segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Uma Democracia para a África


Os escritos políticos são aqueles em que estão marcadas com maior nitidez as mudanças nas idéias nas últimas décadas do século XX, na região sul-saariana: o trânsito entre o socialismo africano e o afro-marxismo, depois as teorias sobre a democracia e os direitos humanos e, nesse âmbito, as ênfases nos movimentos sociais, na sociedade civil e na necessidade de uma democracia enraizada nas formações políticas ancestrais ou em formas autóctones de participação.

Peter Anyang’ Nyong’o

A luta contra o apartheid ou, indo mais longe, contra a discriminação foi, por outro lado, algo permanente até o final do período. Segundo Peter Anyang’ Nyong’o, os debates sobre democracia no final do século XX foram a respeito de qual foi a experiência africana em matéria de democracia; se existe uma versão puramente africana de democracia; que argumento pode ser usado em favor da democracia na África na atualidade; se a democracia é necessária para o desenvolvimento; e se as sociedades africanas podem, tal como se apresentam atualmente, sustentar a democracia (Anyang’, 1995, p. 37-8).

Archie Mafeje

Nessas discussões, e em outras, volta a ser colocada em pauta a questão da dependência do pensamento africano ou, até mesmo, a inexistência de um pensamento africano propriamente dito. Archie Mafeje afirma que não existe um “discurso africano” sobre a democracia, pois o discurso é irrealizável sem um conjunto de benefícios conceituais derivados de um marco teórico coerente (Mafeje, 1995, p. 24). Boele van Hensbroek diz o oposto. Referindo-se à “virada democrática” que foi produzida nos anos 1980, argumenta que se ocupou da crítica dos sistemas de partido único e que as mudanças no pensamento político da região correspondem aos desenvolvimentos intelectuais globais (Boele van Hensbroek, 1999, p. 168-9). Numa primeira aproximação, considerou-se a adoção da linguagem política liberal como parte do afã mimético dos africanos, mas uma observação mais atenta faz com que se dê conta da presença de vários elementos que não se limitam à questão do multipartidarismo, típica do discurso ocidental (idem, 1999, p. 171), e que diversos autores apontam para a reelaboração da trajetória democrática ancestral dos povos africanos, com a convicção de que a democracia não é um assunto da elite, mas que compromete toda a população, e por isso deve se ocupar dos modos como esses povos a têm exercido (idem, 1999, p. 172).
Uma vez situado no terreno da discussão africana, Boele distingue três tipos de discursos sobre democracia: o discurso da corrente democrática liberal, que reproduz o modelo de pensamento da modernização, na qual a democracia é concebida como regra do jogo, uma norma de exigências políticas da modernização universal; o segundo, que reproduz os critérios básicos do modelo identitário: a democratização é a prova cabal do consenso africano na situação contemporânea; e o terceiro, que corresponde ao critério liberacionista, em que a democracia é concebida como uma fase na história das lutas sociais que deve conduzir, em última instância, ao radical poder dos oprimidos (idem, 1999, p. 177-8). Em todo caso, a discussão mais importante no pensamento politológico sul-saariano do final do século XX é a que se produziu em torno da relação entre democracia e instituições ancestrais, em que se afirma que a democracia poderia ser fortalecida na medida em que fosse aproveitada a existência de instituições democráticas dos antepassados.

Daniel Ayana

Considerando o trabalho de Daniel Ayana, pode-se mapear esse campo conectando-se a discussão politológica com algumas existentes no meio filosófico e outras no seio das ciências da religião. No discurso sobre democracia no “esquema das instituições indígenas africanas”, haveria três tipos de argumentos: sobre a validade da tradição, sobre a ausência de uma tradição democrática nos povos africanos e sobre a relação entre tradição, religião e autoritarismo (Ayana, 2002, p. 26ss). Nesse âmbito de discussão, podem se situar, por exemplo, reflexões como as de K. Wiredu sobre a relação entre democracia e governo por consenso, na esteira de sua afirmação sobre a existência de sociedades que funcionam sem Estado e de formas de decisão de políticas que não implicam partidos, assinalando a necessidade de inspirar-se na sociedade civil, que oferece modelos importantes nesse sentido (Wiredu, s/d, p. 183); as de Edward Wamala, que se interroga sobre a possibilidade de falar de democracia em sociedades tradicionais africanas que são tipicamente monárquicas (Wamala, 2004, p. 435); e as de Joe Teffo, entre diversos outros, que se pergunta sobre a vitalidade do sistema político tradicional e a presença dos líderes tradicionais na sociedade contemporânea (Teffo, 2004, p. 448).

Fatou Sow

Fatou Sow formula, de sua parte, a questão dos direitos humanos em relação às mutilações genitais femininas, que é algo não-presente nos analistas (homens) sobre a democracia. Fatou Sow estabelece relações entre mutilações genitais e problemas sanitários, costumes e religiões, mas insistindo particularmente no direito das mulheres ao controle de seu corpo e de sua sexualidade (Sow, 1998, p. 12ss).
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Obras relacionadas com o tema e com os autores citados:












 

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Este espaço busca ser um lugar de interação com contribuições em temas relacionados às Culturas Afroameríndias, suas diversas manifestações e contextos. Nos campos de exposição, apresento em forma de reflexões alguns textos sociais, históricos, políticos, teológico-religiosos e educativos. Também o universo das artes e literaturas são outras referências, leituras e aprofundamentos, conforme este processo de interlocução dialógica em construção.
Agradeço-lhe pelo interesse em reconhecimento e atenção ao nosso trabalho!

Atenciosamente,
Reinaldo.

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