Num primeiro contato com a África, e mesmo a partir da leitura de numerosas obras etnológicas, tem-se a impressão de que os africanos estavam imersos e, como que afogados no tempo mítico, vasto oceano sem margens nem marcos, enquanto os outros povos percorriam a avenida da história, imenso eixo balizado pelas etapas do progresso. De fato, o mito, representação fantástica do passado, em geral domina o pensamento dos africanos na sua concepção do desenrolar da vida dos povos. Isso a tal ponto que, às vezes, a escolha e o sentido dos acontecimentos reais deviam obedecer a um “modelo” mítico que predeterminava até os gestos mais prosaicos do soberano ou do povo. Sob forma de “costumes” vindos de tempos imemoriais, o mito governava a História, encarregando-se, por outro lado, de justifica-la. Num tal contexto, aparecem duas características surpreendentes do pensamento histórico: sua intemporalidade e sua dimensão essencialmente social.
Nesta situação o tempo não é a duração capaz de dar ritmo a um destino individual; é o ritmo respiratório da coletividade. Não se trata de um rio que corre num sentido único a partir de uma fonte conhecida até uma foz conhecida. Nos países tecnicamente desenvolvidos, os próprios cristãos estabelecem uma nítida demarcação entre “o fim dos tempos” e a eternidade. Isto talvez porque o Evangelho opõe nitidamente este mundo transitório ao mundo futuro, mas também porque, por esta visão distorcida e por outras razões, o tempo humano é praticamente laicizado. Ora, em geral o tempo africano tradicional engloba e integra a eternidade em todos os sentidos. As gerações passadas não estão perdidas para o tempo presente. À sua maneira, elas permanecem sempre contemporâneas e tão influentes, se não mais, quanto o eram durante a época em que viviam.
Assim sendo, a causalidade atua em todas as direções: o passado sobre o presente e o presente sobre o futuro, não apenas pela interpretação dos fatos e o peso dos acontecimentos passados, mas por uma irrupção direta que pode se exercer em todos os sentidos. Quando o imperador do Mali, Kankou Moussa (1312-1332), enviou um embaixador ao rei do Yatenga para pedir-lhe que se convertesse ao islamismo, o chefe Mossi respondeu que antes de tomar qualquer decisão ele precisava consultar seus ancestrais. Percebe-se aqui como o passado, através do culto, está diretamente ligado ao presente, constituindo-se os ancestrais agentes diretos e privilegiados dos negócios que ocorrem séculos depois deles. Da mesma forma, na corte de numerosos reis, funcionários intérpretes de sonhos exerciam um peso considerável sobre a ação política projetada. Esses exegetas do sonho eram, em suma, ministros do futuro. Cita-se o caso do rei ruandês Mazimpaka Yuhi III (fim do século XVII) que viu em sonho homens de tez clara vindos do leste. Armou-se então de arcos e flechas mas, antes de lançar as flechas contra eles, guarneceu-as com bananas maduras. A interpretação desta atitude ambígua, ao mesmo tempo agressiva e acolhedora, introduziu uma imagem privilegiada na consciência coletiva dos ruandeses e talvez contribua para explicar a atitude pouco combativa desse povo, tradicionalmente aguerrido, face às colunas alemãs do século XIX, semelhantes aos pálidos rostos avistados durante o sonho real dois séculos antes. Nesse tempo “suspenso”, a ação do presente é possível mesmo sobre o que é considerado passado mas que permanece, de fato, contemporâneo.
O sangue dos sacrifícios de hoje reconforta os ancestrais de ontem. E até agora, os africanos ainda exortam seus próximos a não negligenciarem as oferendas em nome dos parentes falecidos, pois os que nada recebem constituem a classe pobre desse mundo paralelo dos mortos e são obrigados a viver do auxílio dos privilegiados, que são objeto de generosos “sacrifícios” feitos em seu nome. De uma forma ainda mais profunda, certas cosmogonias atribuem a um tempo mítico os progressos obtidos num tempo histórico, que não sendo recebido como tal por cada indivíduo, é substituído pela memória histórica do grupo. E o caso da lenda Gikuyu que explica o advento da técnica de fundição do ferro. Mogai (Deus) havia distribuído os animais entre os homens e as mulheres. Mas estas foram tão cruéis com seus animais que eles escaparam e tornaram-se selvagens. Os homens então intercederam junto a Mogai em favor de suas mulheres, dizendo: “Em tua honra, nós queremos sacrificar um carneiro; mas não pretendemos faze-lo com uma faca de madeira, para não incorrer nos mesmos riscos que nossas mulheres”. Mogai felicitou-os por sua sabedoria e, para dota-los de armas mais eficazes, ensinou-lhes a receita da fundição do ferro. Essa concepção mítica e coletiva era tal que o tempo tornava-se um atributo da soberania dos líderes. O rei Shilluk era o depositário mortal de um poder imortal, já que totalizava em si próprio o tempo mítico (encarnando o herói fundador) e o tempo social considerado como fonte da vitalidade do grupo.
Do mesmo modo, entre os Bafulero (Zaire oriental), os Bunyoro (Uganda) e os Mossi (Alto Volta), o chefe é o sustentáculo do tempo coletivo: “O Mwami está presente: o povo vive. O Mwami está ausente: o povo morre”. A morte do rei constitui uma ruptura do tempo que paralisa as atividades, a ordem social, toda expressão de vida, desde o riso até a agricultura e a união sexual dos animais e das pessoas. O interregno constitui um parênteses no tempo. Apenas o advento de um novo rei recria o tempo social que se reanima novamente. Tudo é onipresente nesse tempo intemporal do pensamento animista, no qual a parte representa e pode significar o todo; como os cabelos e unhas que se impede de caírem nas mãos dos inimigos por medo de que estes tenham poder sobre a pessoa.
De fato, é preciso atingir uma concepção geral do mundo para entender a visão e o significado profundo do tempo entre os africanos. Veremos então que no pensamento tradicional, o tempo perceptível pelos sentidos não passa de um aspecto de um outro tempo vivido por outras dimensões da pessoa. Quando vem a noite e o homem se estende sobre sua esteira ou sua cama para dormir, é o momento que seu duplo escolhe para partir, para percorrer o caminho seguido pelo homem durante o dia, frequentar os lugares que ele frequentou e refazer os gestos e os trabalhos que ele realizou conscientemente durante a vida diurna.
É no curso dessas peregrinações que o duplo se choca com as forças do Bem e do Mal, com os bons gênios e com os feiticeiros devoradores de duplos ou cerko (em língua songhai e zarma). É no duplo que reside a personalidade de cada um. O songhai diz que o bya (duplo) de um homem é pesado ou leve, querendo significar que sua personalidade é forte ou frágil: os amuletos têm como finalidade proteger e reforçar o duplo. E o ideal é chegar a confundir-se com o próprio duplo, a fundir-se nele até formar uma só entidade, que ascende assim a um grau de sabedoria e de força sobre-humano. Somente o grande iniciado, o mestre (kortékonynü, zimaa) atinge esse estado em que o tempo e o espaço não constituem mais obstáculos. Era esse o caso de SI, o ancestral epônimo da dinastia: “Assustador é o pai dos SI, o pai dos trovões. Quando ele está com uma cárie, é então que mastiga cascalhos; quando está com conjuntivite, é nesse momento que, resplandecente, acende o fogo. Com seus grandes passos, ele percorre a terra. Ele está em toda parte e em parte alguma”.
O tempo social, a história, vivida assim pelo grupo, acumula um poder que é a maior parte do tempo simbolizado e concretizado num objeto transmitido pelo patriarca, chefe do clã ou rei ao seu sucessor. Pode tratar-se de uma bola de ouro conservada num tobal (tambor de guerra) associado a elementos extraídos do corpo do leão, do elefante ou da pantera. Esse objeto pode estar fechado numa caixa ou numa arca, como as insígnias reais (tibo) do rei mossi… Entre os Songhai-Zarma, é uma haste de ferro afiada numa das extremidades. Já entre os Sorko do antigo Império de Gao, é um ídolo em forma de um grande peixe provido de uma argola na boca. Entre os ferreiros, é uma forja mítica que às vezes, durante a noite, torna-se rubra para expressar sua cólera. A transferência desses objetos é que constituía a devolução jurídica do poder. O caso mais interessante é o dos Sonianke, descendentes de Sonni Ali, que possuem correntes de ouro, prata ou cobre, cada elo das quais representando um ancestral, e o conjunto simbolizando a descendência dinástica até Sonni, o Grande. No decorrer de cerimônias mágicas, estas correntes magníficas são regurgitadas diante de um público embasbacado. No momento de morrer, o patriarca sonianke regurgita a corrente pela última vez, fazendo com que o escolhido para seu sucessor engula-a pela outra extremidade. Ele morre logo após ter passado sua corrente àquele que deve substitui-lo. Esse testamento vivo ilustra com eloquência a força da concepção africana do tempo mítico e do tempo social. Poder-se-ia pensar que uma tal visão do processo histórico seria estática e estéril, na medida em que, ao colocar a perfeição do arquétipo no passado, na origem dos tempos, parece indicar como ideal para o conjunto das gerações a repetição estereotipada dos gestos e da gesta do ancestral. O mito não seria, assim, o motor de uma história imóvel? Ficará claro mais adiante que não podemos nos ater unicamente a esse enfoque do pensamento histórico entre os africanos.
Estatueta em bronze representando o poder dinástico dos Songhai (Tera Níger), Col. A. Salifou.
Por outro lado, o enfoque mítico – é preciso reconhece-lo – está na origem da história de todos os povos. Toda história é originalmente uma história sagrada. Do mesmo modo, esse enfoque acompanha o desenvolvimento histórico, reaparecendo de tempos em tempos sob formas maravilhosas ou monstruosas. Entre elas está o mito nacionalista, que faz com que um determinado chefe de Estado contemporâneo se dirija ao seu país como a uma pessoa viva, e o mito da raça, sob o regime nazista, concretizado por rituais cujas origens remontam a um passado longínquo, que condenou milhões de pessoas ao holocausto.
*Fonte: História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África / editado por Joseph Ki‑Zerbo. – 2.ed. rev., Brasília : UNESCO, 2010, pp 24-28.
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