terça-feira, 31 de janeiro de 2012

UNIVERSIDADES PÚBLICAS: a meritocracia é justa ou injusta?


Publicado na 
FOLHA DIRIGIDA - 30 de janeiro a 5 de fevereiro de 2012 - na ÁREA JURÍDICA, pg. 23.

por Daniel Chignoli *, Frei David Santos * Reinaldo J. de Oliveira *

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A USP, maior universidade do Brasil e uma das cem melhores do mundo, completou 78 anos, com uma história de  contradições junto ao povo brasileiro e, principalmente, negro e pobre. A USP insiste em ignorar que São Paulo é o estado com a maior população negra do Brasil. Cabe perguntar: quem se alegra e comemora o aniversário dessa universidade? Quem ganhou e ganha com ela?
Longe do lugar-comum de que “o rigor da meritocracia” é fundamental para o bom desempenho da universidade, e isto impede que haja negros e pobres nos campi, é preciso ir além. Deve-se perguntar o que provocou a exclusão dos negros e pobres. Será que os dirigentes da USP já refletiram que existe a meritocracia justa e a injusta? Não seria este o instrumento perverso de exclusão?
Todos sabem que há negros na comunidade da USP, mas são ignorados pelos demais, invisíveis à maioria dos alunos, professores e dirigentes. Os negros e pobres são os trabalhadores da universidade, aqueles que movem as engrenagens das inúmeras atividades — da limpeza à burocracia. São homens e mulheres que trabalham sem qualquer esperança de um dia eles ou seus filhos usufruírem da universidade, que é pública e paga por seus impostos.
A USP é mantida pela arrecadação do ICMS – um imposto que incide sobre toda compra e venda, principalmente da passagem de ônibus, do arroz, do feijão, etc., e pago por todos nós, principalmente os pobres. Ora, se todos consomem, e há muito mais pobres do que ricos, é gritante que a USP – com sua estrutura visivelmente elitizada – é mantida por quem, no atual modelo se seleção, jamais conseguirá nela estudar. Em uma frase: é uma instituição mantida majoritariamente pelos pobres, e desfrutada em grande parte pelos ricos, que não devolvem quase nada ao saírem formados. Mais de 80% dos matriculados vêm de escolas particulares, quando, no Brasil, 88% do que terminam o ensino médio saem de escolas públicas!
Mesmo sem que tudo isso esteja explícito, não é de se admirar que o pobre povo pobre ignore a USP e a classifique como “reduto dos ricos”. A população apenas ignora, retribuindo a indiferença que recebeu nestes últimos 78 anos. Porém, o povo, através da Educafro e outras entidades de articulação comunitária, precisa se fortalecer e fazer mudar esta realidade.
É inadmissível que, ao lado do maior campus da USP – a Cidade Universitária, exista uma enorme favela, que nasceu e se desenvolveu paralelamente à história do campus. É inaceitável saber que os moradores tenham como única forma de adentrar naquelas avenidas e alamedas arborizadas o crachá de funcionário terceirizado da faculdade – uma forma moderna de continuar escravizando os trabalhadores das camadas mais sofridas da sociedade.

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É chegada à hora de a universidade pública cumprir seu papel de instituição verdadeiramente democrática e capaz de proporcionar melhores oportunidades para todos os brasileiros que pagam por ela. A USP não pode ficar no falso dilema de que mudar as regras do seu vestibular é rebaixar o nível da instituição. Ir contra a política de cotas é ir na contramão da História, visto que os cotistas negros e brancos estão concluindo seus cursos com média acadêmica igual ou superior aos não cotistas.

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Os 78 anos da USP é também uma triste celebração de quase oito décadas de descaso com o povo negro e pobre de São Paulo e do Brasil. Excluído dos melhores postos de trabalho do país, de maneira deliberada, por políticas que não respeitam a diversidade étnica na contratação, como a São Paulo Fashion Week, pensadas e mantidas por políticos, os quais, outrora sentaram nos bancos de escolas, que comungam das mesmas ideias ultrapassadas. Lutamos para que a atual reitoria e conselho universitário da Universidade de São Paulo defendam estes novos paradigmas.
Na celebração dos 78 anos da USP trabalhemos para que ela reescreva sua história, de modo que todos possam participar como iguais, formados por uma instituição verdadeiramente pública. Sua qualidade pública não pode ser medida só pelas verbas que entram, mas também pelas pessoas que têm ingresso garantido, sem privilégios para os “bem-nascidos”.
Que ela reescreva sua história em páginas, nas quais todos possam participar como iguais, formados por uma instituição verdadeiramente pública. Sua qualidade pública não pode ser medida só pelas verbas que entram, mas pelas pessoas que tem seus ingressos garantidos, sem prioridade aos eurodescendentes. Assim a USP poderá estar repetindo a prática das grandes universidades do mundo, como Harvard, que tem programas de matrículas contemplando a diversidade étnica e geopolítica.

Frei David Santos é diretor da Educafro.
* Daniel Chignoli é acadêmico de Direito.
Reinaldo João de Oliveira é mestre em Teologia.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Tortura e Redenção

por John Burdick*
in: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 20(1): 55-64,1999
Formatado/redigido/compilado por: Reinaldo João de Oliveira


imagem sacra de Anastácia feita em colagem por Roberto Custódio

A. F. Pierucci e R. Prandi in "A realidade social das religiões no Brasil"
Nos últimos anos, tem surgido de novo nas discussões sobre o campo religioso brasileiro a idéia de que este campo é povoado de consumidores livres, livremente escolhendo entre opções religiosas, como se chegassem num grande supermercado espiritual (Pierucci 1996; Prandi 1999). É possível que esta imagem corresponda à realidade: é verdade que vivemos um momento histórico forte de mobilidade acelerada, de desenraizamento de identidades, de expansão maciça da mídia, de crescimento inédito do capitalismo, e assim por diante. Mais uma das “vítimas” dessa confusão toda deve ser sim, a identidade religiosa estável. Todo dia se torna mais raro aquela espécie de pessoa que nasce, cresce e morre numa religião. Muito comum hoje é aquela espécie de busca religiosa que, talvez, reflita a procura crescente do capital pelo lugar momentaneamente mais lucrativo.

David HARVEY in "The Condition of Postmodernity"
Mas confesso que fico cético diante dessa imagem. Não porque não acredito que a mobilidade religiosa seja um fenômeno marcante e crescente no campo brasileiro, como no campo mundial. Claro que é. A coisa que me deixa cético não é a observação da mobilidade em si, mas a atribuição aos fiéis da liberdade, aquela mesma liberdade que caracteriza o consumidor no mercado de bens. Não acredito que a liberdade do fiel diante das “opções” do campo religioso seja a mesma liberdade do consumidor. A primeira é uma liberdade que me parece menos livre, mais pesada, mais carregada – de ansiedade, de temor, de obrigação social, de pena, de morte, em suma de história – do que a liberdade de consumo. Até me pergunto, às vezes, qual é o fenômeno mais produzido no capitalismo pós-fordista (Harvey 1989): a fragilidade da identidade no campo religioso, ou a linguagem analítica aplicada àquele campo? 

Com que me preocupo então? Sem negar a efervescência de opções e a migração fervente entre elas – pergunto: qual é o peso da história neste processo? Mais concretamente, qual é o peso da memória coletiva e das identidades já estabelecidas sobre o processo de migração religiosa? Como esta memória e estas identidades estruturam o processo de opção espiritual? Quais são as estruturas de sentimento que não deixam que o processo de mobilidade que perpassa o campo religioso seja simplesmente uma expressão das preferências imediatas?
Clifford Geertz in "The Interpretation of Cultures"

Para abordar esta questão, nem sou livre, mas carrego comigo uma bagagem analítica da qual destaco duas peças. Primeiro, diria que ler o significado que uma religião tem para uma pessoa é como ler um sonho: trata-se de um lugar social de alta concentração simbólica, onde as idéias, sentimentos e ansiedades sociais, que normalmente permanecem vagos e ambíguos, se reúnem de uma maneira densa, tangível, imediata. Mas transformada, como num sonho, através do trabalho de que fala Freud, em termos míticos, que poderiam ser narrados. Assuntos que não se expressam de outra maneira podem ser articulados através do mítico espiritual, tornando-se, como Geertz diz, uma história que contamos para nós mesmos (Geertz 1973).
Raymond WILLIAMS in "Marxism and Literature"

Nessas histórias as contradições da vida do dia-a-dia se manifestam; os silêncios da fala cotidiana sobre as questões de sexualidade, raça, identidade voltam sob uma forma fantástica, emocionante, imediata. É por isso que quando eu, como estrangeiro, quero entender o subconsciente do Brasil, me volto para sua religião. É como se fosse uma janela, ou lente, ou radiografia, ou espelho, ou, se quiserem, um buraquinho na parede através do qual é possível vislumbrar as ansiedades sociais mais profundas desse país. São estruturas de sentimento (Williams 1977) que fazem com que essas preferências religiosas não se reduzam a uma opção de sabonete ou marca de tênis.
Mikhael BAKHTIN in "The Dialogic Imagination"

Em segundo lugar, acredito que as minorias religiosas são contextos onde as ansiedades e memórias coletivas se manifestam com uma clareza especial. Colocado de outra forma, diria: se você quiser ver o fiel brasileiro articulando suas ansiedades sociais, procure uma religião minoritária e, de preferência, recente. Por quê? Porque aí o peso da ortodoxia ainda não se tornou maciço. Porque aí os mitos fundadores ainda estão em fluxo, abertos, narrados de maneiras sutil e reveladoramente diversas. Aí, ainda, a heterodoxia converge com aquela heteroglossia de que fala Bakhtin (1984), heteroglossia estruturada por experiências coletivas, memórias coletivas, identidades coletivas. Se todas as religiões são janelas abrindo para o subconsciente social, a minoria religiosa é uma janela especialmente transparente.
Um Grupo de Mulheres que cultuam a devoção em Anastácia

E o que pode ser visto desse subconsciente através da janela sobre a qual me debruço, a devoção para a Escrava Anastácia? Culto para uma escrava, dizem os fiéis, morta no início do século passado, torturada até a morte com mordaça e ferro. Culto bastante recente, só de, praticamente, 41 anos[1] (foi inaugurado em 1971), e, apesar de forte crescimento de devotos (hoje sem dúvida há milhões deles), culto marginalizado pela própria Igreja Católica, que o proibiu oficialmente em 1989.
Nota[1] Nesta parte atualizei, pois o artigo é de 1999 e consta 28 anos de culto.
John BURDICK in "Blessed Anastácia"

Entre 1993 e 1996, assistido por duas pesquisadoras brasileiras, colhemos 42 entrevistas aprofundadas com devotos da Escrava. O que me interessa aqui é mostrar como, de maneira simultaneamente sutil e marcante, as identidades e memórias coletivas sedimentadas pela história de escravidão no Brasil têm estruturado o entendimento e a experiência deste culto. Divido meus comentários em duas partes, seguindo duas das estruturas de sentimento das devotas: os significados da tortura e os significados da redenção. Focalizo neste artigo as devotas negras e morenas; os dados sobre as perspectivas das devotas brancas podem ser consultadas em outro lugar (Burdick 1998).

1. Tortura
 Quais os significados encarnados para estas devotas de Anastácia na imagem e na história da sua tortura? Para começar, uma quarta parte das nossas informantes (por enquanto não toco na questão das suas auto-identificações de cor) entendiam a tortura de Anastácia não como prova da inexorável desumanidade do sistema escravagista, e sim como um ato de ciúme vingativo na parte da Sinhá. A escravidão, nesta versão, se torna romance trágico, no qual o amor puro de homens brancos benevolentes luta contra o ciúme das suas esposas malévolas. Marta, uma devota de 52 anos, que tinha uma relação com a escrava que durava vinte anos, me disse que o dono de Anastácia tinha carinho autêntico por ela, devido ao fato de que era sigilosamente, seu pai, e que tinha amado verdadeiramente sua mãe. Esse fato, me disse, enfurecia a esposa do senhor, que lançou sua ira sobre a coitada, impotente Anastácia. Numa outra variante, narrada por Sandra, uma devota de 44 anos, o Senhor tinha se enamorado verdadeiramente de Anastácia, que retribuía o afeto dele. “O senhor se enamorou dela”, disse Sandra. “Tinha afeto verdadeiro por ela, tinha um romance com ela. Mas quando a Senhora soube disso, mandou que a mordaça fosse colocada nela como castigo, para que ela não beijasse mais o Senhor.” Nessa versão, então, a escravidão é imaginada como um mundo no qual afeto e sentimentos de amor entre dono e escrava são concebíveis. Não é um mundo povoado só de donos-estupradores, ou de escravas prontas a se prostituir para ganhar vantagens miúdas. É um mundo de relações afetuosas e familiais, no qual a tragédia da escravidão não é imaginada como a degradação constante da escrava, mas como uma guerra de gênero entre homens brancos e mulheres brancas que vitima as mulheres negras. Nesta versão, se Anastácia é vítima, ela é pelo menos uma vítima que conhecera o carinho verdadeiro do dono de escravos.
Anastacia no teatro interpretada por Isabel Fillardis - in "portalisabelfillardis.com.br"

Depois disso, é revelador considerar quem entre nossos informantes são as enunciantes principais desta versão. Ouvimos, como mencionei, alguma variante desta versão oito vezes, das quais seis foram narradas por informantes não-brancas que se identificavam não como “negra” ou “preta”, mas como “morena” ou “mulata”. Não é estranho que essas informantes tivessem um interesse especial em tentar dignificar um encontro sexual histórico do qual eram, direta ou indiretamente herdeiras. Na sua versão do mito de Anastácia, sua tortura não integrava inexoravelmente a relação Senhor-escrava, mas lhe era externa, fazendo com que a pessoa de sangue misturado fosse o produto não de um estupro, nem de prostituição, mas de uma relação de amor verdadeira. Na cultura brasileira, que aceita comumente a noção de caráter como coisa transmitida geneticamente, o apelo de tal narrativa para os descendentes (mesmo os simbólicos) das uniões senhor-escrava não é difícil de entender.
Ouvimos uma versão bem diferente de um outro grupo de informantes. Nesta versão, o autor da tortura é o Senhor mesmo, que a administra como castigo da recusa de Anastácia em se submeter à luxúria dele. Aqui, a mordaça não é símbolo nem da passividade, nem da vitimização simples: torna-se a prova viva de que Anastácia resistiu. Como resposta a nossa pergunta “O que na história de Anastácia é mais importante pra você?”, dez de nossos (nossas) informantes mencionaram seu êxito em resistir ao estupro. Ouçamos Izolina, uma devota de 8 anos: “Quando eu penso na história de Anastácia, a coisa mais importante é como ela não deixou o corpo dela ser violentado pelo Senhor. Não deixou. Ele veio e tentou forçar sobre ela, mas ela disse ‘não’, e não permitiu. Aí, ela sofreu por aquilo.” Essas informantes insistiram que Anastácia tinha recusado se deitar com o senhor não para proteger sua virgindade (disseram que não era virgem), e sim sua dignidade. “Não era virgem”, disse Izolina. “Mas tinha um compromisso de não ceder seu corpo para ninguém. Seu dono quis abusar dela, mas ela não aceitou.” E quando perguntamos como elas sabiam que Anastácia tivera êxito em resistir, a resposta era unânime: não tinha sido torturada, pois, com aquela mordaça horrível?
David Brion DAVIS in "The Problem of Slavery in the Age of Revolution"

E quem foram as enunciantes principais desta versão? Das dez vezes que ouvimos, oito delas vinham de mulheres que se identificavam como “preta” ou “negra”. Para essas mulheres, a imagem da tortura de Anastácia não perpetuava a identidade da vítima passiva. Ao invés disto, sua vontade de se submeter à tortura, mesmo até a morte, ajuda-as a resgatar uma honra roubada pelo estereótipo da mulher escrava pronta a ceder seu corpo em troca de um tratamento marginalmente melhor. Assim, a figura de Anastácia revela uma faceta particular da afirmação de Hegel, de acordo com a qual a pessoa verdadeiramente livre prefere a morte à não-liberdade: pois quando a “pessoa” de Hegel vem a ser uma mulher, sua “não liberdade” ou escravidão muitas vezes inclui a experiência do estupro (Davis 1975; Hale 1997). De fato, Anastácia não prefere a tortura e, afinal, a morte no lugar de uma “não-liberdade” abstrata: ela as prefere ao invés do estupro. “Não ia ceder”, disse Aparecida, uma mulher de 31 anos, olhos cintilando de admiração. “Preferia a morte. Ia ser bem tratada se cedesse. Mas não dava importância ao melhor trato; dava importância sim à honra.” A serenidade de Anastácia pode então ser vista como uma preferência pela morte, uma preferência que permite que suas devotas negras hoje triunfalmente refutem a idéia de que são descendentes de “escravos naturais”.
A lição que as devotas derivam da sua versão do mito não é exclusivamente racial. Desemboca em uma afirmação do direito da mulher a resistir a abuso por parte de todos os homens, de todas as cores. É verdade que algumas mulheres aplicavam o mito às suas próprias vidas em termos racializados. Minhas filhas freqüentam as festas, disse uma mulher.
Eu falo de Anastácia para elas, digo como ela não deixou ser explorada. Porque, vejam bem: a mulher negra é doutrinada que seu valor se reduz à parte sexual. E nas festas, tem meninos prontos para tirar vantagem de quem não se valoriza. Assim, conto a história de Anastácia, dizendo, olha: ela se valorizava tanto que resistiu ao Senhor; então você vai deixar um garoto roubar o que não lhe pertence?

A coisa incoveniente é que o adversário da mulher não é sempre um homem branco. Aparecida é uma negra de 38 anos que, entre outras coisas, administra um programa de alfabetização para crianças, um programa que ela denominou “Escola Escrava Anastácia”. “As vezes”, diz ela, “eu me torno Anastácia, porque quando aquele homem tentou tomar ela, ter sexo com ela, Anastácia disse não.” Então contou a história de uma relação problemática com um parceiro, que era negro. “O homem,” disse,
falou na minha cara que ia fazer não sei o quê. Eu disse que podia tentar, mas que um de nós, ou eu ou ele, morreria. Então me deixou em paz, não me tocou. Por isto eu dou graças a Deus e a minha escrava Anastácia. Era o espírito de Anastácia, me guiando e me dando força. Só ela. (cf. Brown 1991)
Karen McCarthy BROWN in "Mama Lola A Vodou Priestess in Brooklyn"

Contar a história de como Anastácia possibilitou sua resistência contra aquele homem deu a oportunidade para dizer algumas coisas importantes sobre o homem negro em geral.
Nos tratam muito mal, muito mal. O homem negro, vou te dizer, ele não respeita a mulher negra. Ele chegava em casa e pensava que eu devia atender todas as suas necessidades, e se eu não queria ele dizia que ia achar uma branca que sabia como tratar um homem. Mas com Anastácia ajudando, não aceito aquelas coisas.

Não causa surpresa que o movimento negro não tenha nela a mesma confiança (Burdick 1996).[2]
Nota[2] Desde 1988 os movimentos negros têm se afastado da imagem de Anastácia, afirmando que a devoção a ela fica restrita à esfera do catolicismo e da umbanda. Mas há outras motivações para essa rejeição do que uma simples questão religiosa. Vários informantes nos movimentos me disseram que julgam Anastácia menos “combativa” do que Zumbi, mais conciliadora. A interpretação oferecida aqui, de que os ativistas dos movimentos vêem Anastácia como ameaça contra o poder patriarcal, obviamente nunca foi afirmada explicitamente.

2. Redenção

Em algumas versões o mito da santa escrava terminam com a cura, operada por Anastácia, do filho dos seus torturadores, personificando assim o etos cristão de conciliação e perdão. Nesse caso, as versões diferentes desse mito revelam algumas estruturas de sentimentos importantes. “Morenas” quase nunca aludiram espontaneamente ao episódio final de cura; ou se referiram a ele sem intensidade emocional. De outro lado, uma de nossas descobertas mais interessantes foi que o episódio no leito de morte de Anastácia, quando curou os filhos do Senhor, era visto pela maior parte de nossas informantes “negras” (10 entre 13) como o detalhe mais importante da vida de Anastácia. “Quando salvou os filhos do dono”, disse Rivanilda, uma mulher de 59 anos, sem hesitar. “Era o mais importante. Porque ela deixou a raiva. Eu me pergunto se eu podia fazer aquilo.” Por que as negras – as mesmas que glorificam a recusa de Anastácia de ser estuprada – falariam com tanta emoção a respeito do ato de amor da mesma escrava dirigindo à família dos torturadores dela?
De um lado, há indubitavelmente aqui uma dose do prazer social em inverter qualificações morais. “Ela queria”, disse Carolina, uma devota de 50 anos, mostrar a eles o que era o verdadeiro amor. Era melhor do que eles. Muito melhor. Então se tornou santa e agora ela é modelo para todos nós. Neste sentido, não seria despropositado sugerir que Anastácia encarna um dos impulsos que dava a Martin Luther King um apelo entre muitos setores da comunidade cristã negra norte-americana. Para essas mulheres negras, o poder do episódio se acha no triunfo moral de Anastácia sobre seus donos, e é a prova da falsidade das imagens de inferioridade moral do negro. “O ponto mais lindo na história de Anastácia”, disse Gege, uma mulher de 53 anos,
é que ela se preocupa com a saúde da filha. Quando ouvi aquilo, eu lembrei: eles dizem que meu povo, meus negros, queremos matar as crianças. Mas veja bem: se fôssemos tão ruins, não ia ter nenhum branco no Brasil! Quem era, e quem são, as parteiras, as amas, as babás? Nós, que somos negras. E se fôssemos más, acabávamos já com as crianças brancas. Mas nunca quisemos matar uma criança branca, porque amamos a vida, e amávamos aquela criança branca. Veja como nós somos boas: sabendo que aquela vida, da criança branca, pode ser no final matar sua própria criança, ou vende-la, ou tortura-la. Mas não. Não fomos criadas para ser más! Qualquer pessoa que tem essa opinião, só precisa escutar a história da escrava.

Quero sugerir que o sentimento de redenção não acontece apesar da – ao contrário, acontece devido à – ambivalência emocional. Sem essa ambivalência, a redenção não teria nenhuma transcendência para ser realizada. O comentário de Gege revela, penso eu, a natureza desta ambivalência: seus protestos constantes sugerem uma coexistência de duas emoções na sua própria experiência vivida, de ressentimento, até ódio, em relação aos brancos e brancas, com amor e afeto em relação às crianças. Para quatro de nossas informantes “negras”, o episódio de cura suscitou lembranças pessoais de emoções genuínas e fortemente expressas em relação às crianças brancas de que cuidavam. Essas memórias são redentoras: ao se lembrarem da experiência da ama, essas mulheres podiam recuperar o que há de experiencialmente verdadeiro na ideologia freyreana; mas também podem, através das mesmas memórias, explorar a oportunidade de reconstruir as relações raciais numa base nova.
Para Chica, uma mulher de 62 anos, a parte mais importante da história de Anastácia é quando ela estava curando as crianças. “Nós, mulheres negras, carregamos este conhecimento dentro da gente”, disse. “Eu amamentei duas crianças brancas, e com muito prazer e satisfação.” Tentou descrever a experiência: “Porque amamentar te coloca bem próximo, não é? A mulher sabe como é: a proximidade da pele, o contato de pele, o cheiro, o calor, não dá para resistir ao amor, você sente amor pela criança, você transmite o amor.” Este amor é, para Chica, comovente por causa do racismo dos pais e da sociedade. “A criança branca”, disse Chica, “é vista como superior a você. Mas lá, nos seus braços, aquilo desaparece. Ela é totalmente inocente, dependente. Os pais talvez sejam racistas terríveis, mas as crianças não entendem nada disso. Estar com elas te enche de esperança.
Chica generalizou em seguida ao comentar a experiência de amas-de-leite negras.
Alguns dizem que a escrava que amamentou a criança branca devia sentir raiva, por ter sido obrigada a fazer aquilo, a deixar seus próprios filhos com fome. Tenho certeza que isso é verdade. Mas tem uma outra coisa também. A ama-de-leite amava aquelas crianças. Seus sentimentos para com elas eram de verdade. Como uma mulher pode sentir raiva de uma outra raça quando passou o leite, seu próprio sangue, para a criança?
Os pecados dos pais não são culpa da criança,” concluía, sintetizando experiência pessoal com teologia redentora. “Eu me identificava com o amor de Anastácia e a esperança pelas crianças. São a próxima geração. Os adultos talvez estejam perdidos. Quando você amamenta uma criança, está fazendo uma transfusão de sangue, como na comunhão. Talvez possamos ensinar a próxima geração a não ser racista como seus pais.
A máscara de flandres aplicada aos escravos, como na imagem da escrava Anastácia - aqui é representada como um "objeto de desejo parisiense"

O mito de Anastácia proporcionou aqui a ocasião para uma articulação de redenção pessoal e coletiva. A mulher que recupera a intimidade com as crianças reproduz, é verdade, o estereótipo mais limitado da visão freyreana de relações raciais que seriam afetuosas. Mas, ao mesmo tempo, ela está fazendo referência a uma experiência verdadeira de intimidade e transcendência moral, através da qual ela teve “insights” sobre as possibilidades de um futuro sem racismo. Não é fácil categorizar ou reduzir essa redenção em termos políticos, agradáveis ou não. Contento-me aqui apenas em documentar a ambigüidade presente na experiência.
Quais as implicações dessa análise para uma observação do campo religioso brasileiro? Diria o seguinte: esse fenômeno de permutações religiosas que correspondem à memórias identitárias não pode ser raro; até considero que exista de uma maneira ligeiramente subterrânea por todo o campo religioso. Cavemos só alguns centímetros e acharemos até coisas que não queremos ver. Diria que o que observamos no campo religioso não é só um supermercado, lugar de desejos e preferências passageiras (achamos isto, sim, mas não apenas isto). Este campo pode também ser visto como se fosse um conjunto de mares, de profundezas variadas, onde navegam inúmeras embarcações. Podemos nos restringir às superfícies; mas podemos também explorar a profundeza das águas, ou seja, empreender uma arqueologia marítima, vislumbrando nas águas escuras os restos dos naufrágios. E lá, talvez, começaremos a ver que aquelas embarcações na superfície não navegam só à procura de um raio de sol, mas também em busca de tesouros e cemitérios submersos.


* John BURDICK é Professor de Antropologia na Syracus University e Diretor de Estudos de Movimentos Sociais do Programa sobre Análise e Resolução de Conflitos na Syracuse University, em Syracuse, Nova Iorque (EUA). Publicou vários artigos sobre religião, cor e política no Brasil, além dos livros Procurando Deus no Brasil: A igreja progressista na arena urbana brasileira (Mauad, 1998), Blessed Anastácia: Women, Race and Popular Christianity in Brazil (Routledge, 1998), e The Church at the Grassroots in Latin América: Perspectives on Thirty Years of Activism (Greenwood, 2000).

Outra obra em destaque, do mesmo autor:
John BURDICK in "Procurando Deus no Brasil"







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