As leituras sobre os elementos de uma teologia Afro-brasileira, busca em comum com as expressões religiosas de ascendência africana a ancestralidade africana, traduzida em Religião e Experiências de fé no sentido de “situar” o religioso e o teológico.
Pela necessidade que sentimos de abordar alguns aspectos da “teologia do candomblé e da Umbanda”, consideramos ser fundamental essa afirmação da identidade religiosa e cultural nas experiências religiosas afro-brasileiras. Evidente notar que cada expressão religiosa, procura corresponder culturalmente, religiosamente àquilo que é específico com a expressão de uma crença, na relação com outro tipo de mentalidade. Por isso, no âmbito religioso afro, é difícil tratar como “certo ou errado”, em nossa mentalidade ocidental. Antes, uma relativização da verdade e do papel da racionalidade é necessária, por exemplo:
O povo do Candomblé não raciocina em termos de lógica propriamente, de racionalidade, mas em símbolos. O instrumento de pensar é o instrumento simbólico, que aliás é de uma riqueza maior do que o conceito friamente racional. É por isso que para eles não há nenhuma incongruência em ser católico – muitos até comungam, aparecem aqui na minha missa – e ao mesmo tempo praticam os ritos ancestrais. Porque na sua mente não há incompatibilidade.*
*(SANCHIS, 1999, p. 68.)
Como mencionamos o Candomblé, podemos também referir a Umbanda, traçando algumas questões essenciais para melhor caracteriza-la, para o crente-religioso, tal como fizemos no Candomblé explicitando elementos de suas experiências que configuram-se primordiais para afirmação identitária e fenômeno para se “fazer teologia”.
Entraríamos, portanto, no cenário Umbandista que têm um modo peculiar para expressar os cultos aos Santos e Orixás. Por exemplo, no terreiro cultua-se Ogum como a São Jorge, Oxóssi como a São Sebastião, conhece-se como Oxalá ou Oxaguiã a Jesus. Existem grupos que hoje assumem o culto aos Orixás independentemente dos Santos, e outros casos que mesmo reconhecendo-se como cristãos autênticos, vivenciam suas pertenças nos cultos afro sem sentir problema de continuarem como católicos e candomblecistas ou umbandistas. Fato é que em meio ao povo afro-religioso esta “dupla pertença” constitui-se como uma síntese das suas experiências pessoais e comunitárias no campo da fé. Neste aspecto, os índios não estavam separados, mesmo ‘reduzidos’ em aldeias-comunidades, continuaram ‘sintetizando’ a fé, naturalmente, sem renunciarem as experiências no cristianismo, nos rituais de pajelança e nas crenças em divindades indígenas.
Muitos negros, ao receberem o batismo compulsoriamente, mantiveram a fé cristã e a prática católica, por força da imposição e do condicionamento. Outros, no entanto, embora o tenham recebido em igual situação, entenderam que não havia oposição entre as suas tradições religiosas de origem e os elementos fundamentais da fé cristã.*
*(SILVA, Antônio A. APN´s: presença negra na Igreja, p. 12.)
Essa análise vem de encontro com o caso dos Agentes de Pastoral Negros (APN´s), como menciona Padre Toninho, situando essa discussão dentro do “estatuto soteriológico”.
Sem abandonar perspectivas teológicas cristãs, interessante o resgate de Pierre Sanchis ao mencionar François de l´Espinay, um padre católico que segundo relatado diz ter vivido seus últimos anos numa dupla pertença conscientemente escolhida e o fato de denominar-se como “ministro de Xangô”. Eis sua confissão, em tom de testamento:
Você entende, Jesus Cristo histórico ainda é muito branco para os negros. Desde há milênios Deus lhes falou de modo diferente, nos seus corpos e na natureza, pelos espíritos dos seus ancestrais. Como foi possível que nós, a Igreja, tenhamos conseguido riscar tudo isso durante 400 anos, com a boa consciência de possuir a verdade? Temos que ser prudentes quando falamos dessas coisas na Igreja. Mas na minha alma e consciência adquiri agora a certeza de que Deus é maior do que nós imaginamos. Utiliza-se, para se revelar a seu povo, mediações outras que aquelas que conhecemos.*
* (SANCHIS 1999, p. 68.)
Sob este depoimento, cremos não ser exagerado afirmar que numa relação de diálogo, as religiões de ascendência africana contribui no entendimento do pluralismo ético-religioso, na experiência de fé, como afirma o presidente da UNIAFRO, Apolônio Antônio da Silva:
A Umbanda possui várias características, há quem diga até mesmo que são várias as umbandas. (...) A umbanda é uma união de várias teorias e de várias religiões. Nela você encontra aspectos do espiritismo kardecista, do budismo, do catolicismo, e por isso a umbanda pode contribuir muito para as outras religiões (...). Ela permite que aspectos de outras religiões e de outras culturas cheguem a determinadas comunidades passadas de uma forma mais adequada a essa realidade local, sem aquela coisa de teorias muito complicadas, mas de uma maneira mais simples.*
*(Parte do Relato de Apolônio – líder religioso da Umbanda, em Florianópolis-SC, para estudo de caso, em conversa a 04 de maio de 2009, às 13:15 minutos).
A partir da compreensão teológica sobre Deus, na religião da Umbanda, em nosso estudo, salientamos uma consideração importante para tentar entender como se expressa a religiosidade de quem pratica esta religião:
Tudo o que se faz hoje na religião da umbanda é pensando em Deus, como: o cuidado com a natureza, a evolução do ser humano. E a experiência de fé que é dado está naquilo que a gente vê – a luta que os umbandistas tem travado o tempo todo para manter essa religião, essa cultura, essa maneira de ver a divindade ser respeitada, principalmente pelas outras religiões. Este, ao meu ver, é o maior depoimento de fé que tem a religião da Umbanda e a maneira que as pessoas que a praticam com fé em Deus.*
*(Ainda segue outra parte do relato de Apolônio)
Embora as teologias (afro-americana e índia) tenham suas temáticas específicas, por razões óbvias, é fundamental que haja uma interação, uma implicação com a teologia convencional utilizada pelo magistério das igrejas, elaborada pelos teólogos e ensinada nos institutos de teologia. Bem entendida, esta relação poderá ser reciprocamente proveitosa.
Na ótica de uma interação entre as teologias, a experiência emergente nas comunidades negras questionam a formalidade e o alcance das áreas teológicas desde a reflexão bíblica até a pastoral. E ainda, o modo como biblistas latino-americanos aprofundam suas reflexões é de grande proveito para a comunidade afro. Sobretudo, quando se pode reconhecer na Bíblia a existência, participação ativa e testemunhal do povo afro na história da salvação. Uma hermenêutica bíblica que assume mitos próprios dos povos afro-americanos, ensinamentos, provérbios, histórias orais, percebe desde aí uma original manifestação de Deus: desde as propostas humanitárias, os sofrimentos, resistências, diásporas e cativeiros.
Parece-nos que seja “por-aí” onde podemos começar desenvolver pela teologia um intenso processo de afirmação da identidade afro-ameríndia. Embora nos esforçamos, devemos reconhecer os limites deste estudo que busca apontar para realidades emergentes na vida concreta, da existência humana e da vivência da fé em todos os contextos aqui refletidos.
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Este espaço busca ser um lugar de interação com contribuições em temas relacionados às Culturas Afroameríndias, suas diversas manifestações e contextos. Nos campos de exposição, apresento em forma de reflexões alguns textos sociais, históricos, políticos, teológico-religiosos e educativos. Também o universo das artes e literaturas são outras referências, leituras e aprofundamentos, conforme este processo de interlocução dialógica em construção.
Agradeço-lhe pelo interesse em reconhecimento e atenção ao nosso trabalho!
Atenciosamente,
Reinaldo.