terça-feira, 24 de agosto de 2010

TEOLOGIA AFRO LATINO-AMERICANA : e a Pastoral

Relevância do discurso sobre a Teologia Afro-latinoamericana

Na obra Etíope Resgatado... o teólogo crítico apresenta no ponto II a questão pertinente ao nosso esquema de reflexão acerca do significado da questão Afro para a teologia em nível de fundamental relevância:

Na antiguidade Greco-romana, os egípcios alcunharam seus vizinhos da região ao sul de Siene, atualmente Assuã (Ez 29,10), de etíopes, o que significa “caras queimadas”. Os autores da Bíblia hebraica conhecem esta região como cuch. Ao falar de cuch, Isaías anunciou que dali viria um povo de “pele bronzeada” para trazer dons a Javé e adorar o seu nome no monte Sião (Is 18,7). O batismo do etíope, por Filipe, narrado nos Atos dos Apóstolos (8,26ss), tem este fundo literário e teológico. O etíope dos Atos pede explicações de um texto de Isaías que fala do Servo de Javé. No tempo messiânico, o povo dos confins do mundo encontra o significado do Servo de Javé, não na servidão, mas no batismo que lhe permite “cheio de alegria continuar seu caminho” (At 8,39).

Na continuidade da crítica, o teólogo irá expor de modo bem característico os aspectos importantes da visão que hoje nos faz deter o olhar sobre a pertinência da reflexão afro-latinoamericana não somente na perspectiva histórico-teológica, como também na ótica da tradição Bíblica, da linguagem e, por isso, interpretação, hermenêutica, e nas questões sociais candentes, dadas as manifestações de debates acerca da “reparação” que confronta muitos esquemas já antes questionados pelo etíope no texto de Atos dos Apóstolos. Abaixo, elencamos alguns pontos para reflexão:

• Na tradução da Bíblia hebraica pelos Setenta (LXX) ao grego falado em Alexandria, no terceiro século AC [...] e na Vulgata, [...], cuch geralmente é traduzido por Aethiopia.

• Na época grego-romana, a alcunha etíope (“cara queimada”) se tornou designação genérica dos habitantes desde o sul do Egito, passando por toda África até aos países em torno do oceano Índico e à Índia. Mais tarde, etíope tornou-se nome genérico do negro.

• Etíope, portanto, significava na história colonial das Américas negro africano. E negro africano nas Américas, por mais de três séculos, era sinônimo de escravo.

Já, referindo-se a obra comentada por Suess, “o paradigma jurídico do resgate articula analogicamente a ‘salvação pela compra’ de africanos, que supostamente foram por inimigos tribais condenados à morte, com a salvação de pagãos pelo cristianismo, sem estes condenados à morte eterna. Nesta leitura ideológica, a escravidão representa uma dupla redução de pena: redução de pena de morte ao trabalho forçado e redução da pena fatal do inferno, prevista na doutrina cristã da época para os pagãos, às chances escatológicas de um cristão.”

E a Pastoral de hoje?
* Reflexão e destaques a partir dos Estudos da CNBB, no Doc. 85 (PASTORAL AFRO-BRASILEIRA)

O presente texto é resultado de quatro anos de pesquisas, encontros, estudos, contribuições pessoais e de grupos que fazem acontecer a Pastoral Afro-brasileira com a assessoria do teólogo Pe. Antônio Aparecido da Silva (Pe. Toninho), do Grupo de Trabalho ligado à Secretaria da Pastoral Afro-brasileira (GTA), da CNBB, entre outros.

Primeira compreensão teológica expressa no documento é a seguinte: a consciência de que “Deus está conosco”. Uma reflexão teológica que emerge da vivência da comunidade.

Trata-se de um processo que tem suas origens nos inícios da evangelização no País. Por um lado, a atuação dos negros e negras na Igreja, ao longo de toda a história, mostra que, de fato, a ação afro-pastoral foi por eles mesmos constituída; por outro lado, a constituição da Pastoral Afro-brasileira, em nível nacional, demonstra a oportuna e inequívoca solicitude da Igreja diante da realidade e da fé da população afro-descendente. Incentivo, participação e compromisso dos pastores e dos agentes de pastoral são fundamentais para o incremento e maior difusão da Pastoral Afro-brasileira.

Para entender a pastoral afro-brasileira: um pouco de história

Resumindo o Documento 85 da CNBB - PASTORAL AFRO-BRASILEIRA – apresentamos uma análise a partir dos seguintes números que selecionamos:

1. A Pastoral Afro-brasileira surge como conseqüência de um longo processo de conscientização e militância de gerações de negros e negras, que assumem viver a sua fé eclesial, tendo como referência a realidade da população afro-descendente no continente e no País. Os novos tempos, vividos pela Igreja no período pós-conciliar, possibilitaram o surgimento da Pastoral Afro-brasileira e a participação de novos agentes de pastoral. No final da década de 1970, em plena vigência das opções propostas pela Igreja Latino-Americana, em Medellín, intensificaram-se os preparativos para a realização da Assembléia de Puebla.

2. O crescimento e a força dos Movimentos Populares, atuantes, com grande expressão naqueles tempos, foram decisivos para o crescimento do Movimento Negro na sociedade civil e nas igrejas. O Grupo União e Consciência Negra (07/09/1981) seguiu trajetória semelhante, denunciando, entretanto, a reprodução do racismo no interior das Igrejas. Negros e negras, agentes de pastoral, vão se organizando no interior das Igrejas, despertando as comunidades para “as angústias e esperanças” da população negra.

6. Hoje, a pastoral Afro-brasileira se impõe como uma necessidade, diante de novos cenários da Igreja: “A evangelização nos novos contextos exige, além da renovação das atuais estruturas pastorais e da criação de novas, que correspondam às exigências de uma nova evangelização, no ardor, novos métodos, novas expressões e, sobretudo, uma espiritualidade que torne a Igreja cada vez mais missionária” (DGAE, 106).

7. Ao mesmo tempo que a Igreja incentiva a Pastoral Afro impelindo-a para a realização dos seus objetivos, a Pastoral responde aos novos anseios da Igreja na busca de novos métodos e dinamismo.

8. É próprio da metodologia das pastorais na Igreja analisar a realidade a partir da fé e então integrar numa mesma visão as dimensões espirituais e materiais. Assim, ao contemplar a realidade afro, a Pastoral coloca em relevo as múltiplas faces da mesma realidade: econômica, política, espiritual, etc.

9. Diante das muitas iniciativas no trabalho com as comunidades negras, é preciso uma coordenação de Pastoral Afro que articule os vários serviços, seja ponto de referência e contribua para a efetivação dos objetivos da Pastoral.

Negros e negras entre os primeiros batizados

10. Os reclamos dos agentes de pastoral afro-descendentes à participação do negro e da negra na sociedade e, particularmente, na Igreja, não ocorrem sem uma histórica justificativa.

11. Não só a condição de primeiros batizados dá aos negros a força moral e espiritual de exigirem da Igreja uma ação pastoral decisiva, mas também a sua fidelidade. Mesmo que, em determinados momentos históricos, o procedimento da Igreja em relação à situação da população negra tenha sido de cumplicidade com o poder escravista estabelecido, os negros sempre devotaram à Igreja o amor à mãe.

13. O Batismo, como rompimento com o mal, como selo da filiação divina e pertença à Igreja, é uma prática ensejada pela tradição católica afro-brasileira.

Dos primórdios da evangelização aos dias de hoje

16. A Pastoral Afro-brasileira, por um lado, é um processo organizativo recente; porém, por outro lado, trata-se de uma prática historicamente antiga, se levarmos em consideração a existência das Irmandades Afro-católicas presentes na Igreja desde os inícios da Colonização. Deram-lhe santos patronos, extraídos do seu universo religioso.

19. Nas Irmandades e Congadas. Nesses espaços, os negros e as negras foram os protagonistas da sua própria evangelização. Sem dúvida, por aí passam também as origens das Comunidades de Base (CEBs) no Brasil, ou seja, uma Igreja onde leigos e leigas fazem a Igreja, assumindo os distintos ministérios.

20. As igrejas no período colonial, em sua grande maioria, foram construídas com o trabalho dos negros.

21. Além dos espaços mencionados, é necessário enfatizar a importante experiência dos Quilombos, onde parte significativa da população negra se refugiou, recuperando sua liberdade.

22. Em meio às situações adversas, padecendo até da mais longa escravidão, os homens negros e as mulheres negras mantiveram a fé recebida da Igreja e continuavam a vivê-la com grande expressão e com a originalidade própria de suas culturas (fé inculturada... liturgia e tradições culturais se complementam em exuberante louvor a Deus).

A solicitude da Igreja para com a comunidade negra

23. Impelida pelos reclamos dos agentes de pastoral, a Igreja veio, aos poucos, de encontro à população de afro-descendentes, solidarizando-se com ela nas últimas décadas. A celebração da Missa dos Quilombos, em Recife, no início dos anos 80, e a realização da Campanha da Fraternidade, em 1988, no Centenário da Abolição, foram momentos marcantes da solicitude da Igreja para com a comunidade negra. A campanha ajudou a própria Igreja, e a sociedade civil de modo geral, a perceber a dura realidade em que vive este segmento da população brasileira.

24. O texto da campanha deixou evidente que a situação tanto econômica quanto educacional da população afro-brasileira é marcada por acentuadas desigualdades. No campo da educação, por exemplo, o índice de analfabetismo na população negra é, proporcionalmente, o dobro em relação à população branca.

28. Participando da caminhada da população negra, a Igreja sente com ela que não é suficiente a elaboração do diagnóstico da realidade, mas é necessário empreender ações concretas. Depois de mais de três décadas de conscientização da Comunidade Negra e da sociedade como um todo, incluindo a esfera política, começam a surgir resultados efetivos de políticas afirmativas (Bolsas para estudantes negros e carentes, cotas de empregos...).

29. Na população pobre do País, entre as crianças na faixa etária de até seis anos, 38% são brancas, enquanto as negras somam 66% (IPEA). Indicação clara de uma tendência de alargamento do fosso racial no Brasil.

A população afro-brasileira e a vivência da fé

32. O AXÉ é a energia vital. A fonte do AXÉ está no Deus da Vida, Senhor Absoluto de toda criação.

33. A tradição cultural afro-religiosa tem na comunidade a expressão maior da sua vivência (...). Quem vive comunitariamente se salva, torna-se Ancestre; quem não vive comunitariamente se perde.

Marcantes testemunhos de fé

39. A comunidade negra vive a fé recebida no Batismo. A maioria da população brasileira afro-descendente é católica. A religiosidade popular passa pela vivência dos povos afros. São famílias consolidadas na fé.

41. A maior referência nacional da devoção marial contempla a realidade afro. Nossa Senhora Aparecida é a Negra Mariama, que surge no meio do povo sofrido, para protegê-lo e libertá-lo. O primeiro milagre, no relato do povo, foi em beneficio do negro Zacarias, quebrando-lhe as correntes da escravidão.

42. Hoje, superados os obstáculos do ingresso de negros e negras para a vida religiosa e para os seminários, são numerosas as vocações que procedem do meio dos afro-descendentes.

Resultados e tarefas da pastoral afro-brasileira

43. Olhando o cenário atual da Igreja, sobretudo nas últimas décadas, constata-se, em geral, maior consciência da realidade afro. O apoio da pastoral tem sido importante para que segmentos da população negra consigam seus objetivos, como, por exemplo, na obtenção do reconhecimento das terras remanescentes de Quilombos.

44. Uma realidade especial e inovadora é visivelmente percebida no âmbito da liturgia.

46. Não obstante os passos dados, resta muito por fazer, sobretudo no sentido de levar a maior conscientização da realidade afro nas dioceses e nos regionais.

A caminhada afro-pastoral

47. A caminhada afro-pastoral iniciou-se e se mantém, suscitando os grupos de base, ou seja, estimulando a formação de grupos paroquiais. A questão principal é dar-se conta do racismo existente e que impede a vivência plena da fraternidade proclamada e querida por Jesus.

49. Em diversas regiões do País foram organizados encontros diocesanos, estaduais e interestaduais.

50. Como resposta à Campanha da Fraternidade de 1988, sobre a população negra, diversas dioceses integraram a pastoral afro em suas programações, colocando-lhe à disposição até espaços físicos.

51. Hoje, o momento nacional da PAB dá-se, sobretudo, no Congresso Nacional das Entidades Negras Católicas (CONENC), que se celebra, normalmente, a cada dois anos.

Liturgia e inculturação

52. A inculturação expressada por meio da liturgia tem sido uma resposta às novas sensibilidades da Igreja. A ação afro-pastoral tem primado por esta prática.

55. As celebrações afro-inculturadas não são mera “folclorização” litúrgica, ou seja, ritos e símbolos desvinculados da realidade. Ao contrário, é a celebração da vida, da esperança e do clamor do povo negro sofrido e daqueles que padecem as mesmas penúrias.

Participação solidária

56. Há, portanto, um vínculo indissolúvel entre celebração litúrgica e “participação na transformação da sociedade pelo bem dos pobres”, entre os quais os negros e negras são maioria.

57. É visível o abandono da África negra pelos países que decidem os destinos do mundo.

Pastoral afro-brasileira e organização dos serviços

58. A solicitude da Igreja para com os afro-descendentes (refere-se aqui aos pretos e aos pardos, de acordo com o Censo de 2000, IPEA), que somam cerca de 45,3% da população nacional (76.419.233 afro-descendentes), a condição de discriminação e exclusão em que vive a maioria deles e as muitas atividades surgidas na esfera pastoral, por iniciativas dos próprios agentes negros, com o apoio das Igrejas locais, levaram à criação da Pastoral Afro-brasileira, vinculada à Dimensão sócio-transformadora.

59. A Pastoral Afro-brasileira acompanha e participa da organização dos serviços pastorais que dizem respeito à comunidade negra, e tem por objetivos: “animar os grupos negros católicos existentes; incentivar o surgimento de novos grupos que buscam sua identidade numa sociedade e Igreja plurais; promover a integração e articulação dos grupos e das iniciativas, respeitando as suas particularidades; colaborar na construção de uma sociedade justa e solidária, como exercício da cidadania a serviço da vida e da esperança; e testemunhar a fé em profunda comunhão eclesial”.

A teologia da PAB impulsiona vários grupos, Instituto Mariama (IMA), Congresso Nacional das Entidades Negras Católicas (CONENC), Atabaque, Cultura Negra e Teologia (ATABAQUE), Agentes de Pastoral Negros (APNs), como exemplos, e se expressa na prática deles.

Animação e articulação

63. Não se trata de movimento, mas de um serviço, dentro da própria pastoral da Igreja.

Âmbito paroquial

64. A organização da Pastoral Afro-brasileira, em nível paroquial, deve ser empenho de todas as paróquias, sobretudo naquelas regiões onde a população de afro-descendentes se faz mais presente. Com a ajuda dos párocos e dos agentes de pastoral, devem ser constituídos grupos e círculos específicos, para aprofundarem as questões pertinentes à realidade afro, à luz da Palavra de Deus, proporcionando os espaços para as celebrações litúrgicas afro-inculturadas.

Nível diocesano

65. Sob o incentivo e orientação do bispo diocesano, a PAB seja organizada também nesse nível. A constituição do Secretariado Diocesano de PAB é uma instância fundamental para subsidiar e incrementar a ação afro-pastoral em toda a diocese.

Articulação com os Regionais

66. A ação da Pastoral Afro-brasileira será incrementada, sobretudo, com a participação dos Regionais, por meio de cursos específicos para os agentes que trabalham nas bases e nas coordenações diocesanas. A articulação entre o Secretariado Nacional da PAB e os Regionais é fundamental para que a animação afro-pastoral aconteça.

Conclusão acerca do Documento da CNBB

69. Fiel à sua missão, a Igreja entende que os povos e culturas constituem a prioridade da evangelização inculturada.

71. A Igreja, envolta pela ação da Santíssima Trindade, congrega os homens e as mulheres de todas as etnias e culturas, para que, livres de todas as amarras de racismos e preconceitos, possam, com igualdade, louvar a Deus e testemunhar a fraternidade do Reino.

Um comentário:

  1. Olá meu caro!!
    Quero parabenizá-lo pela riqueza do blog. Acredito ser fundamental fomentarmos essas discussões acerca da realidade afro-indígena. Em BH participo do GRENI (Grupo de Religiosos/as Negros/as e Indígenas)e partilhamos desses ideais.

    "Permaneçamos unidos no axé de nossas raízes afro-indígenas"

    Veja esse texto: http://www.cnbb.org.br/site/afro-brasileira/3295-a-construcao-da-identidade-afro-descendente-na-pastoral-afro

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Este espaço busca ser um lugar de interação com contribuições em temas relacionados às Culturas Afroameríndias, suas diversas manifestações e contextos. Nos campos de exposição, apresento em forma de reflexões alguns textos sociais, históricos, políticos, teológico-religiosos e educativos. Também o universo das artes e literaturas são outras referências, leituras e aprofundamentos, conforme este processo de interlocução dialógica em construção.
Agradeço-lhe pelo interesse em reconhecimento e atenção ao nosso trabalho!

Atenciosamente,
Reinaldo.

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