domingo, 20 de março de 2011

Entender a África Sul-Saariana e Sair da Tragédia

(o Terceiro Terço do Século XX)
por Eduardo Devés-Valdés
As sensibilidades constituem o mais importante dos ecossistemas onde as idéias são produzidas e evoluem. Certamente, idéias e sensibilidades afetam-se reciprocamente, como afetam e são afetadas por diversos outros componentes que se encontram nos ecossistemas culturais.
As sensibilidades constituem o mais importante dos ecossistemas onde as idéias são produzidas e evoluem. Certamente, idéias e sensibilidades afetam-se reciprocamente, como afetam e são afetadas por diversos outros componentes que se encontram nos ecossistemas culturais.
O terceiro terço do século XX é mais curto que o anterior e seu início pode ser situado por volta dos anos 1970 ou alguns anos depois e é marcado por uma importante mudança na sensibilidade a respeito do segundo terço, o que facilita o desenvolvimento de idéias bem diferentes dos períodos anteriores, ainda que muitas sejam suas herdeiras. Seguramente, elementos da sensibilidade e das idéias posteriores a 1970 podem ser encontrados já durante os anos 1960, ao serem observadas as primeiras críticas aos novos sistemas africanos independentes.
Essa mudança de sensibilidade, que contribui para a modificação das perspectivas, das questões e inspirações, deve ser entendida relacionada a outros elementos que, interagindo com estes, não são estritamente nem a sua causa nem sua conseqüência, mas contribuem para a conformação de novos ecossistemas ou cenários. Uma questão muito importante é o enorme aumento, durante os anos 1960, da institucionalidade acadêmica e, paralelamente, da massa intelectual, composta por pessoas recém-formadas, retornados e acadêmicos comprometidos com os processos de construção de uma África independente, muitos deles de procedência intelectual muito radical. A diversificação das ciências sociais e humanas, assim como a aparição de instituições e redes, como a Comissão Econômica para a África, e mais tarde do Codesria, o Conselho para o Desenvolvimento da Investigação nas Ciências Sociais na África, facilitaram a recepção e a circulação de novas idéias. A aparição de novos setores sociais intelectuais, como os ásio-descendentes, as mulheres, a intelectualidade islâmica “moderna” dentro da África Sul-Saariana, e a incorporação de novos Estados africanos aos organismos internacionais levam inúmeros intelectuais africanos a participarem de reuniões internacionais. Com certeza, os novos exílios e o agravamento do apartheid na África do Sul geram novos núcleos internacionais do pensamento, primeiro na própria África (Dacar, Dar es Salaam, Nairóbi) e, depois do exílio em massa já nos anos 1970 e 1980, na Europa e nos Estados Unidos, configurando uma nova diáspora intelectual (notoriamente mais profissional ou mais acadêmica que a dos anos 1920, 1930 ou 1940) e constituindo um pólo de produção muito forte, particularmente nos Estados Unidos.
Eis aqui alguns dos elementos que constituem os novos ecossistemas que vão facilitar o aparecimento, entre outras coisas, de um pensamento mais acadêmico e sujeito a uma organização disciplinar em que os líderes sociais e políticos estão menos presentes; um pensamento que procura explicar fracassos e buscar soluções, e não gerar independências; um pensamento mais heterogêneo em que proliferam diversidade de escolas, paradigmas e linguagens; um pensamento marcado pelos fracassos.
O tema do desenvolvimento, as causas do fracasso econômico e a democracia são alguns dos mais importantes objetos de trabalho. O tema da independência continua vigente em algumas regiões do Sul, e o do apartheid se faz mais e mais relevante. Por fim, o crescimento do tema do gênero, a discussão sobre uma filosofia africana, o afro-pessimismo, a globalização e a marginalidade encerram o século.



O Pensamento Africano Sul-Saariano... Transição para o Último Terço do Século

Pode-se afirmar que o período de transição ocorre com Fanon e Cabral, pois Fanon inicia a autocrítica e Cabral termina com as idéias independentistas, ou entre Nkrumah, que assinalou o grande desafio pós-independência, e Mazrui, que representa a nova geração em termos de profissionalismo e de busca por resposta às diversas frustrações.
Outra manifestação de uma mudança é a crítica a algumas das idéias marcantes do período anterior. Dentre as mais importantes, podem ser citadas a crítica ao socialismo africano, substituído pelo “afro-marxismo”, e a crítica à negritude. Essa modificação, como se assinalou, não se manifesta apenas no aparecimento de uma nova sensibilidade ou na formulação de novos problemas, mas também no desaparecimento de antigas escolas de pensamento e no surgimento de novas. A mais importante do período anterior, a do socialismo africano, vai ser posta de lado, e de certa maneira substituída, por um pensamento marxista-leninista, sob o argumento de que o socialismo não tem país nem continente, por tratar-se de uma disciplina científica que tem validade universal, ainda que deva ser aplicada de acordo com certas particularidades. Essa nova escola foi chamada de “afro-marxismo”. Tal mudança sofre uma série de modificações tanto no tocante à interpretação da realidade africana, quanto ao modelo que se formula para o futuro.

Stanislas Adotevi


A crítica mais direta à negritude é a que realiza Stanislas Adotevi. Sua crítica às idéias de negritude abrange diferentes aspectos, focando-se particularmente nas imprecisões e contradições na obra de L. Senghor. Como ao que chama de “vontade insana de manter o conceito em uma falta de acabamento teórico original”, passando logo do “inacabado conceito de negritude ao outro muito velho e, sobretudo, muito hábil da alma negra” (Adotevi, 1972, p. 113). Segundo Adotevi, “a negritude é um discurso mistificado e mistificador do neo-racismo” (idem, 1972, p. 115) que procura perpetuar o neocolonialismo (idem, 1972, p. 114). A crítica de Adotevi articula negritude ao “lamentável socialismo africano”, que ele caracteriza, ridicularizando-o, como “fruto de um silogismo biológico nascido do cruzamento dos ‘ritmos primitivos’ da África com os ‘acordes fecundantes da Europa’” (idem, 1972, p. 127).1

A Sensibilidade do “Afro-Pessimismo”

O período de mudança de sensibilidade dura pouco mais de uma década, iniciando-se em 1961, com o texto de Frantz Fanon 'Os Condenados da Terra'. Nele, entre outras coisas, Fanon realiza uma análise e uma avaliação do que está ocorrendo nos Estados recém-independentes, tanto ao norte como ao sul do Saara. Sua avaliação do breve deslize no percurso é muito negativa, destacando a incapacidade dos setores dirigentes para governar e desenvolver os países, a falta de unidade e de um objetivo comum, a ansiedade da burguesia nacional para enriquecer, dando as costas ao país, e sua associação com as metrópoles, além da ação dos colonialistas visando enfraquecer os novos Estados.

Frantz Fanon

A fórmula da “unidade africana”, que tanto funcionou para a conquista da independência, rapidamente se enfraquece, afirma Fanon, inclusive dentro de cada Estado. A burguesia nacional, que só pensa em seus interesses imediatos, e como não enxerga além de seus narizes, mostra-se incapaz de realizar a simples unidade nacional, incapaz de unificar a nação sobre bases sólidas e fecundas.

Nesse âmbito, desencadeia-se uma luta implacável entre raças e tribos para ocupar os postos que foram deixados livres, somando-se os conflitos religiosos. Tudo isso é aproveitado e explorado pelo colonialismo para quebrar a vontade africana (Fanon, 1980, p. 146). O colonialismo se ocupa em revelar aos africanos a existência de rivalidades espirituais, utiliza toda sua teia para confrontar uns africanos com outros, fortalecendo as diversas religiões para que se oponham entre si (idem, 1980, p. 147). A burguesia nacional assume, herda, aproveita-se também disso, fazendo aparecer formas de racismo perigosíssimas para o futuro do continente.


De fato, a burguesia nacional africana “assimilou até as raízes mais podres do pensamento colonialista” (idem, 1980, p. 148). Cria-se assim, através da fórmula do partido único, uma forma moderna de ditadura burguesa na África (idem, 1980, p. 151). Essa burguesia segue apostando e utilizando (ou pretendendo) um nacionalismo que se esgotou, diz Fanon, e que, se não fosse transformado rapidamente em consciência política e social, em humanismo, estaria em um beco sem saída (idem, 1980, p. 185-6). Essa mudança na sensibilidade é, praticamente, produto das fragilidades, derrotas ou traições captadas “intuitivamente” e, parcialmente, produto de idéias que vão sendo elaboradas para entender tais processos e que incidem ciclicamente sobre essa mesma sensibilidade.

Kwame Nkrumah, seguindo uma reflexão semelhante em muitos aspectos à de Fanon, introduz a noção-chave do “neocolonialismo”, com a qual tenta sintetizar um conjunto de elementos que apareceram depois das independências: uma nova forma de articulação entre as antigas potências coloniais e os novos Estados independentes, concluindo que, em alguns aspectos, a África se encontrava em piores condições que durante o período colonial (Nkrumah, 1966, p. 3ss).
O terceiro terço do século XX é marcado, então, por um lado, pelo sentimento de ter conquistado algo importante – o triunfo nas lutas pela independência – e, por outro, pelas grandes derrotas nas batalhas em prol do desenvolvimento, da justiça, da inserção internacional. Uma questão decisiva, sem dúvida, é que as derrotas sofridas são infinitamente maiores e mais terríveis do que os intelectuais africanos puderam imaginar. A pobreza, as ditaduras, as guerras civis ou internacionais, os genocídios, a corrupção e as doenças foram se acumulando e minando a confiança em si mesmos que os africanos tinham ganhado com suas independências. O pensamento do último terço do século procura entender, dar conta e remediar essa tragédia. Esse pensamento emerge a partir de uma sensibilidade muito castigada. Assinalou-se que Fanon e Nkrumah são alguns dos que inauguram as propostas críticas pós-independência, mas não são eles que transparecem melhor essa sensibilidade que se inaugura, mas sim os escritores, freqüentemente mais sensíveis que os pensadores.

Wole Soyinka

Chinua Achebe

Wole Soyinka e Chinua Achebe, durante os anos 1960, mostram os sinais de um sentimento que vai invadindo a sensibilidade da intelectualidade africana. Essa mudança na sensibilidade vai sendo expressa e denunciada por eles, conscientes do processo que estava sendo gerado. Refletindo sobre as questões dos escritores africanos, Chinua Achebe destaca que foi a Europa quem introduziu na África os problemas que o escritor estava tentando resolver, como, entre outros, o de restaurar em seu povo o amor-próprio, pois a associação com a Europa minou a autoconfiança. O escritor estava procurando corrigir as distorções da cultura africana (Achebe, 1970, p. 165). Mas, nos anos 1960, surgem novos problemas que, mesmo não podendo se desligar completamente do passado colonial, são problemas da África independente, entre eles a tentativa das antigas colônias de manter o controle (idem, 1970, p. 166). Apesar de tudo, isso não parece ser o mais grave ou ao menos o mais chocante, o pior é que, em seus poucos anos como Estado independente, a Nigéria se transformou em um esgoto de corrupção e desgoverno. Os servidores públicos desfrutavam livremente da riqueza da nação. As eleições eram descaradamente fraudadas. O censo nacional era ultrajantemente manipulado, assim como os magistrados, pelos políticos no poder. Os próprios políticos eram manipulados e corrompidos pelos interesses dos negócios estrangeiros. Segundo Achebe, “essa era a situação” na qual ele escreveu Um Homem do Povo (idem, 1970, p. 166-7). A esse quadro de corrupção e destruição, no qual o dominador branco se encontra inclusive no poder, deve ser agregada a irrupção do golpe de Estado movido por interesses tribais (idem, 1970, p. 168).

Wole Soyinka, por sua vez, denuncia a pressão sobre o intelectual que se afasta das regras do poder. Essa pressão, que supostamente poderia ocorrer somente nas regiões dominadas pelo colonialismo ou pelo apartheid, se estende a outras regiões já independentes, o que estimula um sentimento de desilusão (idem, 1970, p. 136). É certo que não ocorre com todos, pois diversos escritores continuam se refugiando na literatura sobre o passado idílico e idealizado, permanecendo de costas à realidade africana e mundial. O escritor africano não assume o seu papel em uma situação tão trágica. A situação na África, segundo Achebe, é a mesma que se observava por todo o mundo: não se tratava de tragédias que provinham de isoladas fraquezas humanas, mas sim de um “verdadeiro colapso da humanidade” (idem, 1970, p. 137).





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