por Reinaldo João de Oliveira (autoria com contribuições e acréscimos das pessoas mencionadas no texto)
Retomo um pouco dos diálogos feitos a partir de uma proposta de trabalho que foi iniciado no Sul do Brasil, especificamente com um pequeno grupo de estudantes africanos e afrobrasileiros, criando um Núcleo de Estudos e Pesquisas, hoje extinto, Nodjuntamon*. Aqui, procuro relatar algumas das reflexões que promovemos através de dois eventos internacionais, entre pesquisadores de países africanos e do Brasil. Conto com a grande contribuição da jornalista Elaine Tavares (do IELA), que redigiu maior parte dos detalhes mencionados a seguir.
* A proposta de um Núcleo de Estudos que se baseasse numa construção coletiva entre estudantes de diferentes etapas e cursos, seguidos por um ideal de “juntar as mãos” para a vivência de um novo.
Contextualizar sobre a África hoje implica situar-se Globalmente
Provavelmente já muito se ouviu dizer, refletir que muito pouco se sabe sobre África e o que se sabe em grande medida reproduz a lógica do eurocentrismo. No Brasil o mesmo critério de desconhecimento de aplica contextualmente como o maior genocídio promovido pela humanidade: a escravidão.
Vários conhecimentos foram envolvidos e continuam ser considerados no aspecto de buscar entender o que se afirma com o “ensino da história da África”. Porém, do que vemos apresentado na grande maioria das vezes se estabelece como “informações gerais”, acerca de uma literatura dita “africana” sobre diferentes tópicos e temas que contribuem para a continuidade deste desconhecimento, sem uma amarração conceitual crítica.
Conceitos como colonialismo, escravidão, capitalismo e imperialismo passaram ao largo, dando espaço para discussões mais abstratas como o conceito de contemporaneidade, religiosidade, cotas, elementos textuais e de linguagem, numa espécie de “exercícios de Castália” a famosa sociedade de Herman Hesse na qual o conhecimento era apenas um jogo lingüístico. A nota política e crítica foi dada pelo cubano Jorge Risquet, o mesmo que nos anos 60 liderou o trabalho de solidariedade revolucionária nas terras africanas, juntamente com Che Guevara e que, com as mais importantes lideranças africanas da época, colocaram um ponto final no colonialismo, inaugurando as vitórias de independência.
Um espaço de começos
Ondjaki é escritor. Nasceu em Luanda/Angola com o nome de Ndalu de Almeida. Vídeo (Youtube): http://www.youtube.com/watch?v=0cTQ52tleN8&feature=player_embedded |
O jovem escritor angolado Ondjaki, também bastante conhecido no Brasil, apresentou o seu documentário “Oxalá cresçam pitangas” que mostra como é o cotidiano da gente de Luanda, capital de Angola. O trabalho traz o depoimento de 10 jovens da periferia da cidade e é uma espécie de colcha de retalhos, apresentando variados aspectos do dia-a-dia de uma gente que precisa batalhar muito para reproduzir a vida. Uma grande cidade, com todo o contingente de pessoas que migram do campo e que acabam tendo de “dar jeitinho”, para poder sobreviver no caos urbano.
Ondjaki diz que o documentário é parcial e foca apenas nesta parte da vida luandense. “Quem quiser mostrar outra Angola, que faça outro filme”. Segundo ele, o povo da periferia está com os olhos no futuro, tem uma atitude otimista diante da vida, coisa que acredita possa se transformar também em ativismo social. Na grande cidade de seis milhões de pessoas o escritor centrou foco no sonho. Para ele, elementos como a música e o futebol são os que mais movem os jovens luandenses e é por este caminho que, crê, vai o futuro. “A gente vê que também há um esforço do governo em enfrentar o pós-guerra, mas o problema é tão grande que é difícil. Eu exijo sempre mais”.
Ondjaki conta ainda que há muita gente trabalhando em Angola, nas ONGs, sindicatos, associações, e que as pessoas tem uma grande vontade de aprender. “Gente, há filas para entrar em bibliotecas. Isso é uma coisa incrível”. A palavra tem muita força na boca dos jovens e eles a usam. Angola é um lugar que viveu 500 anos de dominação colonial, passou por 37 anos de guerra civil e desde 2002 entrou num tempo de paz, o que mostra que há ainda um longo caminho por se fazer. “A gente vê as coisas mudando, tem os chineses entrando, outros países se solidarizando. Não podemos deter os fluxos naturais, há que compreender tudo isso”. Para ele, o espaço da cultura é um lugar importante de transformação. Hoje, em Luanda há uma grande presença de migrantes. Ali, na cidade, se expressa toda Angola, e com ela, vem as vivências da festa, da música, da comunidade.
Mãe África? De quem?
Para os negros brasileiros que lotaram o auditório (onde aconteceu maior parte destas reflexões) foi visível a sede que tem de saber sobre aquele que consideram seu torrão original. E assim, falar da “mãe” África é coisa natural. Mas, para Ondjaki, é muito difícil entender esse sentimento de orfandade. “Lá a gente não pensa na África como uma coisa só. São países diferentes, povos diferentes. Não há essa idéia de um espaço único”. A explicação para este sentimento vem das pessoas que cotidianamente vivenciam a herança ancestral de um povo arrancado de seu lugar e jogado em outro mundo para servir como escravo. “Aqui, no chão da escravidão, não havia diferenças entre nós. Éramos todos cativos e estávamos na mesma situação. Daí, talvez, esse sentimento, que foi crescendo. Já não vislumbrávamos as fronteiras do lugar original. Todos éramos “africanos”, por isso entranhou-se em nós a idéia de uma única mãe, a África”, explicou uma mulher na platéia.
E foi, talvez, esse, o maior estranhamento causado durante o seminário. A maioria dos estudiosos de África trouxe um olhar que chamaram de “visão da diáspora”, o que, de fato, esteriliza o processo brutal da escravidão que drenou a vida daquele continente por séculos inteiros. A diáspora pressupõe o deslocamento voluntário de pessoas, ainda que constrangidas por algum fator. Mas o que houve nos tempos coloniais não foi um “constrangimento”, foi um crime, um genocídio, um processo feroz de captura e comércio humano, concretizado na escravidão. Não foi à toa que o professor Nildo Ouriques, estudioso de América Latina e presidente do IELA (nesta ocasião/data), fez uma fala pesada contra o colonialismo que se expressa na universidade. “A maioria dos autores citados são referencias européias, ou de africanos que passam pelo crivo europeu. Mas, como falar de África sem falar de Agostinho Neto, Samora Machel, Lumumba, Ben Bella e tantos outros... É preciso que as pessoas que ensinam a história da África a conheçam pelos seus autores e não mediados pela colônia. E também não dá para falar deste continente deixando de lado conceitos como a escravidão, o colonialismo e o capitalismo”.
Cuba: “a África somos nós”
Jorge Risquet (líder cubano na luta por independência de países africanos) / Vídeo (Youtube): http://www.youtube.com/watch?v=qbljuNJgV28 |
A presença de Jorge Risquet, o cubano que foi um dos comandantes da Coluna Dois, grupo de voluntários que aportou no Congo na década de 60 juntamente com Che Guevara, foi a mais emocionante. E não só pelo fato de se ver um homem de 79 anos ainda cheio de indignação revolucionária, mas pela presença viva da história do internacionalismo cubano, que tornou possível a vitória de libertação de uma boa parte da África negra.
Risquet insistiu que antes de falar da campanha no continente africano era importante falar sobre o que fez a África por Cuba e pela América Latina. “Isso é uma obrigação, porque foi por conta da gente africana ter sido trazida ao `novo mundo´ que começou o desenvolvimento da Europa no século 15. Foi o tráfico de escravos que impulsionou a Revolução Industrial e permitiu que a Europa se transformasse num império”. Em três séculos e meio foram escravizados milhões de africanos. Foi o genocídio mais prolongado da história universal. Só de Angola saiam quatro milhões por ano e em Cuba entraram um milhão e trezentos mil escravos. “Foi em honra a estes que nós fomos à África. Porque tínhamos uma dívida histórica”. Ele lembra que no território cubano a luta dos negros foi intensa, já em 1538 havia rebeliões de escravos e no início de 1800 já haviam conquistado a liberdade em um terça parte de Cuba numa saga sem precedentes.
Ao longo dos anos outras rebeliões foram se fazendo, como a de 1812, que acabou com várias cabeças pendidas; a de 1822, que teve apoio de Bolívar e terminou com mais de 600 presos; e a de 1843, quando uma negra chamada Carlota conseguiu mobilizar seis engenhos de açúcar em Matanzas, e acabou martirizada. Foi para homenagear esta heroína do povo negro que a Cuba revolucionária daria o nome de “Operação Carlota” à decisão de mandar tropas para Angola, em 1975, para lutar pela libertação daquele país. Estas tropas tinham, outra vez , a participação de Jorge Risquet.
Esta solidariedade à África teve muito deste reconhecimento da importância do povo negro para Cuba. “Fidel sempre disse: em Playa Girón se derramou sangue africano, e na África, com os heróicos de Angola, também se derramou sangue cubano”. Risquet entende que aqui neste continente somos um povo latino-africano que tem por obrigação ser inimigo mortal do colonialismo e do racismo. E, se nos anos 60 e 70 a ajuda cubana foi no plano militar, hoje ela continua no plano social, com milhares de médicos, enfermeiros e gente de outras profissões prestando solidariedade à África. Segundo ele, ao longo destes anos, desde 1965, quase meio milhão de cubanos foram ao continente africano em missões de solidariedade. “Isso ainda é pouco considerando que tivemos um milhão e trezentos mil homens e mulheres negras vindos para Cuba. Estes vieram acorrentados, mas os cubanos vão em nome da libertação”.
A balcanização
O nome África descende dos povos locais, mas sua extensão a todo continente foi dada pelos invasores. Foi durante o império romano quando as famosas legiões ocuparam Cartago – no noroeste do mediterrâneo, onde hoje é Tunísia e Argélia – e se depararam com os Berberes, gente que habitava o local. No encontro, ao serem questionados sobre quem eram, os originários responderam: “avringa”, nome da sua etnia. Os romanos passaram então a denominar África (assim entenderam a sonoridade da palavra), a toda aquela região. Quando no século XVI os portugueses começaram a costear o continente diziam que era África, pois era a memória que tinham desde os tempos de Roma. Como não consideravam os povos originários dignos de respeito, tampouco se importaram com suas identidades étnicas. Os negros eram todos “mercadoria” para ser vendida e embalar o capitalismo nascente.
Foi assim, primeiro com o roubo de gente e depois com o das riquezas naturais que a África foi se tornando presa do colonialismo. Portugueses, ingleses, franceses, holandeses, belgas, todas as grandes potências forma lá tirar sua casquinha. A independência demorou demais e precisaram acontecer muitas guerras e morrer muita gente para que boa parte do continente lograsse ser livre das potências coloniais.
Joel Aló Fernandes, de Guiné Bissau, lembrou que a formação dos Estados africanos se delineou na fatídica Conferência de Berlim, em novembro de 1884, quando as potências coloniais – 15 países, entre eles os Estados Unidos - se reuniram para decidir como iriam repartir as terras. Foi o início da balcanização. Pensando apenas nos seus interesses as colônias riscaram mapas, dividiram famílias, colocaram povos inimigos nos mesmos territórios e criaram a maioria dos problemas que o continente vive até hoje. “E foi dizendo que iam levar a civilização para um povo que não era civilizado que os europeus roubaram os nossos recursos e dominaram nosso território”. Joel explica que houve dois tipos de colonização, uma de povoamento e outra de exploração. Na primeira, a colônia enviou gente para viver na terra, como na África do Sul, que acabou inclusive gerando o “apartheid”. Já na segunda forma, o desejo era apenas o de sugar as riquezas, como em Guiné Bissau.
Esse processo durou séculos e foi só no final do século 19 que começou o Movimento Pan-Africano. A primeira reunião oficial foi no ano de 1900, em Londres, com a presença de 30 intelectuais negros, e discutiu formas de solidariedade. Até 1945 os encontros tinham caráter cultural, mas depois foram guinando para o político, passando a atuar com a consigna: “Resolvemos ser livres. Povos colonizados e subjugados do mundo, uni-vos”. Foi a hora em que os próprios africanos tomaram a direção do movimento, tendo a frente figuras como Agostinho Neto. “Também é importante lembrar que terminava a segunda guerra e o mundo assumia um perfil bi-polar, comunista e capitalista, e as potências buscavam ampliar seus domínios. Portanto, foram os comunistas os que apoiaram as lutas de libertação e abriram possibilidades de diálogo”.
A libertação de Gana em 1947 e a ação decisiva da Libéria, nunca colonizada, deram força para um chamado de união e a África negra começou a se mexer. Em 1958 os presidentes das nações livres se encontraram em gana e em 1960 na Etiópia e neste mesmo ano foi criada a Organização da Unidade Africana, reforçando a solidariedade e a cooperação. Logo em seguida explodiram as lutas de libertação em outros países até os anos 80 quando saíram os portugueses.
Desde então a África subsaariana vem buscando caminhar com os próprios pés. Não tem sido fácil. Nos anos 80 tentaram implementar o Plano de Ação de Lagos, em que apontavam caminhos para o desenvolvimento, mas este foi abortado pelo Banco Mundial que capturou a mente de muitos dirigentes para a vertente neoliberal. Também em 1991, num encontro na Nigéria, tentou-se a construção de um Plano para a Criação da Comunidade Econômica Africana, mas que acabou não indo em frente por conta da instabilidade política que continua assolando o continente, por força dos interesses das novas colônias que continuam atuando.
“Agora, a OUA foi substituída pela União Africana, mais uma tentativa de libertação. Nós estamos libertos da colônia, mas não da dependência. Portanto, há um longo caminho a percorrer”.
CONSIDERAÇÕES A PARTIR DOS NOSSOS CONTEXTOS LOCAIS
Um começo
E, se na África ainda há muito para conquistar, visto que as grandes potências seguem impondo agendas econômicas, políticas e sociais, muitas vezes ajudadas pelas elites locais, por aqui também há um longo caminho a percorrer no conhecimento deste imenso continente onde cabem inteiros o Brasil, a China, a Europa e a Índia. São mais de 30 milhões de quilômetros quadrados, 900 milhões de almas e uma história ainda muito mal contada. Mas, para isso, o presidente do IELA tem uma boa notícia: “Com este seminário, nós, do IELA, assumimos o compromisso – ainda que modesto – mas permanente e inabalável, de continuar discutindo os problemas da África” – concluiu Elaine Tavares (no seu relato).
Um fim?
Vale ressaltar, ao final desta partilha/socialização – através desta página eletrônica (http://rjoliveira.blogspot.com/) – que o grupo supracitado (Nodjuntamon), se constituía mais pela proximidade entre amigos, do que propriamente por um núcleo de estudos. Iniciamos com a parceria do Instituto de Estudos Latino-americanos (IELA), mas com forte intervenção e interesses por parte de alguns professores que já desde o início das reflexões mostraram-se a que vieram – sendo, posteriormente, o que contribuiu para abortar este processo, dentro da academia onde eles criam ter a autonomia para discutir com a “liberdade conquistada pela docência” em uma Universidade Pública. Parece uma contradição, porém essa é apenas uma versão, como diz o médico Dráusio Varela no final de seu relato sobre o massacre no Carandirú...
Reforço uma constatação pessoal de que particularmente nestes debates e embates políticos, dentro das instituições do governo brasileiro, está cada dia mais precário a possibilidade de fazer uma busca/ou abordar estes temas aqui implicados. Vejo que a necessidade premente em muitos “teóricos registrados” que reservam para si mesmos uma legitimação (ou seria limitação) de territórios para o pensar e o agir geral – nisso incluo a questão da “permissão ou não” para o exercício da fala, da pesquisa, das condições para tal. O grande problema da limitação gerada pela ocultação ou exclusão da fala, permanece sendo articulada em face do poder centralizador na mente de alguns que se sentem ameaçados de alguma forma.
Será o caminho reforçar o poder das instituições (ou das pessoas nestas...)? Precisaríamos pensar em rever os instrumentos de poder, que nos limitam pensar, agir (falar, escrever, lecionar...) – enfim: como aplicar nossos conhecimentos ultrapassando a idéia de uma democracia, que permanece inexistente em muitos desses lugares onde nos encontramos social e politicamente, impossibilitados do exercício e participação de sobrevida? Por outro lado, a privatização do ensino garante essa liberdade, ou outros tipos de liberdades? Observaremos que todas estão sempre condicionadas, evidentemente. O problema se eleva no nível da coação, cooptação do poder, pelas forças dominantes, quando continuam elitizadas e mantidas assim, quando volto a pensar em Foucault.
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Este espaço busca ser um lugar de interação com contribuições em temas relacionados às Culturas Afroameríndias, suas diversas manifestações e contextos. Nos campos de exposição, apresento em forma de reflexões alguns textos sociais, históricos, políticos, teológico-religiosos e educativos. Também o universo das artes e literaturas são outras referências, leituras e aprofundamentos, conforme este processo de interlocução dialógica em construção.
Agradeço-lhe pelo interesse em reconhecimento e atenção ao nosso trabalho!
Atenciosamente,
Reinaldo.