terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Argumentações contra o Apartheid


Dentro do pensamento politológico, a questão do apartheid é a mais específica do pensamento africano, pois se trata de um caso único no mundo. É de especial interesse o modo como a reflexão politológica se liga a outras dimensões, sendo muito relevantes a filosófica e a teológica, assim como a reflexão sobre temas psicológicos. Steve Biko, criador do movimento Consciência Negra (Black Conciousness); Samora Machel, presidente de Moçambique; Nadine Gordimer, romancista e ensaísta; Desmond Tutu, teólogo próximo às posições libertadoras; e Nelson Mandela, o mais importante oponente do apartheid e teórico político contra o mesmo, são algumas das figuras que representam as facetas assinaladas.

Steve Biko

Steve Biko, em 1970, postulava a noção de “negro” (black) como forma de englobar todos os segregados pelo apartheid: africanos, pessoas de cor e asiáticos. Ser “negro” seria uma reflexão sobre a atitude mental; declarar-se “negro” seria iniciar o caminho em direção à libertação, pois a pessoa “negra” é a que se ergue contra a dominação do homem branco. Nesse sentido, o movimento Consciência Negra tomava conhecimento do plano de Deus, que criou negra as pessoas negras, sendo uma forma de recuperar a dignidade e o orgulho de si mesma. A libertação é a chave para a Consciência Negra (Biko, 1996, p. 360).
O racismo branco e a exploração dos negros na África do Sul e em todo o continente (e assim deve ser entendida a tarefa para evitar a real independência dos países africanos) têm apenas uma só antítese: a sólida unidade negra. Somente dessa dialética poderia aparecer uma síntese viável. Na medida em que os negros continuarem se concebendo como apêndices da sociedade branca, não poderá haver verdadeira integração na sociedade (Biko, 1998b, p. 362). Para superar essa condição de apêndice, os negros deveriam ser capazes de entender a si mesmos e não continuar aceitando uma educação e uma religião que os conduzam a uma falsa compreensão do que são (idem, 1998b, p. 363).
Na cultura africana, acredita Biko, seguindo K. Kaunda e uma linha de pensamento em que podem ser incluídos L. Senghor, K. Nkrumah e J. Nyerere, é atribuída grande importância ao homem. A sociedade africana, afirma, foi antropocentrada. Os africanos crêem na inerente bondade do homem e sua ação esteve orientada para o comunitário e não para o individualista, como ocorre com a cultura do homem branco e com o capitalismo (idem, 1998a, p. 27). Os missionários desejavam que a sua religião fosse uma religião científica, pois a africana era mera superstição (idem, 1998a, p. 29), daí porque a mistura de culturas tentada na África do Sul foi extremamente unilateral em favor da branca (idem, 1998a, p. 26). Mesmo assim, acredita, a herança africana permanece viva (idem, 1998a, p. 29) e seu reconhecimento é a base da dignidade, e a dignidade, a base da libertação.

Samora Machel

Uma forma bastante diferente de enfrentar a questão do apartheid é a do moçambicano Samora Machel. Seu pensamento, nos anos 1970, se apresenta contra o socialismo africano e como uma das expressões mais claras do afromarxismo. Ele não podia aceitar, afirma, a idéia de um socialismo para cada um dos continentes. Segundo Machel, “o socialismo é uma ciência, e resultado de um árduo trabalho e desenvolvimento de tal ciência pelos trabalhadores”. Rechaça igualmente a idéia de um marxismo africano, mas aceita a necessidade de um ajuste pelos moçambicanos às suas próprias condições (Machel, 1976, citado em Saul, 1990, p. 48). Nesse marco ideológico-conceitual, Machel interpreta o fenômeno da expansão da República da África do Sul, com sua segregação e exploração, como tentativas de se defender do exemplo socialista de Moçambique e evitar que se espalhe no território sul-africano o que teme o apartheid (Machel, 1983, p. 17-8). Mais ainda, o regime de Pretória pretendia evitar a Conferência de Coordenação para o Desenvolvimento da África Austral (SADCC) porque essa organização visaria libertar os países da região da dependência econômica em relação à África do Sul (idem, 1983, p. 16). Os não-alinhados deveriam intervir nesse assunto e se solidarizar com a liberdade e dignidade dos povos, com a alternativa de uma civilização anti-racista que se desenvolvia na região, apesar das tentativas do regime de Pretória (idem, 1983, p. 17), que representaria o nazismo de nossa época, aliado estratégico e natural do imperialismo (idem, 1983, p. 13-4).

Nadine Gordimer

Um modo diferente de formular o problema do apartheid é o elaborado por Nadine Gordimer, que se interroga sobre a responsabilidade do escritor, que teria a ver com um “gesto essencial” (essential gesture), com o ser social ou, dito de outra forma, com a questão da “integridade”. O problema interessa a Gordimer por duas razões: pela situação sul-africana à época e por sua condição de escritora, que deveria falar aos que não compartilham de sua condição específica, e nesse sentido se trata da questão da responsabilidade de escritores que têm pouco e nada em comum (Gordimer, 1988, p. 286). Sem dúvida, apesar de circunstâncias tão diferentes, parece-lhe que, no momento em que escrevia (1984), poucos podiam afirmar o valor absoluto de um escritor sem fazer referência ao contexto de responsabilidades, e isso, decerto, não seria uma questão unilateral a ser decidida apenas por quem escreve, mas sim de modo correlato pela sociedade, que espera, questiona, considera e cobra de quem escreve (idem, 1988, p. 288).
No caso sul-africano, colocava-se a questão do apartheid e é em torno desse problema que se realiza boa parte da reflexão de Nadine Gordimer sobre a integridade-responsabilidade (idem, 1988, p. 289). Assim ela se refere às diferentes formas de enfrentar esse desafio: uma é a utilizada por diversos escritores negros, como H. Dhlomo, S. Plaatje e T. Mofolo, que contribuíram para a memória, levantando dados esquecidos pelos historiadores brancos ou mostrados apenas sob o ponto de vista da conquista branca (idem, 1988, p. 292); outra forma de enfrentar essa responsabilidade era quando quem escrevia mostrava ou expunha o real significado do vocabulário eufemístico racista do governo da África do Sul em expressões como “desenvolvimento separado”, “reocupação” ou “Estados nacionais” e sua gramática racista de segregar as câmaras legislativas e deixar sem representação a maioria negra (idem, 1988, p. 295). No entanto, interessava a Gordimer ainda mais esse gesto essencial que consiste em ser capaz de descrever a situação de maneira tão real que o leitor não possa continuar evitando-a (idem, 1988, p. 298).

Desmond Tutu

Desmond Tutu, inspirando-se em textos bíblicos, em interpretações da desobediência civil, no pacifismo e na luta pelos direitos civis, formulou um discurso que tem como eixo o fato de o apartheid ser repugnante para a consciência cristã (Tutu, 1988, p. 36). Em um texto dirigido ao povo segregado, um texto particularmente aparentado com os da libertação, argumenta: Para Deus, importam a injustiça, a opressão e a exploração. Para Deus, importam os humilhados, e Ele se põe sempre ao seu lado. As autoridades finalmente fracassaram porque o que fazem é mau e contrário à lei de Deus. Fortaleçam-se para resistir ao mal. Quero recordar-lhes a dignidade e a resistência pacífica das mães e viúvas de Langa e Nyanga, no Cabo. (Tutu, 1988, p. 41. Ver cartografia n. 15.) Essa situação de segregação vem de muito tempo, pois, assim que desembarcaram na região, os brancos se apropriaram de muitas terras, transformando-se em donos e senhores. Com isso, afirma Tutu, realizaram uma série de traições aos nativos, pois quando os brancos chegaram aqueles deram as boas-vindas a estes, provendo-lhes de fruta fresca, verdura e terra para que cultivassem, mas logo abusaram da hospitalidade, estabeleceram o racismo e o legalizaram (Tutu, 1988, p. 42-3). Por isso, os brancos, que pretendiam que os negros celebrassem os aniversários da República da África do Sul e que se alegrassem com os êxitos históricos, se encontravam muito sem rumo. O que os negros celebrariam? O convite à celebração seria, segundo Tutu, “uma das mais insensíveis, das muitas coisas insensíveis a que os negros foram submetidos”. O que se estaria pedindo aos negros é que “celebrassem sua própria opressão, sua exploração” (Tutu, 1988, p. 44). Para Tutu, Deus não é neutro e tomou o partido dos escravos, dos oprimidos, das vítimas, mas tanto os israelitas como os negros sul-africanos muitas vezes não são capazes de ouvir essa mensagem, pois têm o espírito debilitado pela crueldade da escravidão. Existiria um sentimento de inferioridade que conduzia o negro, afirma Tutu, ao autodesprezo e a desdenhar os outros. E assim os negros não mereceriam a libertação porque ela custaria muito a eles (idem, 1988, p. 50-1). Apesar disso, Cristo teria vindo para que os negros pudessem ter uma vida plena, tendo libertado-os para que eles pudessem ter uma humanidade digna da humanidade (idem, 1988, p. 57).

Nelson Mandela
Nelson Mandela articula seu discurso sobre o apartheid, no final do século, com base na idéia de que se trata de um crime contra a humanidade e que por isso deve ser superado e substituído por um sistema democrático com igualdade de direitos. Para alcançar tal sistema, deveriam ser utilizadas todas as energias possíveis, evitando as contradições menores, sejam étnicas, econômicas, de classe ou de nacionalidades. Tanto os africanos como os africânderes, em uma época ou outra, afirma Mandela, se viram obrigados a pegar em armas em defesa de sua liberdade contra o imperialismo britânico, mas os africânderes, uma vez que obtiveram o poder, esqueceram a importância da liberdade, para exercer a opressão e o apartheid (Mandela, 2005, p. 109-10). Esse apartheid constituía um crime contra a humanidade (idem, 2005, p. 183), pois negar às pessoas os direitos é bloquear sua humanidade (idem, 2005, p. 192), transforma-se em um câncer mortal, carcomendo os vínculos entre os próprios excluídos. Tratar-se-ia, portanto, de afirmar a unidade entre os africanos e destes com os descendentes de asiáticos, que também eram segregados, com os sindicatos de trabalhadores, com os partidos políticos e com os brancos solidários, utilizando toda a energia desperdiçada em oposições secundárias para derrotar o apartheid (idem, 2005, p. 129-31). O Congresso Nacional Africano, declara Mandela, queria uma África do Sul livre, democrática, não-racial e unida (utilizando um objetivo defendido por Albert Luthuli, décadas antes) para mostrar ao mundo um novo modelo de democracia que viesse à tona e expressasse todas as diversidades de cor e raça dos sul-africanos (idem, 2005, p. 133-4).

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Este espaço busca ser um lugar de interação com contribuições em temas relacionados às Culturas Afroameríndias, suas diversas manifestações e contextos. Nos campos de exposição, apresento em forma de reflexões alguns textos sociais, históricos, políticos, teológico-religiosos e educativos. Também o universo das artes e literaturas são outras referências, leituras e aprofundamentos, conforme este processo de interlocução dialógica em construção.
Agradeço-lhe pelo interesse em reconhecimento e atenção ao nosso trabalho!

Atenciosamente,
Reinaldo.

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