sexta-feira, 26 de novembro de 2010

ZUMBI - "Espírito de Libertação e de Consciência"

Resgate da memória deste verdadeiro herói brasileiro - com espírito de justiça, lutador contra todo tipo de opressão, em movimento pela paz e direitos iguais!


Zumbi dos Palmares ["o guerreiro"]
                                (Alagoas, 1655 - Palmares, 1695)

Líder do conhecido "Quilombo dos Palmares", formado entre 1604 e 1694. Zumbi era sobrinho de Ganga Zumba ("grande senhor"), o rei do quilombo que chefiava outros 12 Mocambos — Acampamentos de ex-escravizados negros, índios e brancos que se refugiavam da perseguição portuguesa —, na Serra da Barriga, se estendendo de Alagoas a Pernambuco. Palmares chegou a reunir 20 mil pessoas [outros chegam dizer de 50 mil] em cerca de 6 mil casas, tendo começado com a fuga de 40 escravos dos engenhos de açúcar de Pernambuco. Em 1678, Ganga Zumba aceita acordo com o governador de Pernambuco, Aires de Souza e Castro, que prometia a libertação dos negros nascidos em Palmares e o livre comércio, em troca da rendição dos demais e o fim das fugas. Zumbi, entretanto, teria renegado o acordo e destituído Zumba do comando. Passa então a liderar a resistência contra os portugueses. Palmares que ao longo de sua história suportara cerca de 25 ataques, desde os holandeses, em 1644 e 1645, finalmente cai após a segunda investida do coronel Domingos Jorge Velho (1614-1703), bandeirante paulista, em 6 de fevereiro de 1694. Embora Zumbi tenha conseguido fugir, foi morto por André Furtado Mendonça em 20 de novembro de 1695, no seu esconderijo, denunciado por Antônio Soares, seu homem de confiança. Zumbi teve a cabeça decapitada e exposta na praça central de Recife, para inibir novas tentativas de revolta contra a escravidão. A data de sua morte é lembrada como dia nacional da Consciência Negra.


Um testemunho da época (em carta enviada)*:

“Só um meio havia eficaz e efetivo para verdadeiramente se reduzirem, que era concedendo-lhe S.M. e todos seus senhores espontânea, liberal e segura liberdade, vivendo naqueles sítios como os outros índios e gentios livres, e que então os padres fossem seus páracos e os doutrinassem como aos demais.
“Porém esta mesma liberdade assim considerada seria a total destruição do Brasil, porque conhecendo os demais negros que por este meio tinham conseguido o ficar livres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho, seriam logo outros tantos Palmares, fugindo e passando-se aos matos com todo o seu cabedal, que não é outro mais que o próprio corpo”
*(VIEIRA, Pe Antônio. "Carta a Roque Monteiro Paim, de 2 de julho de 1691", in Cartas, LXIII).


2ª Imagem: PARREIRAS, A. Zumbi. Fonte: Museu Antônio Parreiras, Niterói.

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[o texto aqui compilado - acrescentado, corrigido, encontra-se originalmente no seguinte endereço: http://www.discursus.hpg.ig.com.br/perstext/zumbiper.html ]

SOU NEGRO!

Por Elaine Tavares - Jornalista (Instituto de Estudos Latino-americanos - IELA)
Página original deste texto: http://www.iela.ufsc.br/?page=noticia&id=1568   -  publicado em 19.11.2010



O cinema já imortalizou esta cena. Zumbi dos Palmares, resistindo até o último momento, no alto da Serra da Barriga, comandando mais de 50 mil almas, preferindo a morte digna que a rendição. Não sem razão que esta passou a ser a principal figura do panteão de heróis do povo negro. E haveria de ter muitos e tantos, sem nome ou rosto, que enfrentaram a escravidão nestas terras tropicais, trazidos, como bichos, nos navios negreiros ingleses, sustentando a economia daquele país que viria a ser um império.


Pois foi com os braços de homens e mulheres negros que os lordes garantiram a revolução industrial e a consolidação do sistema capitalista. Só o braço escravo, já bem contou Eric Williams, daria conta da colonização baseada na monocultura extensiva. Mas essa gente valente, que foi sequestrada de suas terras, nunca se rendeu. A liberdade era seu horizonte e tão logo escapavam das correntes criavam quilombos, comunidades livres, solidárias, auto-gestionadas. A maior delas: Palmares. E é em honra a esse povo, com Zumbi à frente, que no dia 20 de novembro, se celebra o Dia da Consciência Negra.

A data não é uma lembrança ritual de um tempo que já passou. Ela é a ferida aberta de uma sociedade que segue vivenciando os pressupostos do tempo da escravidão, mergulhada no racismo e na discriminação. Basta ver o que aconteceu agora, no período eleitoral, com as manifestações raivosas contra os nordestinos. Por isso que é preciso lembrar, e lembrar, e lembrar o que resultou de todo o processo escravista nestas terras brasilis.

Desde quando os portugueses decidiram apostar na mão-de-obra escrava aqui, nas novas terras, foi necessário consolidar uma ideologia que respaldasse o absurdo. Era mais do que óbvio que a elite colonial não haveria de espalhar aos quatro cantos que esta era uma medida “econômica” necessária para garantir seus lucros. O melhor foi então criar a idéia de que os negros eram de uma raça inferior, tal qual os índios, gente de segunda classe aos quais não faria diferença ser escravizado. Ou melhor. Era natural que o fossem. E então foi só repetir, e repetir, e repetir. A coisa pegou. E tanto, que passados 300 anos de escravidão, até mesmo os escravos – pessoas das gerações que se seguiram e que nunca haviam conhecido a liberdade – acreditaram nisso.

Depois, com o fim do regime escravista, uma vez que já estava garantida acumulação do capital das famílias coloniais, a ideologia seguiu fazendo seus estragos. Os negros libertos ficaram ao léu. Não havia política para inclusão de toda uma multidão de gente que, de repente, se via livre. Muitos, já velhos, não tinham como vender a sua força de trabalho e perambulavam pelas ruas, a mendigar. Ao que o sistema acrescentou novos adjetivos: preguiçosos, vagabundos, marginais. Nas grandes cidades eles foram se encravando nos morros, buscando um canto para morar, já que o Estado lhes abandonava.

E então, como não havia como eliminar a presença do negro na vida nacional, uma vez que aqui eram milhões, a elite decidiu que era preciso “embranquecer” o país, já que, conforme sustentavam os ideólogos de plantão, a raça negra haveria de constituir sempre um dos fatores da inferioridade do país. Ou seja, depois de terem usado do braço negro para forjar suas riquezas, a elite os considera causa da desgraça nacional. Cínismo pouco é bobagem.

Desde então, sociólogos, antropólogos e cientistas sociais se debruçam sobre aquilo que chamaram e ainda chamam de “problema do negro”, buscando refletir os elementos do racismo e do preconceito. Diante desta diferenciada forma de capitulação ideológica, o sociólogo Guerreiro Ramos vai apontar sua metralhadora verbal. “Por que o negro é um problema? O que o faz ser um problema? Uma condição humana só é elevada a condição de problema quando não se coaduna com um ideal, um valor, uma norma. Se se rotula `problema´ ao negro é porque ele é anormal. O que torna problemática a situação do negro é que ele tem a pele escura. Essa parece ser a anormalidade a sanar”. Ramos lembra que foi a superioridade européia no processo de colonização que criou estas manifestações - as quais chama de “patológicas” – de que o padrão estético dito normal e bonito só pode ser o branco. “ É uma tremenda alienação que não leva em conta a realidade local. Nossa país é um país de negros”.

Guerreiro Ramos argumenta que enquanto os estudiosos brasileiros não se libertarem da visão eurocêntrica da qual são cativos, muito pouco se poderá dizer sobre o racismo e a discriminação do negro no país. Os autores mais incensados, como Gilberto Freire e Nina Rodrigues, por exemplo, viam o negro como o exótico, o problemático, o não-Brasil. Euclides da Cunha acreditava que a fusão das raças era prejudicial e que o mestiço era um decaído, embora pudesse transcender e ser salvo pela civilização. Era uma espécie de tese de “embranquecimento” pela inclusão na vida nacional. Oliveira Viana chegou a dizer que a inferioridade seria passageira porque a tendência seria, pela mestiçagem, embranquecer.

Na tese defendida por Guerreiro Ramos a saída é a afirmação cotidiana da condição de negro, “niger sum”, pelo seu significado dialético numa sociedade em que todos parecem querer ser brancos por força da ideologia. “Sou negro, identifico como meu o corpo em que está o meu eu e considero minha condição ética como um dos suportes do meu orgulho pessoal”. Ele também defendeu, durante toda a vida, de que era necessário tirar do próprio negro a idéia de que havia um “problema do negro”. “O negro no Brasil é povo, o negro não é um componente estranho da nossa demografia”.

Hoje, o movimento negro atuante no Brasil tem trabalhado bastante essa tese, de afirmação cotidiana, mas não é fácil desfazer séculos de ideologia. Além do que é também possível encontrar entre algunas ONGs a idéia de que para o negro valem as políticas pobres como aquelas que, com dinheiro de fundações estrangeiras - como Ford, a Kellogs e outras que são inclusive responsáveis pela condição econômica de periferia de nossa gente - promovem cursos de cabelereira para mulheres negras e de garçon para homens negros, como se a eles só pudessem ser garantidas estas profissões.

As cotas nas universidades avançaram em muito a dialetização da questão racial no Brasil, tanto que o racismo vivo e fulgurante se manifestou de várias maneiras, inclusive com estudantes brancos entrando na Justiça contra elas, como se as cotas já não fossem uma realidade nas universidades. Só que as cotas que existiam até então eram para os estudantes com cursinho particular, os nascido em berço explêndido e estes não admitiam “repartir” a vida universitária com estes que muitos ainda consideram “inferiores”, justificando a cristalização da ideologia implantada nos tempos coloniais.

Também o sistema capitalista é pródigo em cooptar as idéias e bandeiras do movimento negro, transformando em produto a idéia de afirmação racial, como se pode notar nas revistas especializadas que acabam dando destaque ao negro, mas sempre dentro dos padrões capitalistas, de consumo e de estética.

Por isso a lembrança de Zumbi é tão desconfortável, e não foi sem razão que, em Florianópolis, tenha sido recusada pela Câmara de Vereadores a proposta de um feriado no Dia da Consciência Negra. Porque quando se fala de Zumbi dos Palmares, se fala de outro modo de organizar a vida, auto-gestionada, cooperativa, solidária, comunitária, outros padrões de beleza e de relação com as coisas. Quando se fala em Zumbi se fala de luta aguerrida, armada, rebelde. Porque na sua história de líder de Palmares, Zumbi recusou a rendição, a composição de classe, a capitulação. Ele foi até o fim na proposição niger sum (sou negro), e para a elite branca e racista isso pode se configurar num “mau exemplo”. Melhor encobrir ou ainda, tornar um produto.

De qualquer forma aí está o Dia da Consciência Negra nos interpelando, fazendo pensar que ainda há muito caminho a percorrer na destruição da ideologia racista inoculada desde os tempos coloniais.

Que viva Zumbi e que viva a idéia poderosa da afirmação de Guerreiro Ramos: Sou negro, sou povo brasileiro!

Veja, na seguinte postagem, o vídeo da música Kizomba - Enredo da Vila Isabel que fala de Zumbi!

Kizomba Festa da Raça

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Teologia e Espiritualidade da Encarnação

Apresentação de REINALDO JOÃO DE OLIVEIRA para Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – SOTER, no Congresso realizado na PUC Minas, em BELO HORIZONTE-MG.

Grupo de Trabalho: Religiões de ascendência Africana e Indígena (Coord. Adailton Maciel Augusto)


Inspiração sobre o "Nascimento do Menino Jesus" para a humanidade nova, redimida pela Encarnação do Verbo de Deus.



Na sequência deste trabalho, procuramos intercalar a nossa reflexão à uma "Nova Consciência" que ambrange os aspectos da Cultura e Religião Afro, para a Teologia.

Com imagens bíblicas, destes contextos, numa contribuição para a busca da Consciência Negra e Valorização das Religiões e Culturas Ancestrais, presentes desde muito tempo, embora nem sempre valorizadas, ou não tão bem fundamentadas para as "religiões e teologias oficiais", que colonizaram e 'ideologizaram' povos e culturas.

Como pano de fundo está a concepção da "Religião como Alma da Cultura" - melhor desenvolvida em meus estudos teológicos (Mestrado) -, perpassando por outras contribuições.

Detalhes e informações: nos contatos (página eletrônica - perfil, e-mail...) e em postagens, respostas etc.

A visita dos "reis" ao Rei do Universo


Nesta imagem a representação alegórica, de grande significado teológico e cultural - exemplo de diálogo entre Povos, Reinos, Culturas, Línguas, Tradições e os presentes de reconhecimento e fruto de uma Nova Esperança nascida num berço humilde, de forma simples e em meio a um "lugar" desprezado, quase desconhecido.

"Não havia lugar para eles"
(Lc 2,7)

EXPERIÊNCIAS, MANIFESTAÇÕES, IDENTIDADES E CULTURAS

Resumo do que tratamos a seguir

A valorização da cultura afro-brasileira e da cultura Indígena, como afirmação das suas reflexões com enfoque teológico.

O mundo cada vez mais plural, mas também carente de ‘sentidos’ para a “situação” destes povos.

O “fazer teológico” em perspectivas ainda não tão no “terreno” das construções ocidentais - no diálogo entre os mundos (oficialidade e não-oficialidade).

Os meta-relatos - perpassando a valorização dos povos e culturas afro e indígenas em nosso continente latino-americano.

Ações em perspectiva teológica e pastoral para afirmação de identidade religiosa e cultural afro-brasileira, integrada à realidade no que acontece no campo da fé.

Começamos interagir neste campo de estudos, retratando um tema relacionado ao das "origens", ou da "Genealogia" - que é tão fundante para todas as reflexões teológicas e religiosas. Em particular no Cristianismo, este tema evoca grandes questões desde o Gênesis, passando por todos os livros do "Primeiro Testamento", os Evangelhos e Cartas Apostólicas, até o Apocalipse.


Palavras-Chave: Experiências Religiosas, Religiões de Ascendência Africana, Teologia Afro-americana e Afirmação de Identidade Religiosa e Cultural.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A importância "das nossas origens" - raízes, fontes...

Representação da "Sagrada Família": José, Jesus e Maria

Ressaltar outras possibilidades, além das convencionais, absorvidas, é questão de CONSCIÊNCIA!

EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS E CULTURAS: ALGUMAS ANÁLISES

Uma primeira constatação é o da importância da religião como formação moral, dentro das culturas e, conseqüentemente, em todas as sociedades - especialmente as tradicionais que deram origem a todas as demais hoje, contextualmente.

Na concepção de Durkheim, quanto ao desenvolvimento das sociedades, as crenças e os valores religiosos do “bem comum”, no convívio social, e na reprodução das condutas morais, exercem um papel fundamental.

A religião seria “coisa social” e as representações religiosas exprimiria realidades coletivas, e acrescenta:

... há ritos sem deuses, e há até ritos dos quais derivam deuses. Todas as virtudes religiosas não emanam de personalidades divinas e há relações cultuais que têm objetivos diferentes do de unir o homem e uma divindade. A religião ultrapassa, portanto, a idéia de deuses ou de espíritos e, por conseguinte, não pode definir-se exclusivamente em função dessa última.
(cf. DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa, 1989, p. 67.)

Mas ultrapassa uma análise simplesmente filosófica ou sociológica do fenômeno, partindo de Rudolf Otto:

Negligenciando o lado racional e especulativo da religião, Otto encontrou-se sobretudo no seu lado irracional. Porque Otto tinha lido Lutero e compreendera o que quer dizer, para um crente, o “Deus vivo”. Não era o Deus dos filósofos, o Deus de Erasmo, por exemplo; não era uma idéia, uma noção abstrata, uma simples alegoria moral. Era, pelo contrário, um poder terrível, manifestada na “cólera” divina.
(cf. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano – a essência das Religiões, s/d. p. 23.)

E, ainda:

... O que é preciso sublinhar é que, desde o início, o homem religioso situa o seu próprio modelo a atingir no plano trans-humano: o revelado pelos mitos. O homem só se torna em verdadeiro homem conformando-se ao ensinamento dos mitos, quer dizer imitando os deuses.
(ibid. ELIADE, M., p. 112.)

Numa análise antropológica, Geertz considera que:
“a dimensão simbólica da religião fornece os padrões culturais da sociedade, considerando o símbolo” como uma metáfora, uma imagem que representa um conceito.
(cf. GEERTZ, Clifford, 1989: 146)

Há limites, porém, das experiências humanas que transcendem, como no exemplo do “sacrifício”, em considerações de Evans-Pritchard como uma “representação dramática de uma experiência espiritual”:

“O que é essa experiência o antropólogo não pode saber com certeza. Experiências desse tipo não são comunicadas com facilidade mesmo quando as pessoas estão dispostas a fazê-lo e dispõem, para isso, de um vocabulário sofisticado. Ainda que a prece e o sacrifício sejam ações exteriores, a religião nuer é, em última instância, um estado interior. Esse estado é externalizado através de ritos que podemos observar, mas seu significado depende finalmente de uma tomada de consciência em relação a Deus e ao fato dos homens serem dele dependentes e deverem se resignar à sua vontade. Nesse ponto, o teólogo toma o lugar do antropólogo”
(cf. Evans-Pritchard, 1956: 322).

As vivências ligadas às culturas dos povos e às experiências feitas como prática de “religiosidade”, apresenta-nos a “busca pelo sentido” por parte dos crentes:

Acontece também que os funcionalistas, concentrando-se no papel social da religião, descuram o sentido que a religião tem para os que a praticam. Weber jamais esqueceu que a compreensão da religião permanece incompleta enquanto não se atenta ao sentido que ela tem para os crentes. O próprio Parsons, que desenvolveu a abordagem funcionalista, observa que esta abordagem facilmente leva a esquecer que a religião não se esgota na dimensão social, que ela tem de fato referência ao mundo invisível.
(cf. BAUM, Gregory. Definições de Religião na Sociologia. In: Concilium/156 – 1980/6: pp. 40[744]-41[745])

O sentido que trazemos sobre a compreensão das teologias cristãs africanas, mostram o quão significativo se torna afirmar uma experiência de fé herdada no interior de uma comunidade que une com a prática os aspectos da vida do “ser africano”, “afro-ascendente”:

A religião penetrou cada aspecto da vida de tal maneira que é impossível extraí-la como simplesmente um elemento da herança tradicional. Ser africano na sociedade tradicional significa ser uma pessoa religiosa, ter uma interpretação religiosa da vida.
(cf. McVEIGHT, Malcolm. A Compreensão da Religião nas Teologias Cristãs Africanas. In: Concilium/156 – 1980/6, p. 77[781])

Uma interpretação teológica africana da realidade vista unida ao todo, holisticamente, articulando uma análise sobre o documento conclusivo da Conferência Pan-Africana de Teólogos do Terceiro Mundo, em Accra, Ghana (em 17 a 23 de dezembro de 1977):

“Afirmamos que nossa história é ao mesmo tempo sagrada e secular” (...) “Na estrutura tradicional não havia dicotomia entre o sagrado e o secular. Ao contrário, o sagrado era experimentado no contexto do secular (...).
Os teólogos africanos têm plena consciência daquilo que ocorreu devido ao impacto da cultura ocidental sobre sua vida ordinária. Eles não rejeitam o cristianismo, mas estão convencidos de que a interpretação ocidental do mesmo produziu distorções. (...) Num sentido pode-se descrever a presente fermentação na teologia africana dentro do contexto do tema da libertação: a saber, salvação como libertação. (...) Jesus preocupava-se com o perdão dos pecados, mas também com a cura da doença e a libertação dos pobres e oprimidos.
(In ibid.: McVEIGHT, Malcolm, pp. 75[779]-80[784])

Comunidade nasce de Organização, Esperança e Fé


ASCENDÊNCIA AFRO E OS ‘SUJEITOS’ COMO AUTORES

Uma provocação surgida em ocasião da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, reunido em Aparecida, em 2005:

“Que ninguém fique de braços cruzados. (...) Velamos pelo respeito ao direito que têm os povos de defender e promover os valores subjacentes em todos os estratos sociais, especialmente nos povos indígenas.”*
* (cf. Pp. Bento XVI, Discurso em Guarulhos No. 4)

“Esperamos... Valorizar e respeitar nossos povos indígenas e afro-descendentes.”
(cf. V CELAM – Mensagem aos povos da América Latina e do Caribe - in: www.celam.info – pesquisado em 30 de Abril de 2009).

Tratamos da importância de se valorizar os mesmos povos, pelo significado deles como ‘sujeitos’ e autores no contexto de suas comunidades.

Foram vários discursos que propuseram certa forma de ‘resgate’ ou ‘libertação’ dos povos afro-ameríndios, como a análise feita por Paulo Suess, como teólogo-crítico deste estudo:

Na antiguidade Greco-romana, os egípcios alcunharam seus vizinhos da região ao sul de Siene, atualmente Assuã (Ez 29,10), de etíopes, o que significa “caras queimadas”. Os autores da Bíblia hebraica conhecem esta região como cuch. Ao falar de cuch, Isaías anunciou que dali viria um povo de “pele bronzeada” para trazer dons a Javé e adorar o seu nome no monte Sião (Is 18,7). O batismo do etíope, por Filipe, narrado nos Atos dos Apóstolos (8,26ss), tem este fundo literário e teológico. O etíope dos Atos pede explicações de um texto de Isaías que fala do Servo de Javé. No tempo messiânico, o povo dos confins do mundo encontra o significado do Servo de Javé, não na servidão, mas no batismo que lhe permite “cheio de alegria continuar seu caminho” (At 8,39).*
* (cf. ROCHA, Manoel Ribeiro. Etíope Resgatado: Empenhado, Sustentado, Corrigido, Instruído e Libertado..., 1992, pp. IX-X.)

Na continuidade da crítica, ‘Suess’ expõe alguns aspectos, enquanto linguagem e hermenêutica:

Na tradução da Bíblia hebraica pelos Setenta (LXX) ao grego falado em Alexandria, no terceiro século AC [...] e na Vulgata, [...], cuch geralmente é traduzido por Aethiopia (...); Na época grego-romana, a alcunha etíope (“cara queimada”) se tornou designação genérica dos habitantes desde o sul do Egito, passando por toda África até aos países em torno do oceano Índico e à Índia. Mais tarde, etíope tornou-se nome genérico do negro (...); Etíope, portanto, significava na história colonial das Américas negro africano. E negro africano nas Américas, por mais de três séculos, era sinônimo de escravo. E, neste paradigma jurídico de resgate, se articula analogicamente a ‘salvação pela compra’ de africanos, que supostamente foram por inimigos tribais condenados à morte, com a salvação de pagãos pelo cristianismo, sem estes condenados à morte eterna. Nesta leitura ideológica, a escravidão representa uma dupla redução de pena: redução de pena de morte ao trabalho forçado e redução da pena fatal do inferno, prevista na doutrina cristã da época para os pagãos, às chances escatológicas de um cristão.*
*(ibid. ROCHA, Manoel Ribeiro. Etíope Resgatado..., p. X.)

A partir desta crítica, percebemos o que se pode concluir, posteriormente, Paulo Suess, reforçando sobre a realidade em torno do que buscamos afirmar neste estudo, a identidade afro-americana:

“os afro-americanos constituem uma das raízes da identidade latino-americana e caribenha, que foi arrancada da África e trazida para cá como gente escravizada. Sua história tem sido atravessada por uma exclusão social, econômica, política e, sobretudo, racial, onde a identidade étnica é fator de subordinação social.”*
*(cf. SUESS, Paulo. Dicionário de Aparecida: 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do documento de Aparecida, São Paulo, Paulus, 2007, p.13.)

A “justificação teológica” da realidade de escravidão teve como autores-vítimados os indígenas e Afro-ascendentes. Passamos pela abordagem sobre a atual realidade destes povos neste ponto da reflexão.*
*[Onde sabemos que na América Latina e, em particular, no Brasil entre os mais pobres estão os negros conforme os dados indicadores de renda, saúde e educação (IBGE, PNAD, PNUD e outros correlatos).]

O que significa valorizar as experiências religiosas e as culturas de ascendência africana-indígena?

= “sentir e fazer” a experiência de resistência e de libertação Sócio-histórico-teológico destes povos;

= o desenvolvimento da Teologia Índia e da Teologia Afro na América Latina;

= Apontamentos, correções e reparações de questões ainda candentes em nosso contexto, principalmente quando mal afirmadas, explicitadas anteriormente*.
*[Referindo-me às abordagens que justificaram as várias formas de subordinação dos povos afro-ameríndios e suas experiências religiosas, onde pelo “viés teológico” cometeu-se equívocos que ainda não se avançou suficientemente na reflexão teológica e no aprofundamento do diálogo inter-religioso, por exemplo.]

A experiência da Morte, a experiência da Cruz

Experiência muito tocante quanto à Via Crucis do Povo Afro e Indígena.


Dado o nosso contexto, precisamos sempre resgatar a memória e a história numa atitude cristã sempre viva e atuante - isso para quem vive da fé no Crucificado!

Só quem passa pelo gelo da dor, chega ao incêndio do amor.
Só quem passa pela morte, viverá!

CONFLITOS DE AFIRMAÇÃO IDENTITÁRIA E ASCENDÊNCIA AFRICANA

O pesquisador Stuart Hall critica o modo de conceber uma identidade fixa, pois:

“dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções... nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada ... é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”. (...) na medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar.*
*(cf. HALL, Stuart, A identidade cultural na pós-modernidade, 2005 p. 13)

Mas: - onde e como “este sujeito” (que se pergunta) encontra resposta para si mesmo quando quer afirmar-se frente a relação “interativa” com outras identidades e culturas? Sendo ele mesmo enquanto sujeito originário de uma determinada cultura? [Pergunta referida a “este indivíduo” que se pergunta sobre sua identidade, enquanto a desconhece como “raiz” histórica, originária, familiar, ascendente (onde se baseiam os antropólogos que afirmam existir a raiz identitária cultural já presente neste indivíduo, mesmo que ele a desconheça, cabendo-lhe apenas encontrá-la, descobri-la neste processo de procura pessoal ou coletiva), quando este o faz em determinados grupos sociais e religiosos que se preocupam com esta busca (movimentos, organizações, comunidades etc.).]

No contexto brasileiro, o problema relacionado à identidade trouxe desde o período pós-escravista, uma questão ainda não resolvida, mencionado pelo antropólogo Kabenguele Munanga:

O fim do sistema escravista, em 1888, coloca aos pensadores brasileiros uma questão até então não crucial: a construção de uma nação e de uma identidade nacional. Ora, esta se configura problemática, tendo em vista a nova categoria de cidadãos: os ex-escravizados negros. Como transformá-los em elementos constituintes da nacionalidade e da identidade brasileira quando a estrutura mental herdada do passado, que os considerava apenas como coisas e força animal de trabalho, ainda não mudou? Toda a preocupação da elite, apoiada nas teorias racistas da época, diz respeito à influência negativa que poderia resultar da herança inferior do negro nesse processo de formação da identidade étnica brasileira.*
*(cf. MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil – Identidade Nacional versus Identidade negra, 2008, p. 48)

Por sua vez, Kwame Anthony Appiah problematiza a questão, contrapondo o entendimento de que o critério “raça” seja importante para se constituir a identidade de “uma vasta família de seres humanos de história [e] tradições comuns”:

É bem possível que a história nos tenha feito o que somos, mas a escolha de uma fatia do passado, num período anterior ao nosso nascimento, como sendo nossa própria história, é sempre exatamente isso: uma escolha. Embora a expressão “invenção da tradição” tenha um ar contraditório, todas as tradições são inventadas.*
*(cf. APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura, 1997, p. 59.)

Isso reflete sobre aspectos da ideologia implantada nos modos de como se concebe o conceito de raça.

Parece, talvez, que o auto-conhecimento, no interior dos processos formativos, também teológicos, seja uma das respostas.

Seria possível afirmar-se ou rejeitar-se pessoalmente (individualmente), afirmando ou rejeitando a história, as “raízes”, as “origens sócio-culturais e religiosas”? Este autor diria que sim, enquanto outro parte sobre “o que” fomos feitos historicamente, culturalmente, como algo necessário para a afirmação de uma identidade cultural – individual e coletiva:

Recapitular o conceito de identidade significa esboçar a sua história (e toda a história) e que para estudar a sua construção será preciso estabelecer algumas dimensões deste problema universal, devendo também ser visto como processo do indivíduo, na cultura, pois é esse processo que estabelece, de fato, a identidade individual e coletiva.*
*(cf. ERIKSON, E. E. Identidade, Juventude e Crise, 1987, p. 13.)

Experiência de Ressurreição

Por que procurar entre os mortos Aquele que está vivo?

Ele é o Senhor da Vida!

AUTOCONHECIMENTO DA IDENTIDADE CULTURAL

"Conhece-te a ti mesmo"*
* [Gnothi Seauton (do grego antigo: γνθι σεαυτόν, "conhece-te a ti mesmo"), aforismo que tradicionalmente estava inscrito nas paredes do Templo de Apolo em Delfos, na Antiga Grécia, e que é muito citado pelo filósofo Sócrates nos relatos de seu pupilo, Platão. O oráculo do templo teria proclamado Sócrates o homem mais sábio na Grécia, ao que Sócrates respondeu com a célebre frase: "Só sei que nada sei"- in: http://wikipedia.org/]

O documento da quinta conferência episcopal latino-americana no Capítulo décimo, com o tema “Nossos povos e nossa cultura”, parece esboçar um processo de afirmação das origens culturais e religiosas dos povos latino-americanos.

Pedagogicamente entendida como uma “assunção” destes povos e destas culturas:

“O verbo assumir é um verbo transitivo e que pode ter como objeto o próprio sujeito que assim se assume”.*
* [Paulo Freire define bem o sentido desta concepção de assunção, que no seu modo de entender passa pela significância e importância deste verbete cf. in. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia, 1996, p. 41]

"A integração dos indígenas e afro-americanos e, apontamentos como Caminhos de reconciliação e solidariedade" * [cf. in. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, 2007, pp. 215-241.].

O documento mencionado também fala de “reconhecimento” : [“O seguimento de Jesus (...) passa também pelo reconhecimento dos afro-americanos como desafio que nos interpela para viver o verdadeiro amor a Deus e ao próximo” (cf. n. 532).]

O diálogo com as culturas, pode vir a ser uma experiência de fé e de responsabilidade.

O conhecimento das religiões de matrizes africanas com suas experiências, pode trazer um verdadeiro sentido de afirmação de uma identidade, identificação e de “encontro”, como uma experiência com Deus - isso é um forte exemplo do que estamos querendo dizer.

O inicio de um diálogo com o “outro”, “para o outro”, seria um assumir com responsabilidade, unidade e reciprocidade, na diversidade. Uma experiência divinizada:

Estar sob o olhar sem descanso de Deus é precisamente, em sua unidade, ser portador de um outro alguém – carregador e apoiador –, ser responsável por esse outro, como se a face, entretanto invisível, do outro prolongasse a minha e me mantivesse alerta em nome de sua própria invisibilidade, em nome do imprevisível do que nos ameaça. (...) Maneira essencial para o ser humano de estar exposto até o ponto de perder a pele que o protege, pele tornada totalmente face, como se, nucleando em torno de si, um ser sofresse uma desnucleação, e desnucleando-se, fosse “para o outro”, antes de tudo, diálogo!*
*(Cf. LEVINAS, Emmanuel. Do sagrado ao santo: cinco novas interpretações talmúdicas, 2001, p. 144.)

Como desafios para a teologia que se concretiza enquanto projeto de alteridade, como Luiz Carlos Susin interpreta partindo de Levinas, no sentido de responsalidade e ética, expressa não como palavra que me conduz a Deus, mas como palavra de Deus que conduz o outro a mim:

A palavra que Deus profere não é sobre si, mas sobre o homem, como palavra ética – seu dom e sua imagem – e é mandamento e Lei. O outro é enviado a mim para uma história e um drama de responsabilidade ética. A conclusão de nosso autor hebreu é que a religião não necessita então de outro fundamento além da ética, ou melhor, a ética é religião.*
*(cf. SUSIN, Luiz Carlos. Homem Messiânico – uma introdução ao pensamento de Emmanuel Levinas, 1984, p. 254)

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