terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A Globalização a partir da Disjuntiva Periférica

Panfleto do MLG lançado em 1960 no Senegal, entre os refugiados guineenses (Fonte: Arquivos da PIDE/DGS)

Em quase todos os lugares, o tema da globalização se tornou chave nas discussões do fim do século: os conceitos variaram parcialmente, as ênfases também e decerto as valorizações, mas a idéia de um cenário mundial com progressivas interconexões (econômicas, midiáticas, meios ambientais etc.) e com ganhadores e perdedores foi muito freqüente. As intelectualidades periféricas também enfrentaram esse assunto na sua disjuntiva clássica: apostar na obtenção de êxito na globalização ou apostar em outros objetivos associados a identidades diversas. Samir Amin, Ali Mazrui e Carlos Lopes foram alguns dos africanos que apresentaram respostas mais elaboradas, ainda que obviamente tenha havido muitas outras pessoas.
Carlos Lopes publica, em 1997, Compasso de Espera. O Fundamental e o Acessório na Crise Africana, cujo objetivo é pensar a globalização e, nela, a situação da África, situando-a historicamente. Para isso, revisa os discursos historiográficos, que caracteriza como o de inspiração européia sobre a inferioridade africana, o de origem autóctone sobre a superioridade africana e o que surge, finalmente, mais maduro, de uma nova escola de pensadores sem as cargas emocionais de seus predecessores (Lopes, 1997, p. 25).
Situando-se nessa perspectiva intelectual, Lopes diz que, para pensar a crise africana adequadamente, superando as deficiências de paradigma inaptas, deve-se levar em conta quatro eixos: as percepções ou opiniões sobre a África, as realidades africanas tal como são no momento, os desafios da agenda continental e, por último, o eixo da interação dos desafios com a herança histórica dos africanos (idem, 1997, p. 27). Para Lopes, não se pode colocar de lado o assunto do afro-pessimismo, essa visão extremamente negativa da África, que alguns africanos e não-africanos cultivam, mas questiona tal crítica ou autocrítica, pois ela poderia ser uma arma poderosa de destruição se não utilizada adequadamente (idem, 1997, p. 29). Ele acredita que o afro-pessimismo e outras visões estreitas não recorrem à história pré-colonial como guia para interpretar a realidade da África (idem, 1997, p. 30). Situando-se na disjuntiva da intelectualidade periférica tomada de empréstimo a Boaventura de S. Santos – “mimetismo crítico” versus “nacionalismo radical” –, Lopes diz que o desenvolvimento é algo endógeno e que pode vir somente do interior de uma sociedade, que definiria soberanamente sua visão e sua estratégia (idem, 1997, p. 56); por isso, seriam os próprios africanos que teriam de decidir se querem recuperar ou construir seu próprio modelo de desenvolvimento (idem, 1997, p. 54). Em coerência com isso, afirma que é a cultura africana que se deve constituir na base para a preservação dos elementos sociais que permitam às sociedades da África construir modelos políticos e institucionais que crêem e retenham as capacidades existentes, em um contexto de crescente urbanização, o que deve estar relacionado à interpretação que se faça da utilidade ou não que possam ter tais modelos para a construção de um futuro (idem, 1997, p. 55).
Ali Mazrui, por sua vez, discute o dilema da modernização, formulando o problema da seguinte forma: pode uma sociedade não-ocidental assumir a herança de conhecimento e modernidade sem cometer suicídio cultural? Estariam ainda os africanos enfeitiçados pela pergunta sobre a maneira pela qual uma sociedade pode se modernizar sem se ocidentalizar? A tecnologia moderna seria uma arma de genocídio cultural na África e na Ásia? (Mazrui, 2001, p. 69.) Para avançar em direção a uma resposta, Mazrui inspira-se nos casos do Japão e da Turquia. Os japoneses estavam persuadidos de que era possível embarcar em uma modernização militar e econômica sem assumir a ocidentalização cultural. De seu lado, Kemal Ataturk estava mais inclinado a identificar modernização com ocidentalização do que os japoneses da reforma Meiji. A pergunta é, qual das opções pode ser válida para a África? (idem, 2001, p. 71.) De muitas maneiras pode-se observar que na África se produziu a ocidentalização sem a modernização, e nisso foi muito importante a presença dos idiomas europeus entre a elite, gerando processos de aculturação. O importante é ir ao cerne da modernização e, principalmente, não cair naqueles elementos que a acompanharam no caso ocidental, como a urbanização, a industrialização ou a secularização. Para realizar essa distinção mais nitidamente, Mazrui define modernização como “mudança de direção que é compatível com o estado presente do conhecimento e que faz jus às potencialidades do ser humano, tanto como um ser social quanto como um ser inovador” (idem, 2001, p. 74). Essa definição é articulada com três características da modernização: a compatível com a ciência e o know how; a expansão dos horizontes do clã à aldeia global; e a aceitação da inovação ou da busca pelo melhor que as coisas podem oferecer (idem, 2001, p. 74-5). Para gerar a modernização na África, um primeiro elemento não é a ocidentalização, mas, pelo contrário, a indigenização, no sentido de localizar recursos, pessoal e controle efetivo. Ou seja, em vez de pensar como europeus, pensar como africanos, buscando tudo que seja utilizável dos próprios. O segundo é o esforço domesticador, fazendo o estrangeiro mais adequado às necessidades locais. O terceiro é a diversificação cultural, não se focalizando unicamente no Ocidente, mas também nas outras grandes culturas. O quarto é a interpenetração horizontal entre as sociedades menos privilegiadas. Por fim, a quinta estratégia é a contrapenetração em direção ao centro em defesa dos próprios interesses (idem, 2001, p. 79-81). Definitivamente, segundo Mazrui, é preciso não confundir a força dos membros com a capacidade da alma ou da cultura. Os membros podem ser fortalecidos, mas a alma deve permanecer leal a si mesma (idem, 2001, p. 84).
Samir Amin, em Os Desafios da Mundialização, volta-se especificamente para o conceito de “mundialização”, apontando tanto para as origens do processo como para as mutações que conduziram às formas pelas quais se apresentam tal fenômeno no final do século XX. Em relação ao seu trabalho, dedica-se, em boa parte, a explicar o que chama de “a catástrofe econômica da África” (Amin, 1997, p. 225) e as estratégias de superação ou “estratégias de libertação” (p. 241), questão que vê ligada a uma “transição para o socialismo” (p. 267).
O capitalismo realmente existente não conseguiu, para Amin, dar forma a um modo de produção capitalista mundial, pois isso suporia um mercado integrado tridimensionalmente, de mercadorias, capital e trabalho. Sua expansão é nada mais que bidimensional, integrando pouco a pouco os intercâmbios de produtos com a circulação de capital, enquanto o mercado de trabalho fica compartimentado. Isso gera uma inevitável polarização (idem, 1997, p. 65). “A polarização imanente ao capitalismo mundial é ignorada deliberadamente pela ideologia liberal”, diz Amin, “o que tira qualquer sentido da dita ideologia.” Com efeito, argumenta, a integração ao sistema mundial “cria uma contradição insuperável, no marco da expansão do capital”, a ponto de tornar ilusória qualquer tentativa das periferias, pelo menos três quartos da humanidade, de chegar ao centro (idem, 1997, p. 90).
Na verdade, a “mundialização através do mercado” é uma “utopia reacionária”, contra a qual se deve desenvolver, na teoria e na prática, a alternativa de um projeto humanista de mundialização que se inscreva numa perspectiva socialista (idem, 1997, p. 100). Essa consideração é particularmente relevante quando ele se refere ao Quarto Mundo, que é aquele que ficou marginalizado e ao que corresponde a África em seu conjunto, distinguindo-o do Terceiro, que é de industrialização recente e competitivo (idem, 1997, p. 225). A África involuiu, corroendo inclusive o que adquiriu desde a independência, nos âmbitos da educação, saúde e administração, alimentando, em conseqüência, as explosões sociais (idem, 1997, p. 239).
O capitalismo deve ser superado, escreve Amin, pois, se não for assim, se corre o risco de se transformar no fim da história e do planeta, pela sua destruição (idem, 1997, p. 245). Para avançar na transição para o socialismo, deve-se definir uma estratégia de luta popular que parta da análise das contradições do capitalismo em cada fase particular, e tal estratégia consiste, antes de tudo, “em combater a alienação econômica, o desperdício de recursos e a polarização mundial” (idem, 1997, p. 261). Amin formula quatro desafios que devem permitir o avanço em direção ao socialismo para combatê-los
1) o desafio do mercado, definindo os objetivos e os meios que permitam enquadrá-lo, colocando-o a serviço de uma reprodução social que assegure o progresso social;
2) o desafio da economia-mundo, que consiste em obrigar o sistema mundial a se ajustar às exigências do desenvolvimento africano;
3) o desafio da democracia, que consiste em defender uma concepção progressista dos direitos que defina com precisão as regras do mercado; e
4) o desafio do pluralismo nacional e cultural, que consiste em reorganizar uma coexistência e uma interação comunitária que se defina da maneira mais diversa, no marco do maior espaço político possível (idem, 1997, p. 261ss).



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Este espaço busca ser um lugar de interação com contribuições em temas relacionados às Culturas Afroameríndias, suas diversas manifestações e contextos. Nos campos de exposição, apresento em forma de reflexões alguns textos sociais, históricos, políticos, teológico-religiosos e educativos. Também o universo das artes e literaturas são outras referências, leituras e aprofundamentos, conforme este processo de interlocução dialógica em construção.
Agradeço-lhe pelo interesse em reconhecimento e atenção ao nosso trabalho!

Atenciosamente,
Reinaldo.

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