segunda-feira, 29 de agosto de 2011

INTERPRETAÇÃO AFRODESCENDENTE DA BÍBLIA E A PASTORAL

por Reinaldo João de Oliveira
(Mestre em Teologia Sistemática) in Artigo: Teoafricanidades em diálogos e perspectivas.

As interpretações bíblicas para a reflexão teológica são fundamentais como ‘refontização’. Elizabeth S. Fiorenza abordou recentemente em uma de suas obras, crítica e metodologicamente, a política interpretativa dos textos bíblicos. Ela menciona a codificação racista em termo de cores: Jesus branco sobre um pano de fundo preto – elaborado como uma compreensão de Heine acusando de que retrata Jesus enquanto pregador itinerante, sob uma “clara luz” a fim de contrastá-lo com as trevas patriarcais da sociedade judaica de sua época. Elizabeth se baseia numa visão mais analítica kyriárquica, que concebe existente um sistema que ainda prevalece sob o caráter da mistificação ideológica dos sistemas ocidentais de dominação, presente na filosofia clássica – aristotélico-tomista (in Fiorenza, 2005, p. 147.). Embora a autora tenha se detido falar sobre a política da interpretação do “Jesus Histórico”, ela abre uma fenda na questão das “escolhas” para modelos e pesquisas, onde se estuda e se crê na perspectiva dos fundamentos. Basta os olhares críticos sobre os textos bíblicos para perceber que as realidades não exploradas hoje, também fazem parte de determinada política de escolha. Quando entendemos a importância que há de se resgatar a identidade e as raízes de um povo que viveu processos de escravidão e de ‘diásporas forçadas’, sabemos que na postura de uma liderança está um papel muito importante, até profético. Este é um jeito de ler na história onde se rompe a corrente de transmissão fidedigna da palavra de Deus revelada com a implicação da exegese. Para resgatar o que se perdeu no caminho, e que ainda se perde – quando há possibilidade de construírem-se caminhos que buscam incluir ao invés de excluir, coibir (como muitas políticas que servem para justificar mais a opressão do que a libertação). Assim para contextualizar uma realidade histórica brasileira, do ensino, ou de catequização dos costumes, utilizaram-se de imagens bíblicas, justificando a escravidão dos negros, deixando evidenciado uma política de interpretação reconhecidamente opressora.

Livro: Jesus e a política da interpretação. De: Elisabeth Schüssler Fiorenza.

Em nossa perspectiva de leitura das fontes bíblicas, podemos nos perguntar através dos Evangelhos, como iluminação: se sabemos que ao pregar o Reino de Deus, Jesus privilegia os pobres e os excluídos do seu tempo. E hoje, nas leituras que se fazem a respeito, percebemos com evidência quais os rostos mais pobres e sofredores... Como reflete a análise da V CELAM – de Aparecida – estes rostos estão reconhecidos os indígenas e os afro-americanos entre os mais pobres, excluídos, explorados e até tratados pela sociedade do consumo capitalista como “supérfluos” e “descartáveis” (Ronaldo Muñoz, 2010, p. 102.).

 Livro: A missão em debate: provocações à luz de Aparecida. Artigo citado de: Ronaldo Muñoz. A opção pelos pobres como expressão da autenticidade da missão.

Nestas leituras “em perspectiva do olhar a partir da negritude”, como afirmam alguns teóricos, um importante meio para apresentar verdades esquecidas, ignoradas - não descritas - por estudiosos e líderes de comunidades em suas ações pastorais? Poucos diriam, a partir da reflexão sobre Evangelho de Mc 14, que Simão Cirineu seria um africano, e que pelo fato significativo de ter o seu nome e o de seus filhos explicitados no texto, tem importância fundante. Este não seria um dos sentidos do resgate identitário representado na Soteriologia, como estudo? Lemos, também, um exemplo de ação apostólica (pastoral) na carta dos Atos dos Apóstolos, em viajem missionária, que Filipe encontra-se com um Etíope que lhe pede explicações sobre um trecho do Profeta Isaías, o qual lia pelo caminho, conforme relata o capítulo oitavo, e depois pede o Batismo.
Ainda, nas fontes bíblicas, podemos ler que dentre os doutores que autorizaram a vinda de Paulo e Barnabé para o Ocidente estavam aqueles que foram, antes deles, os responsáveis pela transmissão da Palavra naquele contexto original da experiência da revelação cristã fundante “afro-asiática” (cf. At 13, 1-3), em Antioquia. E, ainda, segundo a explicitação da exegese (trad. Bíblia de Jerusalém), estes doutores, provavelmente judeus helenistas, eram habilitados ao ensino moral e doutrinal da Igreja primitiva (ver em At 11,27s e 1Cor 12-14s). Porém, não é necessário pinçar personalidades africanas na Bíblia, que não é o suficiente. Mas é necessário aprender a ler a Bíblia com olhares a partir da nossa coerência histórica e com o nosso jeito, sem precisar renunciar o que existe de autêntico em nossas interpretações. É uma forma inegável de se buscar questionar os escritos, em suas interpretações (inclusões e exclusões), na exegese dos textos, nos discursos e leituras. Podemos, com isso, entender melhor os espaços africanos na Bíblia. Ler a Bíblia tendo presente suas várias possibilidades, óticas até aqui não tão exploradas, como perspectivas de leituras teológicas, como atitudes coerentes.
É possível ler o texto e perguntar se antes já havia “segregação” nas comunidades dos discípulos? É perceptível que a comunidade cristã era constituída também por profetas e doutores africanos, em Antioquia (cf. At 13), onde inicia o movimento Cristão, para depois ir com Paulo e Barnabé à outros lugares. É bom que se pense, na dimensão do resgate e da auto-estima, que a questão dos conflitos étnicos e religiosos certamente foram suscitados, porém não problematizados como hoje: no aspecto racial, ideologicamente. Já antecipamos em outro diálogo este problema. Na dimensão social foram reproduzidas concepções distintas sobre raças, carregadas de ideologias: como a teoria raciologista, já há tempos superada pela própria genética. E há outras formas possíveis de se pensar como realizar uma política interpretativa de inclusão, a partir do resgate de textos em fontes cristãs, realizando também em outras tradições até mais antigas de que o próprio cristianismo (cf. Nm 12; Ex 15,20).
O grupo do povo de Israel foi também migrante pela África, onde percorreu durante séculos e a própria história da humanidade atesta ser o “lugar” de origem dos povos da terra. Podemos fazer uma leitura bíblica sobre o livro de Êxodo 15, 20, relacionando ao contexto de celebração, liturgia, perguntando sobre nossas origens rituais, onde se canta e se dança utilizando tambores, tamborins... Esta era uma liturgia muito importante na História do Povo de Israel - O Canto de saída do povo da África, nas regiões do Egito, bem como representantes de povos como Efraim e Manassés – cenários de grandes episódios e personagens da Genealogia no primeiro Testamento (histórias de Abraão, Sara, Agar, Esaú, Isaac, Jacó, Moisés, Elias etc.). Assim, como um aprofundamento para pensar as origens ou re-significar os mitos antigos em símbolos culturais, étnicos e religiosos (cf. Gn 2; Cântico dos cânticos 1, 5).
Até em outras tradições religiosas de origens africanas e afrobrasileiras podemos pensar a Teologia, sobre os temas do Monoteísmo, Eleição e Revelação de Deus, nestes contextos (Afonso Maria Ligório Soares 2006, pp. 91-107.).

Livro: Negra sim, negro sim, como Deus me criou – Leitura da Bíblia na Perspectiva da Negritude. Artigo/Destaque de: Afonso Maria Ligório Soares. Teologia da revelação e negritude.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS FONTES

Para pensarmos e desenvolvermos nossa reflexão numa ótica de teoafricanidade, podemos e devemos começar valorizando as culturas que constituíram-se particularmente dos povos nativos e dos transplantados a este continente latino-americano. Não podemos nos omitir em buscar valorizar as culturas, as experiências de fé, religiosa, e a própria dimensão pastoral e teológica sobre cada um destes pontos. Afinal, não seria esse (de resgates) um dos sentidos para o “fazer teológico” latino-americano e afro-brasileiro?
O diálogo que buscamos assumir, neste sentido, favorece um olhar para o interior das culturas como espaço (ou lugar) de reconhecimento e legitimação, que é uma exigência para situarmo-nos no mundo contemporâneo.
A reflexão que desenvolvemos para se pensar uma epistemologia, que passe por uma hermenêutica, a dimensão teológica africana, afroamericana como “lugar” e “casa” que abriga o pensamento reflexivo e vivencial de “olhar-escuta” e “saber” aprendente e comunicativo.
Para tanto, o método que nos desafiamos não necessitam renunciar o que já se construiu, mas abre-se neste “alargamento” para o que vem, sem precisar romper os horizontes, mas estendê-los. Importante ressaltar que neste sentido o “onde estamos” determina o nosso pensar. Não apenas a “compreensão” do outro, mas a relação com este. Assim, um caminho possível está em inserir, na produção teológica, o resgate dos elementos culturais e narrativos como alternativas de atitudes para ações pastorais.
Também na perspectiva da práxis do Ensino, voltado para as identidades e os caminhos da missão, todos os olhares para a história dos povos, incluindo as que não foram devidamente contadas – e que por isso permanecem na marginalidade da oralidade do povo.
As outras formas de leituras e interpretações vêm contribuir para atitudes práticas de empoderamentos bíblicos, litúrgicos, mas também sociais. Este projeto nasce como uma forma de valorização das pessoas, na relação com a Palavra de Deus nas comunidades e nos grupos que se inspiram com os conteúdos desenvolvidos pela teoafricanidade, como desafio ao diálogo e outras perspectivas.

 

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Este espaço busca ser um lugar de interação com contribuições em temas relacionados às Culturas Afroameríndias, suas diversas manifestações e contextos. Nos campos de exposição, apresento em forma de reflexões alguns textos sociais, históricos, políticos, teológico-religiosos e educativos. Também o universo das artes e literaturas são outras referências, leituras e aprofundamentos, conforme este processo de interlocução dialógica em construção.
Agradeço-lhe pelo interesse em reconhecimento e atenção ao nosso trabalho!

Atenciosamente,
Reinaldo.

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