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Por Marcelo Barros * |
O Brasil é um dos países com maior número de negros do mundo. Pesquisa realizada pelo instituto Data Folha, revela que 59% da população brasileira é formada por afrodescendentes e até hoje a população negra continua, em grande parte, marginalizada e vítima da pobreza e injustiça. Dos 22 milhões de brasileiros que vivem na extrema pobreza, 70% são negros.
Em memória do Zumbi dos Palmares, líder da luta dos escravos pela libertação, assassinado no dia 20 de novembro de 1697, cada ano, o Brasil comemora a Semana de União e Consciência Negra que reúne milhares de pessoas que participam de fóruns, debates, eventos artísticos e vigílias religiosas.
A Constituição Federal garante aos remanescentes de quilombos e grupos negros o direito às suas terras ancestrais, mas as pessoas só se fixam na terra e na comunidade se sua cultura é respeitada e suas tradições podem se expressar livremente. É urgente que, nos meios de comunicação de massa, a riqueza da multiculturalidade brasileira nos ajude a oferecer alternativas válidas à norte-americanização de nossa juventude. Desde que siga os critérios de igualdade de competência com outros concorrentes, a decisão de garantir cotas para participação da parcela negra da sociedade nas universidades é apropriada e justa, até que se garanta uma verdadeira igualdade de condições para todos os brasileiros.
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Casas feitas de Barro e Taipas em Comunidades Quilombolas no Norte de MG. |
As pesquisas revelam que a maior parte da população afro-descendente é religiosa e se distribui por inúmeros caminhos espirituais, expressões do atual pluralismo religioso, graça deste início de século. Até pouco mais de cem anos, os escravos, seqüestrados da África, e os seus filhos e filhas, eram batizados à força e obrigados a pertencer à Igreja Católica. Por isso, eles se viram forçados a pertencer oficialmente à Igreja e afetivamente participar de seus cultos ancestrais. Só nos últimos 50 anos, as religiões afro-descendentes foram aceitas e reconhecidas como legítimas, embora até hoje ainda continuem a ser vítimas de muitos preconceitos.
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Expressão de religiosidade associada ao contexto das irmandades. |
Infelizmente, tanto na Igreja Católica, como em Igrejas evangélicas, o modo de viver e de expressar a fé continua ainda preso ao modelo cultural predominantemente europeu. Quase sempre, confunde-se a expressão cultural da fé com o próprio núcleo da fé. Poucas Igrejas têm se aberto a que cristãos negros possam viver a espiritualidade cristã, sem precisar entrar em um processo de embranquecimento cultural. O resultado é que as religiões de matriz africana têm sido quase o único espaço no qual a população religiosa negra pode expressar livremente o seu modo de viver a intimidade com o Divino.Pastores e grupos cristãos que fazem leitura fundamentalista e não histórica da Bíblia aplicam ao Candomblé e Umbanda as polêmicas bíblicas contra os cultos cananeus. A partir desta correspondência forçada, condenam as religiões afrodescendentes como idolátricas e até demoníacas. Poucas Igrejas conseguiram ver a injustiça que existe por trás disso e reconhecem a validade dos cultos afro, embora rejeitem o sincretismo de quem quer ser de Igreja e, ao mesmo tempo, de Candomblé ou Umbanda.
Muitos preconceitos contra as religiões negras vêm do desconhecimento e da confusão entre diversos cultos que nada têm a ver um com o outro. Muita gente não sabe, por exemplo, que no Candomblé, não se fazem despachos contra alguém e nenhum caso de violência ou sacrifícios humanos está ligado a alguma comunidade da religião dos Orixás.
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Orixás |
O Candomblé é uma religião monoteísta que respeita a transcendência divina, relacionando-se com Deus através de suas manifestações no universo, espíritos ou energias que, em culturas antigas, chamavam-se de anjos e que as comunidades afro-descendentes associam com antepassados. Através desses Orixás, os fiéis vivem a aliança com o Deus Único.
A espiritualidade negra vê o universo como organismo vivo, ao qual pertencemos e busca uma integração com o Axé, energia divina presente em todos os seres. Integra cada pessoa na sua história ligando-a com seus ancestrais e ajuda-a a viver em comunidade. Como filho ou filha de santo, cada um convive melhor com suas particularidades de temperamento e história. Jesus disse que o Espírito sopra onde quer. Ele atua no mundo todo, inspirando amorosamente todas as pessoas e comunidades que buscam a Deus. É preciso celebrar a Semana de União e Consciência Negra na sociedade e nas Igrejas. Que se valorize um modo negro de ser cristão. Nos Estados Unidos, Martin-Luther King, pastor batista negro, deu sua vida pela superação do racismo e de todas as injustiças dele decorrentes. No Brasil as Igrejas também estimulem os cristãos a reconhecer a palavra que Deus nos diz, hoje, através da negritude.
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Jesus no 'Horto das Oliveiras' orando (Cf. Evangelho de Lucas 22,39-46). |
* Marcelo Barros é monge beneditino, escritor/autor de vários livros dentre os quais: "O Espírito vem pelas Águas", Loyola, 2003.
Fonte do artigo: http://www.adital.com.br/site/noticia2.asp?lang=PT&cod=10022
Recentemente o Marcelo Barros escreveu um comentário interessante que complementa, a meu ver, estas reflexões - enquanto idéias práticas, do seguinte modo:
ResponderExcluir"É claro que para ter êxito, um projeto não tem somente claro o objetivo. Deve definir um método ou caminho para isso. No passado, partidos e grupos que queriam mudar o mundo acreditavam que poderiam conseguir isso pela força das armas. Hoje, aumenta o número de pessoas sérias que estão convictas: só uma educação social e profunda da sociedade consegue mudá-la verdadeira e profundamente. No início do século XIX, na Venezuela, Simon Bolívar era um jovem de família nobre e rica que fez um voto a Deus: não descansaria enquanto não promovesse uma sociedade de pessoas, unidas em uma só pátria grande e libertada do colonialismo dos impérios europeus. Ele era discípulo de um grande educador (Simon Rodrigues) e começou implantando escolas e institutos de alfabetização para índios e negros. Como o império espanhol não aceitou perder suas colônias na América, ele teve de reunir um exército e lutar. Em poucos anos, proclamou a independência de seis países da América do Sul e em cada um deles estabeleceu governos locais. Não se tornou presidente de nenhum. Nasceu rico e morreu pobre. Mas, legou para o futuro a herança do que então passou a se chamar de bolivarianismo, o projeto de países livres, abertos às culturas indígenas e negras e nos quais a terra seja repartida de forma justa por todos os habitantes e os governos estejam a serviço do povo mais empobrecido. Hoje, este projeto encanta de novo multidões em vários países irmãos do nosso continente. Cedo ou tarde, terá uma tradução e adaptação brasileira que una índios, negros, lavradores e povo das periferias em um projeto libertador e pacífico de mais vida para todos."