segunda-feira, 17 de outubro de 2011

FONTES DE CONHECIMENTO NA TRADIÇÃO AFRICANA


por Gabriel Molehe Setiloane* - in: African Theology: An Introduction co-tradução e compilação: Reinaldo João de Oliveira

Para muitos de nós que vivemos na África moderna e urbanizada, torna-se cada vez mais difícil imaginar como poderia ter sido a vida neste continente, antes da chegada dos ocidentais e de sua civilização. Nós nos tornamos tão condicionados (sofremos até lavagem cerebral) que, mesmo tendo recebido a melhor instrução, muitas vezes olhamos com vergonha para essa vida, como sendo “selvagem”, “brutal” e tudo o que é ruim. Olhamos para ela com os olhos e óculos dos ocidentais que nos conquistaram, nos ensinaram seus costumes e nos tornaram escravos de seus padrões de pensamento, sistemas de valores e espiritualidade. Segundo a expressão de Paulo Freire, nós “internalizamos” a imagem deles dentro de nós e vemos a nós mesmos no presente, no passado e às vezes no futuro como eles nos vêem. Registros de exploradores e missionários antigos testemunham o fato de que as sociedades e as comunidades floresciam, as artes eram praticadas e, acima de tudo, havia sistemas e uma ordem que regulavam a vida em conjunto e tornavam possível a realização na vida individual e comunitária.
Realmente, as primeiras comunidades africanas eram/são analfabetas (segundo os padrões ocidentais de hoje). Mas o analfabetismo, naquele contexto, não significa necessariamente nem embotamento nem ignorância, e nem mesmo uma incapacidade de desenvolver as artes. Na verdade, a alfabetização tem destruído certas formas de arte e embotado certas qualidades humanas muito desejáveis e importantes. A memória e a capacidade de contar histórias são duas qualidades vitais. Muitos de nós podemos testemunhar esse declínio durante nosso próprio tempo de vida. Ainda podemos nos lembrar, mesmo que não tenhamos sido criados em áreas rurais, daquelas tardes frescas no Estado Livre de Orange, nas quais as crianças costumavam brincar de jogos que, na verdade, instigavam a inteligência. “Kea ho lotha.” “Ka eng?” E então vinha a adivinhação. Traduzindo: “Um homem branco, alto, sai de sua casa para dar uma volta, faça o tempo que fizer, chuva, neve, dia ou noite. O que é?” A resposta: “fumaça”.... que revela uma imaginação maravilhosa e uma inteligência treinada para observar fenômenos naturais. (A explicação: Por mais que chova ou caia neve, a fumaça enfrenta os elementos da natureza, como um senhor muito digno que sai para passear). E há também o modo cativante pelo qual um jovem se declara à sua namorada: “Sou como uma água que corre morro abaixo, preciso de alguém que me represe; sou como milho espalhado, preciso ser recolhido; sou uma lata amassada que precisa ser endireitada.” A aliteração poética se perde na tradução.
Durante as longas noitadas de inverno, em torno do fogo, surgiriam aquelas histórias populares, que eram primeiro contadas pelos mais velhos e depois repetidas pelas próprias crianças entre elas (o que é muito mais criativo do que assistir televisão!), a respeito do coelho esperto que sempre escapava do chacal matreiro, ou sobre o leão pomposo e o enorme elefante que competiam incessantemente pela realeza do reino dos animais. A tradição oral não é algo que estava lá só para entreter e afastar o tédio das longas noitadas. Era um meio de educar. Os métodos africanos de educação, o modo como as pessoas eram preparadas para a vida e a sobrevivência, com a conseqüente preservação da espécie, e seus valores e normas, eram tão prosaicos e despretensiosos em comparação com os modos ocidentais, sofisticados, que têm sido frequentemente postos de lado como inexistentes ou irrelevantes. Essas Ditshomô, Dinôôlwane, Iintsomo (histórias populares) continham invariavelmente um ensinamento moral, com o objetivo de formar o caráter, a fim de criar uma vida comunitária harmoniosa. Duas dessas histórias que faziam parte do repertório de todos os povos Sotho-Tswana da África Austral ainda representam um enigma devido à sua semelhança com a antiga tradição registrada no Antigo Testamento (Pentateuco) e no Talmude.
A história de Masilo e Masilonyane descreve os irmãos gêmeos e suas aventuras, nas quais o mais jovem sempre saía vencedor, rico e próspero, com muito gado, tornando seu irmão invejoso a ponto de assassiná-lo. A persistente boa sorte de Masilonyane é atribuída à proteção que recebia de algum ser sobrenatural. Mesmo quando Masilo conseguia mata-lo, ele retornava à vida. É a semelhança entre essa história e as narrativas bíblicas sobre Caim e Abel, e Esaú e Jacó, que é intrigante. Assim também a sugestão de uma aceitação da “vida após a morte”.
O segundo ponto que causa perplexidade é a constante e persistente referência a uma “divindade” (modimo) “com buracos nas mãos” - Atla di maroba (Sotho-Tswana) Unezimbobo ezandleni (Zulu), que faz com que reportemos a Jesus de Nazaré depois da ressurreição.
Tudo isso, e muitos outros pontos mais que nos atrasariam se os analisássemos, sugere que não podemos com impunidade e consciência limpa ignorar ou pôr de lado a experiência africana anterior ao advento do Cristianismo e do Ocidente, como sendo irrelevante ou algo que nos distrai do processo de cristianização. Pelo contrário, eu tenho desenvolvido através dos anos uma crescente convicção de que uma viajem um pouco mais profunda por esta floresta africana original (que o ocidental teme tanto e tem feito com que nós - os filhos dela - também temamos!) poderia, assim como tem feito pelos arqueólogos, nos colocar frente a frente com os antepassados espirituais (religiosos) de toda a humanidade, e nos ajudar a compreender melhor as forças nas quais nós - toda a humanidade - “nos movemos e temos o nosso ser”.
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* Gabriel Molehe Setiloane nasceu e cresceu em Kroonstad/Orange, África do Sul, onde se formou em Artes, com especialização em Línguas Africanas, Inglês para Nativos. Fez vários estágios, formando-se em Teologia (bacharelado e pós-graduação) em Forth Hare (1953) e Nova Iorque (1955), complementando seus estudos no Instituto Ecumênico de Bossey do Conselho Mundial de Igrejas e Universidade de Genebra, Suíça. Em retorno à África do Sul, foi Secretário Geral do Departamento de Educação Cristã e Juventude, da Igreja Metodista, em Durban (entre 1963 e 1969). Depois, entre 1969 e 1973, morou na Inglaterra e atuou como Conferencista Visitante em Missões, em Birmingham e em Bristol, onde desenvolveu uma tese de doutorado sobre a imagem de Deus entre os Sotho-Tswana. Desde então, morou na Suíça, servindo às Igrejas como Secretário Chefe da Missão Suíça na África do Sul, entre 1974 e 1976; fundou e chefiou o Departamento de Teologia e Estudos Religiosos na Universidade de Botswana, em Gaborone, e foi Ministro Superintendente da Igreja Metodista da África do Sul em Kroonstad (1980-1984). A partir disso, atuou como Professor Ajunto no Departamento de Estudos Religiosos, da Universidade da Cidade do Cabo. É casado com Ellen Matlalang desde 1948, e eles têm seis filhos (quatro homens e duas mulheres).
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