terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A Elaboração e a Crítica do Discurso sobre a África

Um tema que abrange toda a história do pensamento africano, de meados do século XIX em diante, é a discussão, a crítica e a reelaboração do discurso sobre a África, em dois sentidos: o elaborado fora e o elaborado dentro da região. No final do século XX, deu-se novo impulso a essa tarefa e nela estão comprometidos dois dos mais importantes autores da época: Valentin Mudimbe e Kwame Anthony Appiah. Esse desafio teórico se articula a diversos temas que se encontram envolvidos no discurso sobre a África, como, por exemplo, o da história e da cultura da região, o do apartheid, o da globalização, entre outros.

Valentin Yves Mudimbe
Valentin Mudimbe se propõe estudar a “gnosis africana” (esse discurso científico e ideológico sobre a África) inspirando-se nos princípios teóricos de seus dois principais mentores: Michel Foucault e Claude Lévi-Strauss. Mudimbe realiza uma arqueologia de tais discursos sobre a África como um sistema de conhecimento no qual as questões filosóficas maiores aparecem, em primeiro lugar, relativas à forma, ao conteúdo e ao estilo da africanização do conhecimento. Dito de outra maneira, ele trata, em seu livro A Invenção da África, dos processos de transformação dos tipos de gnosis sobre a África (Mudimbe, 1988, p. x).
Passando em revista os discursos elaborados por antropólogos, missionários e teólogos, filósofos e ensaístas, entre outros agentes, sejam ou não africanos, Mudimbe discute as semelhanças que apresentam, assim como as conclusões a que chegam, tentando mostrar como tais materiais vão constituindo sedimentos que configuram o que chama de “a invenção da África”. Por isso, entre tantas possibilidades, o texto pode ser lido como uma história das idéias de e sobre a região.

Para o caso do discurso dos antropólogos, enquanto um discurso sobre a alteridade, e paradigmaticamente em relação a outros discursos, este originalmente se realiza como um discurso colonial cujo etnocentrismo visa produzir um conhecimento que permita explorar as dependências. Tal antropologia, que funciona com categorias binárias, em que as virtudes aparecem do lado europeu e suas ausências, do africano (idem, 1988, p. 64), vai cedendo espaço a outro discurso cuja data de ruptura são os anos 1920. Nesse novo discurso, convergem antropólogos profissionais, como V. Malinowski (idem, 1988, p. 72), e autores africanos que vão promover os movimentos de independência (idem, 1988, p. 78).
No caso de missionários e teólogos, o primeiro discurso é aquele que os revela como expressões de interesses religiosos e da política imperial (idem, 1988, p. 44). Tal discurso pode ser resumido pela idéia de que é necessário regenerar, no sentido de “salvar” a África, questão que dá por subentendida a idéia da superioridade do sistema da cristandade (idem, 1988, p. 50-1). A partir de 1950, Mudimbe chama a atenção para o aparecimento, nesse espaço, de um novo discurso que se articula com base na idéia de “indigenização” dos aspectos externos das práticas religiosas, como rezas e música, para, posteriormente, a partir de novas premissas, estabelecer uma perspectiva diferente como a teologia da “encarnação” (idem, 1988, p. 56 e 59).
No caso da filosofia, essas evoluções se expressam de maneira similar a partir da noção de “filosofia primitiva” (idem, 1988, p. 135), passando pela etnofilosofia (p. 145) até a filosofia africana. A historiografia colonial, por seu lado, sofreu um constante processo de desconstrução que foi modificando seus pressupostos (idem, 1988, p. 167). Se de algum modo se pode resumir, Mudimbe sustenta que até os anos 1920 os estudos sociais sobre a África consistiam na racionalidade de um campo epistemológico e na expressão sociopolítica da conquista. O estudo do outro era reprimido para sustentar as teorias do eu. Esses procedimentos eram ferramentas para reforçar o poder e seus objetivos políticos de redução, seja como “assimilação” ou “governo direto” (idem, 1988, p. 83).
Esse discurso é questionado, nos meios africanos, com as idéias da negritude, que vem a ser um modo oposto de falar da “diferença” (idem, 1988, p. 87). Assim, pode-se observar uma mudança gradual em alguns domínios representativos da antropologia, da história e do pensamento político (p. 89), mudança gradual que tem seu ápice nos movimentos independentistas. Contudo, esse ápice é uno, mas não único e irrepetível, pois adverte Mudimbe que, nos anos 1980, quando está escrevendo, as tendências desses anos vão revivendo as crises dos anos 1950, posto que, para criar mitos que dêem sentido às suas esperanças de melhora, a África parece ficar em dúvida entre duas principais fontes: o marxismo e o tradicionalismo (idem, 1988, p. 96).

Kwame Anthony Appiah
Continuando com uma empreitada similar à de Mudimbe, Kwame Appiah, em Na Casa de meu Pai. África na Filosofia da Cultura, ocupa-se de desmontar algumas das idéias arraigadas no discurso africano-africanista, tentando provar como tal discurso serviu à subordinação do continente, sem ter sido necessariamente proposto.
Se no século XIX não havia algo que pudesse ser chamado de “identidade africana”, pois tal identidade era, no final do século XX, ainda uma coisa nova e produto de uma história recente (Appiah, 1997, p. 243), isso não quer dizer que autores importantes como A. Crummell e E. Blyden não estivessem já, em 1860 ou 1870, buscando as especificidades ou “diferenças” da região e articulando um discurso sobre elas, principalmente com base na noção de raça (idem, 1997, p. 19ss). Appiah prossegue estudando a construção do discurso da diferença através do pensamento pan-africanista, da teoria literária ou da crítica cultural e da etnofilosofia, com o objetivo de assegurar as bases para superar os discursos do eu, em coerência com as idéias de Hountondji e Wiredu, mas crítico e tendente ao que chama de “identidade pan-africana repensada” (idem, 1997, p. 153-4).

Appiah acredita que essas concepções da identidade africana associada à noção de “raça”, à “metafísica africana” ou ao “egipcianismo” são formas de conceber a identidade que não só denotam inferioridades como contribuem para inferiorizar os africanos. A primeira idéia, diz, inibiria os africanos de lidar com os conflitos inter-raciais; a segunda, de utilizar tecnologias ocidentais, como remédios, que evitam mortes; e a terceira, ao associar o africano com valores antigos, inibiria a capacidade de enfrentar os problemas do presente (idem, 1997, p. 245). Ele acredita que é necessário mostrar não apenas que a raça e a história nacional são falsidades, mas também que, na melhor das hipóteses, são falsidades inúteis e, na pior, são perigosas. Na realidade, afirma, outro conjunto de relatos sobre a África permitirá a construção de identidades através das quais os africanos possam fazer alianças mais produtivas no futuro (idem, 1997, p. 244).
Uma discussão tão importante como a que é realizada em torno da globalização está intimamente ligada às maneiras como se construiu e se deseja construir o discurso sobre a região.

Um comentário:

Este espaço busca ser um lugar de interação com contribuições em temas relacionados às Culturas Afroameríndias, suas diversas manifestações e contextos. Nos campos de exposição, apresento em forma de reflexões alguns textos sociais, históricos, políticos, teológico-religiosos e educativos. Também o universo das artes e literaturas são outras referências, leituras e aprofundamentos, conforme este processo de interlocução dialógica em construção.
Agradeço-lhe pelo interesse em reconhecimento e atenção ao nosso trabalho!

Atenciosamente,
Reinaldo.

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