental sobre sua vida ordinária. Eles não rejeitam o cristianismo, mas estão convencidos de que a interpretação ocidental do mesmo produziu distorções. Insistem que Jesus encarava a vida sempre de modo “holístico” (...) e recusando-se a separar a vida em categorias sagradas e seculares, crêem os teólogos africanos serem capazes de harmonizar o pensamento tradicional africano com as perspectivas do cristianismo primitivo, trazendo assim uma importante contribuição para a atual compreensão do Evangelho cristão fora da África. (...) Num sentido pode-se descrever a presente fermentação na teologia africana dentro do contexto do tema da libertação: a saber, salvação como libertação. (...) Jesus preocupava-se com o perdão dos pecados, mas também com a cura da doença e a libertação dos pobres e oprimidos (Malcolm McVEIGHT, 1980, pp. 75–80).

Não somente as Igrejas e as Teologias Cristãs devem tomar a sério o sentido daquilo que concerne o modo mais adequado de se pensar a experiência religiosa do “outro”. Certamente, será necessário mais do que simples pinceladas, ou fragmentadas instruções na formação geral da cultura do nosso povo, que é o herdeiro, ou será vítima, da reforma educacional no Brasil.
Mas, enquanto organismo de pessoas que reflete sobre a realidade afrobrasileira, que queremos fomentar melhor de modo a vê-la explicitada, de modo que nos perguntamos: onde e como nos situamos, ou nos apresentamos para a ação? Que lugares e perspectiva temos deste a história (contada e não contada)? E, para onde iremos?

Esta produção é um belo começo de "recontrução" e resgate na perspectiva histórica, por exemplo... contando uma história não contada, ou mal contada.

‘LUGARES’ DE PERSPECTIVAS AFROTEOLOGAIS
Como diriam há um pouco de tempo, em estruturas mais ou menos eurocêntricas, referênte ao "aggiornamento", também se faz valer hoje, quando pensamos num retorno às fontes (outras fontes, porém, ou as mesmas de uma outra forma...).
Evidente que nem tudo é comum às leituras feitas na história sobre o Negro no Brasil. O que se estudou ou falou a respeito dos assuntos ligados ao universo religioso afro-brasileiro, como parte de um patrimônio cultural, não se deu da mesma forma, ainda que se teimem pintar um mesmo quadro em tantas projeções, tais como: em novelas, peças teatrais, obras de arte etc. Sem dúvida que todas elas expressam “algo” sobre o que foi ou do que está sendo mostrado da realidade dos povos afrodescendentes, ainda que desfocada, ou apenas de forma fragmentada em grandes veículos de mídia, especialmente. Por isso, também cabe sempre ao pesquisador, que observa estes cenários descortinados por tantos autores, procurar além deles olhando adiante e, se necessário ou possível, rompendo algumas fronteiras e ultrapassando o Atlântico (cf. filme: Atlântico negro: na rota dos orixás). Ultrapassar, sobretudo, no sentido do conhecimento na relação da África Continental, em suas peculiaridades distintas e locais, na relação com o Brasil, em perspectivas inter-religiosas, “pluri-multi-cultural”.
Este filme favorece muitos debates e pode ser muito bem utilizado por educadores e demais grupos de trabalhos e pesquisas em diferentes óticas e contextos.
A temática afrodescendente permeia tanto o contexto simbólico da cultura, com suas semânticas carregadas em mitos ancestrais, quanto de re-significações hoje exploradas em várias direções. Hoje, esta temática, está mais significativamente situada nos “lugares” de onde partem os estudos e as ações, como nas realidades sócio-econômicas (as necessidades mais sentidas) e nos direitos “humanos” – luta dos movimentos por cidadania e justiça social no Brasil. Porém, quais os enfoques dados? E as ciências que abordam os assuntos relacionados ao contexto religioso implicado nestes cenários, o que dizem? No mundo das Religiões Cristãs, alguns se manifestam como “devedores” de uma postura mais incisiva no processo de evangelização e reconhecimento da importância dos povos afrodescendentes na atual concepção evangélica, particularmente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, através de grupos de pessoas formadas em sua maioria nas escolas de teologia, que organizaram alguns estudos para refletir a questão da negritude na Bíblia, como passos para uma outra forma de leitura conceituada (cf. Bíblia e Negritude: pistas para uma leitura afro-descendente”). Na formação de educadores e lideranças de pastorais parece existir uma postura de exigência por um maior respeito ao que se diz e no que se escreve, ou produz, enquanto objeto de formação – conhecimento, portanto.
E o que se estuda, ou se obtém desde verificados campos, uma questão parece ser bastante lógica: “transplantar modelos” de práticas pedagógicas e religiosas – para o ensino de história e cultura africana no Brasil – não seria correto e nem o mais indicado em nenhum dos casos. Seria quase que uma forma de “re-sincretização” cultural e religiosa, nos termos pejorativamente concebidos como práticas ultrapassadas e que hoje não podem ser aplicadas conscientemente.
Ideal, hoje, seria realizar uma construção local desde a realidade histórica (não de forma cíclica: passado, presente e futuro), geográfica (territorial) e religiosa. Mais que considerar os parâmetros das pesquisas estatísticas, o desafio seria não hegemonizar e nem homogeneizar as experiências. Por exemplo, a partir do Seminário Internacional Culturas e Desenvolvimento, em relação à diversidade religiosa na América Latina, percebemos que sobressaem-se às tradições européias religiosas no contexto escolar. Ou seja, em um estudo que fizemos sobre a questão pontual da Cultura, Educação e Religião, em percurso desde 1930, consideramos que a participação política dos afrodescendentes no resgate de sua cultura e na resistência como marca significativa no tecido social e religioso, sempre foi muito tímido e ocultado (que por não ter sido manifestado, no sentido de uma reparação histórica verdadeira, colhemos frutos). Contudo, outros aspectos elucidativos a respeito da realidade brasileira com suas estruturas econômicas e políticas com base no poder ‘sobre’ seres-humanos manifesta bem uma realidade marcante que vemos necessário uma melhor explanação para a implementação deste Ensino.

LUGARES DE RESISTÊNCIA E DIÁLOGOS AFROTEOLOGAIS
Praticamente em quase todo o litoral brasileiro constituiu-se estes espaços denominados como Quilombos que remetem a compreensões históricas anteriores e “ressurgidas” (um paralelo entre os termos “Kilombo” e “Quilombo” como possíveis conexões - cf. Maria Beatriz do Nascimento. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra, 1995.). Esses espaços, como ‘lugares’ de onde as ‘falas’ são objetos para as teoafricanidades, foram e são formados por pessoas de ascendência africana que, através de diferentes maneiras, almejam a liberdade e seus direitos, resistindo ao processo de escravidão e, ainda, de colonização por séculos. Certamente por isso, também, o antropólogo K. Munanga, faz uma relação que aproxima o Quilombo brasileiro do Kilombo Africano: “é, sem dúvida, uma cópia do Kilombo africano reconstituído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela implantação de uma outra estrutura política na qual se encontravam todos os oprimidos” (Kabengele Munanga, 1995/1996, pp. 57-63).

Kabengele Munanga é hoje um dos pesquisadores que mais produz no aspecto de resgatar elementos da cultura africana no Brasil.
Hoje podemos fazer uma leitura importante sobre vários aspectos no processo dos “quilombolas” – ex-escravizados negros e seus descendentes brasileiros. Um destes elementos que queremos resgatar na ótica religiosa seria uma novidade ainda pouco difundida, explorada, ou seja: neste “outro modo de constituição social”, busca-se, desde sua origem, inserir também brancos pobres e índios que somavam a concretização do ideal que seria não reproduzir a dominação de uns sobre os outros, na forma até então experimentada como opressão. Podemos afirmar, por exemplo, que se começou com os quilombolas uma forma alternativa de organização social, tendo como princípio valores que já traziam desde as origens ancestrais, como prática de resistência, solidariedade e partilha. Ainda mais que se mantiveram outras formas de produção na esfera do colonialismo, de modo a se pensar na subsistência tal como percebemos ainda prosperar, adaptado ao contexto em que nos referimos. Então, podia-se notar que os quilombolas conseguiam não somente se organizarem por si mesmos dentro de suas comunidades, mas até expandir e comercializar suas “sobras da produção” aos brancos das vilas, que antes dependiam exclusivamente do trabalho escravo comercializado pelos “senhores de escravos” (como contrapor ou relacionar a mais-valia pela mão de obra escrava, também a mercadoria e moeda enquanto utilizada, explorada...). E vê-se ainda hoje, frutos desta resistência manifesta em suas artes, músicas, danças e todas as formas de expressões culturais e rituais, construídas por eles e mantidas até os nossos dias, em festas, celebrações e memória viva.

Algumas outras fontes e indicações bibliográficas que favorecem a compreensão e a pesquisa nestes aspectos desenvolvidos aqui e dentro do artigo (completo):






Um link sobre uma resenha do livro de Kwame Anthony Appiah:
http://pdf-esmanual.com/books/21430/appiah_kwame_anthony__na_casa_de_meu_pai__a_%C3%81frica_na_filosofia_.html


quinta-feira, 17 de novembro de 2011

BRASIL - ÁFRICA E CONTEXTOS...


por Reinaldo João de Oliveira (autoria com contribuições e acréscimos das pessoas mencionadas no texto)
Retomo um pouco dos diálogos feitos a partir de uma proposta de trabalho que foi iniciado no Sul do Brasil, especificamente com um pequeno grupo de estudantes africanos e afrobrasileiros, criando um Núcleo de Estudos e Pesquisas, hoje extinto, Nodjuntamon*. Aqui, procuro relatar algumas das reflexões que promovemos através de dois eventos internacionais, entre pesquisadores de países africanos e do Brasil. Conto com a grande contribuição da jornalista Elaine Tavares (do IELA), que redigiu maior parte dos detalhes mencionados a seguir.

* A proposta de um Núcleo de Estudos que se baseasse numa construção coletiva entre estudantes de diferentes etapas e cursos, seguidos por um ideal de “juntar as mãos” para a vivência de um novo.

Contextualizar sobre a África hoje implica situar-se Globalmente

Provavelmente já muito se ouviu dizer, refletir que muito pouco se sabe sobre África e o que se sabe em grande medida reproduz a lógica do eurocentrismo. No Brasil o mesmo critério de desconhecimento de aplica contextualmente como o maior genocídio promovido pela humanidade: a escravidão.

Vários conhecimentos foram envolvidos e continuam ser considerados no aspecto de buscar entender o que se afirma com o “ensino da história da África. Porém, do que vemos apresentado na grande maioria das vezes se estabelece como “informações gerais”, acerca de uma literatura dita “africana” sobre diferentes tópicos e temas que contribuem para a continuidade deste desconhecimento, sem uma amarração conceitual crítica.

Conceitos como colonialismo, escravidão, capitalismo e imperialismo passaram ao largo, dando espaço para discussões mais abstratas como o conceito de contemporaneidade, religiosidade, cotas, elementos textuais e de linguagem, numa espécie de “exercícios de Castália” a famosa sociedade de Herman Hesse na qual o conhecimento era apenas um jogo lingüístico. A nota política e crítica foi dada pelo cubano Jorge Risquet, o mesmo que nos anos 60 liderou o trabalho de solidariedade revolucionária nas terras africanas, juntamente com Che Guevara e que, com as mais importantes lideranças africanas da época, colocaram um ponto final no colonialismo, inaugurando as vitórias de independência.

Um espaço de começos

Ondjaki é escritor. Nasceu em Luanda/Angola com o nome de Ndalu de Almeida.
Vídeo (Youtube): http://www.youtube.com/watch?v=0cTQ52tleN8&feature=player_embedded

O jovem escritor angolado Ondjaki, também bastante conhecido no Brasil, apresentou o seu documentário “Oxalá cresçam pitangas” que mostra como é o cotidiano da gente de Luanda, capital de Angola. O trabalho traz o depoimento de 10 jovens da periferia da cidade e é uma espécie de colcha de retalhos, apresentando variados aspectos do dia-a-dia de uma gente que precisa batalhar muito para reproduzir a vida. Uma grande cidade, com todo o contingente de pessoas que migram do campo e que acabam tendo de “dar jeitinho”, para poder sobreviver no caos urbano.

Ondjaki diz que o documentário é parcial e foca apenas nesta parte da vida luandense. “Quem quiser mostrar outra Angola, que faça outro filme”. Segundo ele, o povo da periferia está com os olhos no futuro, tem uma atitude otimista diante da vida, coisa que acredita possa se transformar também em ativismo social. Na grande cidade de seis milhões de pessoas o escritor centrou foco no sonho. Para ele, elementos como a música e o futebol são os que mais movem os jovens luandenses e é por este caminho que, crê, vai o futuro. “A gente vê que também há um esforço do governo em enfrentar o pós-guerra, mas o problema é tão grande que é difícil. Eu exijo sempre mais”.

Ondjaki conta ainda que há muita gente trabalhando em Angola, nas ONGs, sindicatos, associações, e que as pessoas tem uma grande vontade de aprender. “Gente, há filas para entrar em bibliotecas. Isso é uma coisa incrível”. A palavra tem muita força na boca dos jovens e eles a usam. Angola é um lugar que viveu 500 anos de dominação colonial, passou por 37 anos de guerra civil e desde 2002 entrou num tempo de paz, o que mostra que há ainda um longo caminho por se fazer. “A gente vê as coisas mudando, tem os chineses entrando, outros países se solidarizando. Não podemos deter os fluxos naturais, há que compreender tudo isso”. Para ele, o espaço da cultura é um lugar importante de transformação. Hoje, em Luanda há uma grande presença de migrantes. Ali, na cidade, se expressa toda Angola, e com ela, vem as vivências da festa, da música, da comunidade.

Mãe África? De quem?

Para os negros brasileiros que lotaram o auditório (onde aconteceu maior parte destas reflexões) foi visível a sede que tem de saber sobre aquele que consideram seu torrão original. E assim, falar da “mãe” África é coisa natural. Mas, para Ondjaki, é muito difícil entender esse sentimento de orfandade. Lá a gente não pensa na África como uma coisa só. São países diferentes, povos diferentes. Não há essa idéia de um espaço único. A explicação para este sentimento vem das pessoas que cotidianamente vivenciam a herança ancestral de um povo arrancado de seu lugar e jogado em outro mundo para servir como escravo. “Aqui, no chão da escravidão, não havia diferenças entre nós. Éramos todos cativos e estávamos na mesma situação. Daí, talvez, esse sentimento, que foi crescendo. Já não vislumbrávamos as fronteiras do lugar original. Todos éramos “africanos”, por isso entranhou-se em nós a idéia de uma única mãe, a África”, explicou uma mulher na platéia.

E foi, talvez, esse, o maior estranhamento causado durante o seminário. A maioria dos estudiosos de África trouxe um olhar que chamaram de visão da diáspora, o que, de fato, esteriliza o processo brutal da escravidão que drenou a vida daquele continente por séculos inteiros. A diáspora pressupõe o deslocamento voluntário de pessoas, ainda que constrangidas por algum fator. Mas o que houve nos tempos coloniais não foi um “constrangimento”, foi um crime, um genocídio, um processo feroz de captura e comércio humano, concretizado na escravidão. Não foi à toa que o professor Nildo Ouriques, estudioso de América Latina e presidente do IELA (nesta ocasião/data), fez uma fala pesada contra o colonialismo que se expressa na universidade. “A maioria dos autores citados são referencias européias, ou de africanos que passam pelo crivo europeu. Mas, como falar de África sem falar de Agostinho Neto, Samora Machel, Lumumba, Ben Bella e tantos outros... É preciso que as pessoas que ensinam a história da África a conheçam pelos seus autores e não mediados pela colônia. E também não dá para falar deste continente deixando de lado conceitos como a escravidão, o colonialismo e o capitalismo”.

Cuba: “a África somos nós

Jorge Risquet (líder cubano na luta por independência de países africanos) / Vídeo (Youtube): http://www.youtube.com/watch?v=qbljuNJgV28

A presença de Jorge Risquet, o cubano que foi um dos comandantes da Coluna Dois, grupo de voluntários que aportou no Congo na década de 60 juntamente com Che Guevara, foi a mais emocionante. E não só pelo fato de se ver um homem de 79 anos ainda cheio de indignação revolucionária, mas pela presença viva da história do internacionalismo cubano, que tornou possível a vitória de libertação de uma boa parte da África negra.

Risquet insistiu que antes de falar da campanha no continente africano era importante falar sobre o que fez a África por Cuba e pela América Latina. “Isso é uma obrigação, porque foi por conta da gente africana ter sido trazida ao `novo mundo´ que começou o desenvolvimento da Europa no século 15. Foi o tráfico de escravos que impulsionou a Revolução Industrial e permitiu que a Europa se transformasse num império”. Em três séculos e meio foram escravizados milhões de africanos. Foi o genocídio mais prolongado da história universal. Só de Angola saiam quatro milhões por ano e em Cuba entraram um milhão e trezentos mil escravos. “Foi em honra a estes que nós fomos à África. Porque tínhamos uma dívida histórica”. Ele lembra que no território cubano a luta dos negros foi intensa, já em 1538 havia rebeliões de escravos e no início de 1800 já haviam conquistado a liberdade em um terça parte de Cuba numa saga sem precedentes.

Ao longo dos anos outras rebeliões foram se fazendo, como a de 1812, que acabou com várias cabeças pendidas; a de 1822, que teve apoio de Bolívar e terminou com mais de 600 presos; e a de 1843, quando uma negra chamada Carlota conseguiu mobilizar seis engenhos de açúcar em Matanzas, e acabou martirizada. Foi para homenagear esta heroína do povo negro que a Cuba revolucionária daria o nome de “Operação Carlota” à decisão de mandar tropas para Angola, em 1975, para lutar pela libertação daquele país. Estas tropas tinham, outra vez , a participação de Jorge Risquet.

Esta solidariedade à África teve muito deste reconhecimento da importância do povo negro para Cuba. “Fidel sempre disse: em Playa Girón se derramou sangue africano, e na África, com os heróicos de Angola, também se derramou sangue cubano”. Risquet entende que aqui neste continente somos um povo latino-africano que tem por obrigação ser inimigo mortal do colonialismo e do racismo. E, se nos anos 60 e 70 a ajuda cubana foi no plano militar, hoje ela continua no plano social, com milhares de médicos, enfermeiros e gente de outras profissões prestando solidariedade à África. Segundo ele, ao longo destes anos, desde 1965, quase meio milhão de cubanos foram ao continente africano em missões de solidariedade. “Isso ainda é pouco considerando que tivemos um milhão e trezentos mil homens e mulheres negras vindos para Cuba. Estes vieram acorrentados, mas os cubanos vão em nome da libertação”.

A balcanização

O nome África descende dos povos locais, mas sua extensão a todo continente foi dada pelos invasores. Foi durante o império romano quando as famosas legiões ocuparam Cartago – no noroeste do mediterrâneo, onde hoje é Tunísia e Argélia – e se depararam com os Berberes, gente que habitava o local. No encontro, ao serem questionados sobre quem eram, os originários responderam: “avringa”, nome da sua etnia. Os romanos passaram então a denominar África (assim entenderam a sonoridade da palavra), a toda aquela região. Quando no século XVI os portugueses começaram a costear o continente diziam que era África, pois era a memória que tinham desde os tempos de Roma. Como não consideravam os povos originários dignos de respeito, tampouco se importaram com suas identidades étnicas. Os negros eram todos “mercadoria” para ser vendida e embalar o capitalismo nascente.

Foi assim, primeiro com o roubo de gente e depois com o das riquezas naturais que a África foi se tornando presa do colonialismo. Portugueses, ingleses, franceses, holandeses, belgas, todas as grandes potências forma lá tirar sua casquinha. A independência demorou demais e precisaram acontecer muitas guerras e morrer muita gente para que boa parte do continente lograsse ser livre das potências coloniais. 

Joel Aló Fernandes, de Guiné Bissau, lembrou que a formação dos Estados africanos se delineou na fatídica Conferência de Berlim, em novembro de 1884, quando as potências coloniais – 15 países, entre eles os Estados Unidos - se reuniram para decidir como iriam repartir as terras. Foi o início da balcanização. Pensando apenas nos seus interesses as colônias riscaram mapas, dividiram famílias, colocaram povos inimigos nos mesmos territórios e criaram a maioria dos problemas que o continente vive até hoje. “E foi dizendo que iam levar a civilização para um povo que não era civilizado que os europeus roubaram os nossos recursos e dominaram nosso território”. Joel explica que houve dois tipos de colonização, uma de povoamento e outra de exploração. Na primeira, a colônia enviou gente para viver na terra, como na África do Sul, que acabou inclusive gerando o “apartheid”. Já na segunda forma, o desejo era apenas o de sugar as riquezas, como em Guiné Bissau.

Esse processo durou séculos e foi só no final do século 19 que começou o Movimento Pan-Africano. A primeira reunião oficial foi no ano de 1900, em Londres, com a presença de 30 intelectuais negros, e discutiu formas de solidariedade. Até 1945 os encontros tinham caráter cultural, mas depois foram guinando para o político, passando a atuar com a consigna: “Resolvemos ser livres. Povos colonizados e subjugados do mundo, uni-vos”. Foi a hora em que os próprios africanos tomaram a direção do movimento, tendo a frente figuras como Agostinho Neto. “Também é importante lembrar que terminava a segunda guerra e o mundo assumia um perfil bi-polar, comunista e capitalista, e as potências buscavam ampliar seus domínios. Portanto, foram os comunistas os que apoiaram as lutas de libertação e abriram possibilidades de diálogo”.

A libertação de Gana em 1947 e a ação decisiva da Libéria, nunca colonizada, deram força para um chamado de união e a África negra começou a se mexer. Em 1958 os presidentes das nações livres se encontraram em gana e em 1960 na Etiópia e neste mesmo ano foi criada a Organização da Unidade Africana, reforçando a solidariedade e a cooperação. Logo em seguida explodiram as lutas de libertação em outros países até os anos 80 quando saíram os portugueses.

Desde então a África subsaariana vem buscando caminhar com os próprios pés. Não tem sido fácil. Nos anos 80 tentaram implementar o Plano de Ação de Lagos, em que apontavam caminhos para o desenvolvimento, mas este foi abortado pelo Banco Mundial que capturou a mente de muitos dirigentes para a vertente neoliberal. Também em 1991, num encontro na Nigéria, tentou-se a construção de um Plano para a Criação da Comunidade Econômica Africana, mas que acabou não indo em frente por conta da instabilidade política que continua assolando o continente, por força dos interesses das novas colônias que continuam atuando.
“Agora, a OUA foi substituída pela União Africana, mais uma tentativa de libertação. Nós estamos libertos da colônia, mas não da dependência. Portanto, há um longo caminho a percorrer”.


CONSIDERAÇÕES A PARTIR DOS NOSSOS CONTEXTOS LOCAIS

Um começo

E, se na África ainda há muito para conquistar, visto que as grandes potências seguem impondo agendas econômicas, políticas e sociais, muitas vezes ajudadas pelas elites locais, por aqui também há um longo caminho a percorrer no conhecimento deste imenso continente onde cabem inteiros o Brasil, a China, a Europa e a Índia. São mais de 30 milhões de quilômetros quadrados, 900 milhões de almas e uma história ainda muito mal contada. Mas, para isso, o presidente do IELA tem uma boa notícia: “Com este seminário, nós, do IELA, assumimos o compromisso – ainda que modesto – mas permanente e inabalável, de continuar discutindo os problemas da África” – concluiu Elaine Tavares (no seu relato).


Um fim?

Vale ressaltar, ao final desta partilha/socialização – através desta página eletrônica (http://rjoliveira.blogspot.com/) – que o grupo supracitado (Nodjuntamon), se constituía mais pela proximidade entre amigos, do que propriamente por um núcleo de estudos. Iniciamos com a parceria do Instituto de Estudos Latino-americanos (IELA), mas com forte intervenção e interesses por parte de alguns professores que já desde o início das reflexões mostraram-se a que vieram – sendo, posteriormente, o que contribuiu para abortar este processo, dentro da academia onde eles criam ter a autonomia para discutir com a “liberdade conquistada pela docência” em uma Universidade Pública. Parece uma contradição, porém essa é apenas uma versão, como diz o médico Dráusio Varela no final de seu relato sobre o massacre no Carandirú...

Reforço uma constatação pessoal de que particularmente nestes debates e embates políticos, dentro das instituições do governo brasileiro, está cada dia mais precário a possibilidade de fazer uma busca/ou abordar estes temas aqui implicados. Vejo que a necessidade premente em muitos “teóricos registrados” que reservam para si mesmos uma legitimação (ou seria limitação) de territórios para o pensar e o agir geral – nisso incluo a questão da “permissão ou não” para o exercício da fala, da pesquisa, das condições para tal. O grande problema da limitação gerada pela ocultação ou exclusão da fala, permanece sendo articulada em face do poder centralizador na mente de alguns que se sentem ameaçados de alguma forma.

Será o caminho reforçar o poder das instituições (ou das pessoas nestas...)? Precisaríamos pensar em rever os instrumentos de poder, que nos limitam pensar, agir (falar, escrever, lecionar...) – enfim: como aplicar nossos conhecimentos ultrapassando a idéia de uma democracia, que permanece inexistente em muitos desses lugares onde nos encontramos social e politicamente, impossibilitados do exercício e participação de sobrevida? Por outro lado, a privatização do ensino garante essa liberdade, ou outros tipos de liberdades? Observaremos que todas estão sempre condicionadas, evidentemente. O problema se eleva no nível da coação, cooptação do poder, pelas forças dominantes, quando continuam elitizadas e mantidas assim, quando volto a pensar em Foucault.

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