quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

EXISTE UM PENSAR HERMENÊUTICO-TEOLÓGICO NEGRO?

Por Reinaldo João de Oliveira1

Nosso maior desafio é o de uma teologia que tem bases epistêmicas e hermenêuticas de acordo com o “chão comum” da cultura, na construção local de saber, de apropriação contextual e política de linguagem.

O diálogo inter-cultural, inter-religioso e ecumênico, como “espaço de reconhecimento e legitimação de cultura” nos auxilia a “situar-nos dentro do mundo”. Neste foco, desenvolvemos um diálogo, partindo de uma “interpretação” sobre o tema que aqui nos impele a reflexão: “Existe um pensar hermenêutico-teológico negro?”2 O objetivo passa ser, portanto, esse “pensar” como ação situada e, por isso, o sentido de um “situar-se” em determinado “lugar”. A hermenêutica se torna “casa” (oikos) de um embasamento reflexivo e vivencial do “olhar-escuta”, do “aprendizado-ensinamento” na perspectiva teológica afro-americana. Sem dúvida que nossa busca compreende os fundamentos do fazer teológico, como missão de concepção de um olhar para a teologia de modo diferente e, assim, uma busca pela epistemologia da própria teologia, ou do que seja “esse tipo de fazer teologia”.

Começando por fazer um caminho pelos fundamentos do termo 3,“hermenêutica” é um termo carregado de significado e de história. Originalmente, o uso lingüístico do “termo grego” situa-se num contexto religioso: o sentido de “proclamação” submetido a ermhneia que está implícito no nome de Hermes, o mensageiro dos deuses, a quem se atribuía a invenção da linguagem. Assim, sendo esta a origem do termo no grego, desde o início está ligado com a divindade (ou os “deuses do Olimpo”).

O uso linguístico de ermhneia, mesmo fora do mundo clássico, continua dentro do âmbito da teologia cristã, característica essa que igualmente se verificava na antiga arte da “ermhneia intimamente vinculada à esfera sacral”. Foi Gadamer quem elaborou uma teoria da compreensão baseando-se nos trabalhos iniciados por Schleiermacher, Dilthey e Heidegger 4 tentando assim valorizar o preconceito (via de acesso aos conceitos). O preconceito significa, em Gadamer, uma pre-compreensão historicamente determinada que possibilita um primeiro acesso à compreensão mais aprofundada, como que, por exemplo, o fato de “o sujeito ao ver um objeto já conhecido, não precisar refletir sobre ele”. A partir daí, Gadamer irá falar da fusão dos horizontes, que seria o alargamento de nosso horizonte limitado mediante a compreensão do outro, por exemplo: o que me interessaria é meu ponto de vista, fazendo (realizando) uma fusão de horizontes (o meu e o do outro) para compreender.

A fusão dos horizontes nos interessa enquanto nos possibilita a abordagem ética como análise acerca desta proposta de leitura. A Hermenêutica carrega consigo uma bagagem teórica e de significação estritamente absorvida desde uma cultura e tradição. Contudo, nosso modo de pensar e interagir com as culturas, e tudo o que refletimos no campo teórico das letras e das ciências, pode também demonstrar uma certa maneira de conceber um pensamento próprio, que mesmo nascente, pode tornar-se algo estritamente latente para a reflexão teológica. Disso tudo depende: onde estamos – lugar sociológico – e o campo epistemológico de onde iniciamos nossa reflexão, ou melhor: a partir de onde construímos nosso pensamento? Situamo-nos “dentro” de uma “cultura”, realidade, Latino-americana, ou “Ameríndia”. Estamos refletindo uma teologia que tem bases epistêmicas e hermenêuticas de acordo com o “chão comum” (realidade) de história e, por isso, em uma “construção local de saber e de apropriação de linguagem”, bem como de referenciais teóricos. Então, propomos aqui uma reflexão hermenêutico-teológica Afro-ameríndia, com base em uma epistemologia também contextual.

A proposta e o método do olhar hermenêutico: a etnografia e a metáfora do olhar-escuta como descortinamento

Pensando a própria teologia, concebendo-a metodologicamente a partir do quadro teórico de uma etnografia: não como mera produção de imagem e representação de/sobre o outro, mas na construção um olhar-narrativo, uma forma de mediação cognitiva e ética, relacionada, situada e que se movimenta junto a essa alteridade.

Sabemos dos contextos, históricos, sociais e políticos em que vivemos envolvidos no decorrer de séculos, desde um tal “descobrimento”, que seguiu a corrente da “era colonial”, implicando vários processos de “encortinamento”, ao invés de “descobrimento”. Esse desvelamento, que não ocorreu e poderíamos chamar de uma “encurtação”, pois encurtou-se a reflexão, colocou-se limites à compreensão sobre o outro, sobre o mundo, enfim o cosmos, incutindo até mesmo uma compreensão acerca dos povos nativos como “sem cultura” – “sem alma” e até chegar a um outro processo no qual se escreveu a nossa história (de Escravidão, de marginalização, de expropriação de cultura, de saber, de linguagem etc.) ainda destes povos nativos e transplantados. Portanto, a cultura é fundamental para este olhar hermenêutico 5, e a religião como parte fundante nesta mesma perspectiva. Conforme outro autor, abordando sobre o tema de uma Teologia desafiada: “o descobrimento das culturas e da religião como sua alma, é o responsável pela irrupção do pluralismo cultural e religioso. Neste ponto, o descobrimento das culturas, no dizer de Mircea Eliade, seria o maior descobrimento do século XX”6. Seguindo o viés desta nossa reflexão e dos processos presentes na história do pensamento teológico latinoamericano, precisamos nos perguntar: onde estão estes povos que fizeram a história do Brasil ser mais rica de sentidos, significados (de cultura, de linguagem e de sabedorias)? Onde estão situados? A partir de onde poderíamos situar as raízes desta teologia ou da sabedoria latino-americana, afro, indígena? Até onde esses povos estiveram envolvidos pelo “ocultamento”, ou “encobrimento” 7 de suas “culturas”? Através daquilo que percebemos pelas várias formas de opressão, como construir-se em solo brasileiro uma legitimação de outros saberes ditos não-oficiais? Como partir por uma metodologia que favoreça um olhar diferente para esses “Outros” que se mantiveram “na marginalidade”? Assim, Leonardo Boff, no livro organizado por Paulo Suess, Culturas e Evangelização, reflete sobre a cultura do opressor versus a cultura do oprimido, e exatamente nesta nossa análise situaríamos outra pergunta para a teologia: Afinal, qual é a teologia do opressor e qual a teologia do oprimido? Em que referenciais teóricos, hermenêuticos podem estar situadas? No nível político se dão relações sociais de poder que se apresentam como autoritárias, ditatoriais, carismáticas, democráticas, relações que podem ser de apropriação, expropriação, controle, consolidação ou enfraquecimento de interesses, imposição de princípios reguladores de condutas de grupos sobre outros. É aqui que apontam os conflitos nas culturas, havendo culturas dominantes, culturas subalternas, culturas do silêncio, culturas populares etc. Não captar os conflitos dentro das culturas, particularmente nas nossas históricas que são culturas da desigualdade, é mascarar um dado fundamental que é decisivo para um processo de libertação e uma autêntica evangelização 8.

Podemos citar alguns casos tristes e cruéis da história, em que se fundou “sistemas” e “lógicas de dominação”, em que se prevalecia a “uniformidade”, a “exclusão como processo de seleção de seres-humanos”, a “eugenia” pregando a superioridade de uns sobre outros, bem como a xenofobia como medo, aversão e intolerância em oposição e rejeição do “outro” que é diferente em sua concepção de mundo, cultura, religião, existência (do “ser-aí-no-mundo” chamado como dasein por Heidegger). Porém, a corrente do pensamento formal elaborou postulados que também corroboram para nossa análise. Por exemplo, Gadamer iria considerar o seguinte:

Todavia, apesar de toda a densidade da experiência, o que significa propriamente “ser” para aqueles que foram educados no pensamento ocidental e em seu horizonte religioso é obscuro. O que significa a expressão “isso está aí”? Trata-se do segredo do aí, não daquilo que é aí, mas do fato de o “aí” ser. Isso não visa a existência do homem, tal como na expressão sobre a “luta da existência”, mas ao fato de no homem o aí se descortinar e permanecer ao mesmo tempo velado em toda abertura 9.


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Este espaço busca ser um lugar de interação com contribuições em temas relacionados às Culturas Afroameríndias, suas diversas manifestações e contextos. Nos campos de exposição, apresento em forma de reflexões alguns textos sociais, históricos, políticos, teológico-religiosos e educativos. Também o universo das artes e literaturas são outras referências, leituras e aprofundamentos, conforme este processo de interlocução dialógica em construção.
Agradeço-lhe pelo interesse em reconhecimento e atenção ao nosso trabalho!

Atenciosamente,
Reinaldo.

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